sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Três madrilenhos

Publiquei esta semana, na Modo de Usar & Co. eletrônica, a tradução para um poema do madrilenho Pedro Casariego Córdoba (1955 - 1993), um dos poucos poemas "avulsos" dele, sempre afeito a serialidades. Seus livros de poemas apresentam personagens recorrentes, um senso de narrativa. Traduzi outros dois poemas independentes para o próximo número impresso da Modo de Usar & Co., na qual estou trabalhando com os companheiros Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Marília Garcia.

O poeta Pe Cas Cor, como é conhecido na Espanha, foi-me apresentado pela poeta Sandra Santana (Madri, 1978), coeditora de um dos projetos mais interessantes que conheço na Rede, chamado El águila ediciones, e autora de Es el verbo tan frágil (2008), um livro de que gosto muitíssimo e do qual traduzi vários textos. Eu a conheci em Berlim, através de nossa amiga em comum, a poeta argentina Silvana Franzetti (Buenos Aires, 1965). Em maio de 2008, quando me apresentei no festival de poesia Yuxtaposiciones, passamos uma tarde caminhando por Madri e visitamos a Feira do Livro da cidade, onde pude comprar a edição da Seix Barral com a poesia reunida de Pe Cas Cor, por sugestão de Sandra. Naquela tarde, havíamos conversado muito sobre outro madrilenho, o poeta Leopoldo María Panero (n. 1948), sua figura na poesia contemporânea espanhola, um poeta que não se encaixa facilmente na narrativa histórico-literária do pós-guerra, como o próprio Pedro Casariego Córdoba.

Mas estes são três madrilenhos que aprecio ler: Leopoldo María Panero, Pedro Casariego Córdoba e Sandra Santana.


O suicídio é só teu

Pedro Casariego Córdoba

Todos se deitaram
e chegou o medo

Meu coração conta suas batidas
e tua grande bunda rosa me protege

Tua grande bunda amável me defende do frio
mas atrai os pernilongos

Tua dor não é muito grande
se podes pedir ajuda

Uma bolsa d´água quente em minha cama
e toda a solidão do mundo

Aquele bar é o ninho de bocas domadas
e agora é noite e ranges os dentes

Indefeso como o espirro de um pássaro
vejo batidas que foram minhas

Se queres meter-te uma bala
eu te emprestarei meu revólver

Meu revólver é um manancial de esperança
tão seco como o ventre de uma anciã

Assina com meu revólver um cheque sem fundos
e compra um ingresso para o fundo da terra

Uma bala é um buraco no paladar
e um jejum eterno e barato

Tua grande bunda rosa e delicada
já não pedirá carne ou ar

Quem pintou de negro meus pulmões
para a torpe alegria da noite?

Se queres meter-te uma bala
eis aqui desinfetado meu revólver.

(tradução de Ricardo Domeneck)

"El suicidio es sólo tuyo" // Todos se acostaron / y llegó el miedo // Mi corazón cuenta sus latidos / y tu gran culo rosa me protege // Tu gran culo amable me defiende del frío / pero atrae a los mosquitos // Tu dolor no es muy grande / si puedes pedir ayuda // Una bolsa de agua caliente en mi cama / y toda la soledad del mundo // Aquel bar es el nido de las bocas domadas / y ahora es de noche y aprieta los dientes // Indefenso como el estornudo de un pájaro / veo latidos que fueron míos // Si quieres pegarte un tiro / yo te prestaré mi pistola // Mi pistola es un manantial de esperanza / tan seco como el vientre de una anciana // Firma con mi pistola un cheque sin fondos / y compra un billete para el fondo de la tierra // Una bala es un agujero en el paladar / y un ayuno eterno y barato // Tu gran culo rosa y sencillo / ya no pedirá carne ni aire // ¿Quién pintó de negro mis pulmones / para torpe alegría de la noche? // Si quieres pegarte un tiro / aquí tienes mi pistola limpia.

§


(Sandra Santana, lendo em Berlim)

§

Por que as bússolas não funcionam em interiores e como adivinhar a direção do ponteiro a partir dos olhos
Sandra Santana

Tratamos de perseguir seus movimentos
mas o final de cada traço
era vivido como um fracasso total na busca da figura.

Será a eternidade esquiva – perguntamo-nos, céticos – o que se oculta sob a cor de nossos atos?

(E a todos nós parecia havermos começado um caminho
mas ao acender a luz
encontramos de novo o muro em branco).

(tradução de Ricardo Domeneck)

"Por qué las brújulas no funcionan en el interior y cómo adivinar hacia dónde se dirige la aguja desde la mirada": Tratamos de perseguir sus movimientos / pero el final de cada trazo / era vivido como un fracaso total en la búsqueda de la figura. // ¿Será la eternidad esquiva –nos preguntamos escépticos– lo que se oculta tras el color de nuestros actos? // (Y a todos nos pareció entonces que habíamos iniciado un camino / pero al encender la luz / encontramos de nuevo el muro en blanco).

§


(Filme de Ricardo Franco sobre Leopoldo María Panero. Primeira parte.)

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Berlinenses e metecos como eu


(Lotte Lenya, esposa de Kurt Weill, cantando a famosa "Seeräuber Jenny", da Ópera dos Três Vinténs (1931), do duo Weill/Brecht, aqui em cena da adaptação cinematográfica de G.W. Pabst)

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Um dos prazeres de organizar, todas as quartas-feiras, o evento que chamamos de Berlin Hilton (ironia pop guiando mais que a escolha deste nome), e que eu às vezes gosto de chamar de my own private Cabaret Voltaire, é a oportunidade de conhecer e trabalhar com algumas das criaturas mais interessantes do Berlimbo, sejam berlinenses nativos ou metecos como eu. Berlim teve seus momentos mais interessantes do século XX quando se fez Meca para estrangeiros, em busca de sua vida nortuna e liberdade sexual, como nos anos 20, uma das eras mais liberais da história da Alemanha com a República de Weimar (1918 - 1933), quando os cabarés da cidade abrigavam Kurt Weill, os poetas dadaístas de Berlim, como Raoul Hausmann, e ainda poetas como Bertolt Brecht, críticos como Walter Benjamin ou estrangeiros como W.H. Auden e Christopher Isherwood.


Obviamente, a vida pós-Grande Guerra não era nada fácil, como podemos ler em livros como Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, ou em filmes como O ovo da serpente (1977), de Ingmar Bergman.

Outro momento semelhante ocorreria na década de 70, com o movimento punk-industrial, trazendo à cidade estrangeiros como David Bowie ou Iggy Pop, onde lançariam, respectivamente, os antológicos Low e Lust for life, ambos em 1977. Sem estar na cidade, Lou Reed lança a ópera-rock Berlin (1973), considerado, ao lado de Transformer (1972), um de seus melhores álbuns. Foi também, é claro, a década da Facção do Exército Vermelho, da conversão de uma escritora e jornalista pacifista como Ulrike Meinhof em uma das líderes do grupo terrorista, tempo dos filmes de Alexander Kluge e Rainer Werner Fassbinder. Um filme perfeito para compreender a Berlim e a Alemanha de então é justamente o filme coletivo Deutschland im Herbst (Alemanha no outono), de 1978, do qual participam tanto Fassbinder como Kluge.

Muitos crêem que a queda do Muro de Berlim trouxe um momento parecido, e realmente a década de 90 assemelhou-se em muitos aspectos à efervescência da década de 20 e 70, com uma explosão de clubes e o surgimento de toda a cena de música eletrônica que ainda domina a cidade. Ainda sendo uma das capitais mais baratas da Europa, a cidade passou a atrair novamente artistas estrangeiros. Muitos dos artistas visuais contemporâneos de maior renome vivem na cidade. A cena musical geraria, entre os alemães, nomes como Sasha Ring, também conhecido como Apparat, Ellen Allien, Modeselektor e outros.

(O gigantesco, imprescindível Walter Benjamin)


Entre os estrangeiros, muitos se estabeleceram na cidade, como Janine Rostron, também conhecida como Planningtorock, Jamie Lidell, Olof Dreier do duo The Knife, assim como toda uma série de artistas interessantíssimos, ainda que menos conhecidos, como Kevin Blechdom e Angie Reed.

A cidade tornou-se o centro poético do país, reunindo em bairros dos antigos Oeste e Leste alguns dos poetas jovens competentes da língua, como Monika Rinck, Daniel Falb ou Ann Cotten, assim como alguns dos enfants terribles do país, como o diretor de teatro René Pollesch ou o artista visual Jonathan Meese.

Nos quase cinco anos em que organizamos a Berlin Hilton, já tive a oportunidade de convidar algumas de minhas criaturas favoritas, incluindo três mulheres que respeito muito, três de minhas divas favoritas do Berlimbo: Kevin Blechdom (que já deixou a cidade, retornando à sua San Francisco natal), Angie Reed e Janine Rostron a.k.a. Planningtorock.

Entre os metecos de Berlim, Janine Rostron é o que mais me impressiona, uma artista interessantíssima, com um trabalho musical e visual excelente. Ela apresentou-se na Berlin Hilton no dia 4 de julho de 2007, mas infelizmente não tenho um vídeo de sua performance. Mostro abaixo sua performance na Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt), em abril deste ano.


(Janine Rostron a.k.a. Planningtorock, performance em Berlim, 2009)

Kevin Blechdom e Angie Reed apresentaram-se na Berlin Hilton em junho e novembro de 2006, respectivamente. A noite com Kevin Blechdom foi muito bonita, alugamos um piano e ela convidou o francês Mocky como baterista, algo incomum.


(Kevin Blechdom @ Berlin Hilton, 2006)

Angie Reed apresentou sua música divertidíssima, com letras inteligentes e sua presença maravilhosa no palco.


(Angie Reed @ Berlin Hilton, 2006)

Chegou o outono, com o frio insuportável de Berlim, e por esta época sempre me confronto com minha condição de meteco, pensando também em meus companheiros de condição. Tenho dois poemas em que trabalho em parte com a ideia do "poeta exilado", um deles escrito em meu primeiro ano em Berlim ("Sempre o exílio"), quando minha situação no país não era exatamente muito legal, e o outro escrito alguns anos mais tarde, quando já me sentia em casa e à vontade em minha condição de meteco. "Sempre o exílio" foi publicado em Carta aos anfíbios (2005) e "Cão são da ex-ilha" está no meu próximo livro, Sons: Arranjo: Garganta (no prelo).

Sempre o exílio

a Roberto Borges

a.

surpreso a quanta terra
não me pertence, que
engraçado descobrir (mais
uma vez) que trocar de país
não significa trocar de corpo
e a mudança
de língua
é acompanhada pela permanência
da produção da
mesma saliva.

b.

esta ilegalidade do meu corpo
desaloja-me a comida no
estômago
que permanece em ângulo
suspeito, a boca
arqueia-se, tesa –
e o barbante frouxo dos braços
a nenhum peito estreita-me,
esta pele estrangeira,
este cheiro novo.

c.

a certeza finalmente
de que a mão é incapaz
da linha reta,
os ouvidos mais atentos,
as pontas dos dedos
mais ativas, despertas,
os ombros caídos, menos
por cansaço que por pesos
acumulados ao longo
de outros sonos;
quando as noções
de segurança
e cidadania
desaparecem e resta-nos
a condição.

(Carta aos anfíbios, 2005)


§

Cão são da ex-ilha

a Carlito Azevedo

o desgosto de cada
passo confirmar o mapa
e o diafragma contraído
entende o queixo
no joelho,
meio-dia e meia
o centro da certeza
que caminha do “quero“
ao “não-quero“,
palha, fênix, Joana
d’Arc, como perceber
que abismo e precipício
não
são sinônimos
exatos,
ou acordar no meio da
noite sem energia
elétrica
e sussurrar com a calma
do fim da força:
equivalendo
silêncio e escuridão,
real
apenas a escolha
da língua, entre-
tanto a
memória
das possibilidades
morre
para que o fato
entre inassistido
nas atas
do verídico;
saiu o sol,
deve estar tudo
bem; subiu a lua,
deve estar tudo
bem;
trocar de pele
continuamente
talvez
leve-me ao centro
e a ausência
me escame
como quem diz
“eu sinto
a falta”

(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)

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sábado, 17 de outubro de 2009

Uma canção favorita: "In the pines", entre a voz e a escrita.

Descobri a canção "In the pines", também conhecida como "Black girl" e "Where did you sleep last night?", como a maioria das pessoas que conheço, através da versão de Kurt Cobain, quando se gravou o famoso concerto "acústico" do Nirvana, em 1993. Cobain diz, durante a gravação, que se tratava da versão de uma canção alheia, mencionando o cantor americano Lead Belly (1888 – 1949) como autor. Pesquisando mais tarde, descobri que se tratava de uma canção muito mais antiga, composta provavelmente na região da cordilheira dos Apalaches, uma espécie de berço para grande parte da cultura folk norte-americana. A versão de Lead Belly é uma das gravações mais antigas da canção.

(Lead Belly, "In the pines", "Black girl" ou "Where did you sleep last night?")

A letra da canção foi transcrita pela primeira vez em 1917, e já passou pela voz de Bob Dylan, Joan Baez e Dolly Parton. Cobain chama Lead Belly de seu "favorite performer" e apresenta o que me parece uma versão muito bonita para "In the pines", chamando-a por seu título alternativo, "Where did you sleep last night?".

(Kurt Cobain, acompanhado pelo Nirvana, "Where did you sleep last night?")

Durante a década de 90, não fui grande fã de Cobain, do Nirvana ou de qualquer banda daquilo que ficaria conhecido como movimento grunge. Por aquela época, minha atenção estava voltada para a música brasileira e para as Ilhas Britânicas, onde nascia por esta época o que ficaria conhecido como trip-hop, com grupos como o estupendo Portishead, da poeta lírica Beth Gibbons, poetas líricos individuais como Adrian Thaws, conhecido como Tricky, ou ainda de grupos como o Massive Attack. Além destes, sempre me interessei pelos grupos que tomaram a melhor influência dos anos 1980, dos Cocteau Twins, Sonic Youth ou The Jesus and Mary Chain, para grupos como o dos shoegazers do My Bloody Valentine ou o estranho-no-ninho do britpop: o Radiohead de Thom Yorke. Após a morte de Kurt Cobain e o naufrágio da inflacionada imprensa ao redor do grunge, pude ouvir o lindo, lindo rapaz com mais calma.

A propósito, chamo criaturas como Beth Gibbons e Adrian Thaws aqui de "poetas líricos", simplesmente baseado em um dos conceitos originais da tradição da poesia clássica. O romantismo transformou/distorceu o conceito de "poesia lírica", mas a poesia escrita para ser cantada seguiu sendo praticada e recebendo muitíssima atenção do público, enquanto literatos se descabelam. E enquanto estes se descabelam, a poesia lírica de sua venerada tradição continua sendo a arte mais popular do planeta. Talvez devêssemos apenas passar a chamá-la, já que a lira e a flauta já não são mais instrumentos para poetas, de "poesia guitarrítmica", assim como há hoje entre os poetas visuais a "poesia laptóptica"?

(Adrian Thaws, conhecido como Tricky, "Poems")


Qualquer poeta que se dê ao trabalho de conhecer a tradição completa e complexa da poesia, deveria saber que poetas cantando suas composições, com acompanhamento musical próprio ou alheio, é algo bem mais antigo que a prática de empilhar letras em folhas de papel. Não quero criar uma hierarquia, nem dizer que são a mesma coisa. Milênios de Literatura geraram características bastante específicas para o trabalho poético, diferentes da poesia oral e musicada. Tudo o que digo e creio é que "tradição" é algo muito mais complexo do que alguns querem fazer crer.

Um dos problemas está no hábito de transcrever textos orais, como textos escritos, e então julgá-los como Literatura, quando a poesia oral talvez devesse ser julgada por uma crítica também oral. Tenho praticado este exercício, iniciei uma série de "textos orais críticos", tentando encontrar uma maneira de criticar oralmente a poesia que foi composta para ser oralizada.

No entanto, é claro que o ponto de equilíbrio deve ser encontrado, como fizeram grandes poetas como Safo de Lesbos ou Arnaut Daniel, compondo poemas líricos, de tamanha qualidade literária, que sobreviveram por séculos apenas no papel, quando nasceram para a voz. São grandes textos literários, mas não podemos nos esquecer de como nasceram e qual a natureza de sua composição original. É claro, porém, que certas pesquisas poéticas podem ser feitas apenas como Literatura ou poesia visual, prescindindo dos aspectos sonoros e vocais da tradição poética, da mesma maneira como certas pesquisas poéticas podem ser feitas apenas oralmente, prescindindo dos aspectos visuais, ou até mesmo verbais, desta mesma tradição poética. A questão é simples: no Brasil, em grande parte, "signo" e "materialidade da linguagem" são entendidos como exclusivamente visuais. Para piorar tudo, essa obsessão por hierarquias e dicotomias tem gerado uma neurose insuportável.

Abaixo, "Cowboys", de Beth Gibbons, acompanhada pelo Portishead, um dos mais belos poemas líricos da década de 90, na opinião deste pobre literato que vos escreve, quando preferiria estar cantando.

(Beth Gibbons, acompanhada pelo Portishead, "Cowboys")

Sei que muitas pessoas não entendem minha obsessão por este debate, quando eu mesmo sou, basicamente, um "poeta-escritor", com apenas parte de minha pesquisa poética sendo feita como poesia oral. Sei também que alguns escritores verão a coisa toda como diletantismo, mas eu tenho tentado desenvolver o máximo de paciência possível para com eles, vários amigos estão entre estes. Sim, eu estou disposto a buscar respostas para minhas perguntas e perguntas para minhas respostas tanto em Bergson, Wittgenstein ou Benjamin, como em Arnaut Daniel, Guido Cavalcanti ou Murilo Mendes, sem deixar de buscá-las também em Björk, Portishead ou Tricky. A alguns ofende, eu sei, ler ou ouvir referências a estes nomes, de campos e "estratos" distintos, na mesma oração. Com estes: paciência, paciência.

Mas a questão me obceca também por suas implicações est-É-ticas. Neste caso, aquilo que ocupa minha mente/corpo é a tendência de separar corpos e mentes, todas as dicotomias derivadas e a neurose que daí resulta, em minha opinião. Parte de minha pesquisa como poeta, em tanto que escrevo, leio, filmo, assisto, vocalizo e ouço, é saber de que maneira a relação entre escritura e oralidade está entrelaçada nesta neurose. Seriam mesmo uma neurose, estas dicotomias e dualidades todas? Quando surgem? Com o aristotelismo? Com o nominalismo? Com o cartesianismo? De que maneira a voz e a escrita podem trazer-nos maior saúde? Mladen Dólar estaria certo ao dizer que a "voz é o que mantém unidos linguagem e corpo"? Isso nos ajudaria? Como encontrar uma maneira de evitar o que Ernest Becker chamava de the denial of death, ou uma cultura em que possa ser encarada de forma mais adulta?

Perguntas, perguntas para as quais busco respostas escritas e orais.

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domingo, 11 de outubro de 2009

Vídeo; excerto de performance; "Six songs of causality";


(Ricardo Domeneck, "Six songs of causality", textos permutativos em performance, Espai d´Art Contemporani de Castelló, Espanha, 31 de julho de 2009.)


Compus os textos permutativos "Six songs of causality" em 2006. Por esta época, estava em pleno processo de colaboração com o jovem artista visual alemão Phillip Zach, quando passei a escrever meus primeiros textos em inglês. A decisão era simplesmente prática: para poder colaborar com artistas ou poetas europeus, onde vivia, em muitos casos era impossível usar o português, a não ser que decidisse traduzir os textos mais tarde. Tomei a decisão de que seria mais interessante experimentar a composição dos textos diretamente em inglês. A colaboração com Zach geraria a primeira série, intitulada "How to breathe within photographs", com 11 textos meus e 11 fotografias do alemão.

As "Six songs of causality" nasceram do desejo de experimentar com a permutação de sentido dentro de um mesmo texto, algo que a língua inglesa torna especialmente frutífero, passando pela proposição de Wittgenstein de que "o significado de uma palavra é seu uso na língua", com um conceito que eu chamaria de "significado flutuante", a partir da relação contextual entre significantes.

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O Romantismo, com suas obsessões nacionalistas (não apenas no Brasil), gerou nosso conceito de "literatura nacional", baseada, em muitos casos, em uma estreita noção de pureza de uma língua oficial. No Brasil, isso se torna ainda mais complicado pela influência massiva e unívoca da crítica de Antonio Candido e seu nacionalismo por sistematização de uma identidade.

Entre os medievais, era bastante comum que poetas compusessem em várias línguas, incluindo o famoso descort (leia AAQQUUII) de Raimbaut de Vaqueiras, em que o trovador usa cinco línguas (provençal, italiano, francês, gascão e galego), ou, mais próximos de nossa "tradição" (aquela que admite uma única língua), os textos de Gil Vicente em castelhano.

No século XX, começa a transformar-se a atitude crítica sobre poetas e escritores exilados que mudaram de língua. No Brasil, há o caso especial de Murilo Mendes, que viveu duas décadas na Itália e escreveu um livro em francês e um belo livro em italiano. Manuel Bandeira tem alguns poucos poemas em francês, assim como T.S. Eliot. Ezra Pound escreveu dois dos "cantares" em italiano.

Alguns poetas, no entanto, fizeram disso sua pesquisa primordial. Um caso bastante especial é o do romeno Ghérasim Luca (entre tantos romenos que escreveram em francês, como Emil Cioran e Mircea Eliade), que tematizaria o desterro e faria dele sua "língua". Entre os vivos, poderíamos citar a "alemã" Rosmarie Waldrop, que emigrou para os Estados Unidos e passou a escrever em inglês. Em uma entrevista, Waldrop declarou sentir-se deslocada tanto na Alemanha como nos Estados Unidos, dizendo que seus fonemas embaralharam-se ao cruzar o Atlântico e que ela falava os dois idiomas com um sotaque. Segundo ela, isto a salvava da ilusão de crer-se dominando qualquer língua, de ser "a master of language". Como "estrangeira", impedida de considerar meramente óbvia e natural a linguagem ao seu redor, com a qual os "outros" se comunicavam, incluindo seu marido, o poeta Keith Waldrop, a escritora e poeta Rosmarie Waldrop adota a língua do seu novo país e passa também a fazer do princípio wittgensteiniano do "significado da palavra como o uso que se faz dela na língua" seu princípio poético formal mais determinante.

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Os textos independentes das "Six songs of causality" foram publicados pela primeira vez no número 09 da revista eletrônica (AAQQUUII) Green Integer Review, em outubro de 2007, editada por Douglas Messerli.

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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Angélica Freitas, Paulo Henriques Britto, Marco Lucchesi e este que vos escreve no portal alemão Lyrikline

O portal Lyrikline é administrado pelo instituto Literaturwerkstatt (Oficina de Literatura), que organiza o maior festival de poesia da Europa, o Poesiefestival Berlin, e quase todo evento ligado à poesia em Berlim. Desde que iniciou seu trabalho, o instituto vem gravando as vozes dos poetas que lêem em seus eventos, assim como reunindo e garimpando gravações raras de poetas mortos. É um dos maiores portais eletrônicos do gênero. Em 2008, o foco do Poesiefestival foi a poesia lusófona, e trouxe à Alemanha alguns poetas brasileiros. Para participar da oficina de tradução, pareando poetas de língua portuguesa e alemã, participaram Angélica Freitas, Paulo Henriques Britto, Marco Lucchesi e eu.

O portal está comemorando 10 anos de existência e subiu à rede esta semana as gravações de Freitas, Britto, Lucchesi e as minhas. Para acessar o portal e as muitas vozes de poetas, com traduções, basta seguir os "enlaces" abaixo.

ANGÉLICA FREITAS

PAULO HENRIQUES BRITTO

MARCO LUCCHESI

RICARDO DOMENECK

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domingo, 4 de outubro de 2009

Faria e Torquato aos 28

Publiquei hoje uma pequena seleção de poemas do jovem português Daniel Faria (1971 - 1999), morto há uma década, aos 28 anos de idade, na Modo de Usar & Co.. Escrevendo a nota biográfica, não pude deixar de pensar em outro poeta da língua, morto com a mesma idade, o jovem brasileiro Torquato Neto (1944 - 1972). Muitas coisas, no entanto, parecem separar os dois poetas. Daniel Faria morreu em decorrência de lesões cranianas, após uma queda, em um acidente doméstico; o poeta estava prestes a terminar seu noviciado e faleceu no Mosteiro Beneditino de Singeverga, tendo publicado, apesar da pouca idade, cinco livros. Torquato Neto suicidou-se no Rio de Janeiro, com a mesma idade, sem livro publicado, mas após compor canções importantes e ficar conhecido como o poeta do grupo associado com a Tropicália. Faria, o monge beneditino, com poemas de uma pesquisa interessante das possibilidades, no fim do século, de uma lírica pura, pesquisa que liga seu trabalho à linhagem de alguns dos primeiros modernistas, como Juan Ramón Jiménez, Henriqueta Lisboa ou Anna Akhmátova. Torquato, o "Nosferatu" do cinema marginal, o poeta de uma lírica "impura", ligada ao tumulto histórico de seu momento, trabalho que o liga a modernistas como Oswald de Andrade, César Vallejo, Bertolt Brecht. Faria, declarando-se alguém que anda "um pouco acima do chão / Nesse lugar onde costumam ser atingidos / Os pássaros", Torquato descrevendo-se: "eu sou como eu sou / presente / desferrolhado indecente / feito um pedaço de mim".

Algumas das características que me interessam em Daniel Faria estão em seu interessante trabalho sintático, a partir de seu uso incomum da quebra-de-linha. Em uma tradição hegemônica de poetas que parecem temer o fim do verso antes de completarem seu pensamento, é interessante contemplar como Faria permitia-se o fluxo e o fluido, levando suas estrofes a funcionarem pela acumulação de sentido, e permitindo que cada verso se transforme ao atingir o próximo, em um trabalho de linguagem que parece muito mais antenado às pesquisas linguísticas do século que terminava, também ao contexto dessacralizado de fim-de-século, buscando a polissemia, mas sem recorrer à elefantíase semântica, nem sequer entregando-se à fé transcendental que corrobora a metáfora, algo que poderíamos esperar de um poeta-noviço. Em seus melhores momentos, o verso de Faria se faz independente, autorreferente, mas acopla-se em expansão de sentido ao ligar-se ao seguinte. Tomemos o exemplo do poema abaixo:


Um pássaro em queda mesmo
Quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro nunca
Alcança a mesma coloração do musgo
– Já nem sequer falo do tempo
Em que mudam a pena

Para fazeres ideia pensa
Como perde um homem a idade
De encontrar os ninhos

Retém na memória: o homem cai. Desloca-se
O pássaro para que as estações não mudem

É dessa rotação que o muro
Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco
Do voo é a pedra da idade

Para fazeres uma ideia pensa
Em engoli-la


O primeiro verso pode ser compreendido como uma linha cerrada, definitiva: "Um pássaro em queda mesmo"; no entanto, este "mesmo" se transforma ao chegarmos ao verso seguinte: "Quando é proporcional à pedra", e assim por diante, gerando uma acumulação de sentido que surpreende a cada linha, na qual nada é definitivo, nem mesmo a semântica. Nas palavras de William Carlos Williams: "O poeta pensa com seu poema"; nas de Ludwig Wittgenstein: "O significado de uma palavra é seu uso na língua." Na poesia brasileira contemporânea, encontramos algo parecido a esta sintaxe no trabalho de Juliana Krapp e Marília Garcia, ou, de forma distinta, em certos poemas de Marcos Siscar.

É como se Faria estivesse sempre disposto a arriscar-se a dar um passo a mais (às vezes uma única palavra em cada verso) em direção ao despenhadeiro em que se pendura a chance de sucesso do pensamento de seu texto. Explico-me: um poeta mais "prudente" (menos interessante) e cioso da completude de seu "raciocínio", provavelmente quebraria os versos em articulações diferentes, previsíveis, deixando-se seduzir pelas rimas fáceis. Por exemplo:

"Um pássaro em queda
Mesmo quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro
Nunca alcança a mesma coloração do musgo..."

Se houvesse quebrado suas linhas desta maneira, o poema empacaria em solavancos, com cada rima soando como um tamanco no metal. Da maneira como diagramou suas linhas, em seu texto, Daniel Faria alcança um efeito muito mais interessante, não apenas com as rimas: mesmo/pedra/nunca/musgo/tempo/pena, como engendrando um ritmo que calcula e maquina a urgência da respiração do leitor.

Torquato Neto manteve seu trabalho lírico em um momento histórico que privilegiava um discurso antilírico, fazendo da pesquisa de sua própria identidade, múltipla, uma maneira de abordar a tradição de pesquisa identitária que se iniciara com modernistas como Oswald de Andrade e Raul Bopp (e os obcecara), como se Torquato Neto dissesse a cada texto: "O Brasil sou eu", pesquisando a primeira pessoa do singular como quem assalta a primeira do plural, como em seu poema mais conhecido.

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim


Eu perguntaria, como proposta, se o "Cogito" tropicalista de Torquato Neto não se manteria vivo, por quase duas décadas mais, na figura de Paulo Leminski, aquele que deu ao Brasil outro "Cogito" tropical em seu Catatau (1975), três anos depois do suicídio de Torquato Neto.

Mortos antes de completarem 30 anos, quando os críticos e poetas-cinquentões começam a cogitar a vaga possibilidade de prestar algo de sua atenção senil a poetas mais jovens, Daniel Faria e Torquato Neto deram-nos muito mais sobre o que meditar.
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