quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Balanço pessoal e a infame lista de fim de ano

Fim de 2009, início do último ano da década. Minha piada favorita no momento e que repito ad nauseam para os meus pobres amigos é: "Apresse-se caso você ainda queira entrar na lista de melhores da década. Sobrou só mais um ano!"

O ano foi produtivo, um bom ano. Eu tenho há mais de uma década uma espécie de teoria-superstição pessoal, a de que os anos pares são geralmente bons anos e os anos ímpares são geralmente anos difíceis. Em algum momento da minha vida esse ciclo pareceu instituir-se em minha cabeça. Eu acreditava até mesmo ter provas empíricas, baseadas em alguma estatística psicológica estapafúrdia, que fazia os anos pares parecerem tranquilos e os ímpares turbulentos, por algum calendário mental de colheitas e geadas, enchentes e secas, uma vaca magra devorando uma vaca gorda, etc. Não foi à toa que num poema do livro Carta aos anfíbios eu escrevi:

O asfalto na Augusta
...............encharcado
nesta primavera estranha
de 07 de novembro
de 2003 (em anos ímpares
me convenço de que
a morte existe) as fronteiras
fechadas, as invasões
bárbaras às portas,
as disfunções do clima vêm
unir-se à sua intermitência.
........................Quando
tudo em mim conspira
pela constância?


(trecho do poema "Como um caule / exausto / sob copa teme- / rosa", in Carta aos anfíbios, 2005)


Você agora poderia me perguntar: 2009 foi mesmo um ano difícil? Eu seria um ingrato se o chamasse de ano ruim. Foi um ótimo ano. Difícil e ótimo. Uma das boas coisas de estar envelhecendo é perceber que a maioria de nossos problemas é criada por nós mesmos. Onde quer que estejamos postados, aí chegamos com nossas próprias pernas. Queimou o pé? Não pisasse em brasa. Nem corresse como um idiota onde até os anjos andam na ponta dos pés, como diz aquele ótimo ditado em inglês. Quem sabe eu me enfiarei em menos enrascadas em 2010?

Depois de 4 anos longe, pude voltar ao Brasil e rever amigos no Rio de Janeiro e São Paulo, além da família em Bebedouro. A viagem foi linda.

Meus três livros até agora foram publicados em anos ímpares: Carta aos anfíbios em 2005, a cadela sem Logos em 2007 e agora o Sons: Arranjo: Garganta em 2009.

Eu escrevi pouca poesia em 2009, mas gosto do que me foi dado produzir. O trabalho crítico na Modo de Usar & Co. tomou tempo, mas foi prazeroso e estimulante, obrigando-me a pesquisas que seriam em primeiro lugar frutíferas para mim mesmo. Publiquei o Sons: Arranjo: Garganta, sendo o primeiro poeta a abusar da generosidade de Carlito Azevedo e Augusto Massi e ter dois livros publicados pela coleção Ás de Colete das editoras Cosac Naify e 7Letras. Livro que estava "pronto" desde 2007, mas que ganhou muito nos dois anos de gaveta, com alterações que o melhoraram, iludo-me em crer. Forma agora uma espécie de "álbum duplo" com o a cadela sem Logos, gosto de brincar comigo mesmo dizendo que os dois livros são meu Kid A / Amnesiac. Publiquei também uma pequena plaqueta de poemas, intitulada Corpos e palanques, pelo projeto Dulcineia Catadora. Tive algumas experiências surpreendentes como poeta oral:

§ - participei do primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, ao lado de gente como Wole Soyinka, Tomaž Šalamun e Rebecca Horn, entre outros;

§ - também do festival de poesia de Medana, na Eslovênia, onde conheci vários poetas jovens europeus muito bons, como o (excelente, realmente excelente) poeta russo Aleksandr Skidan, a jovem sueca Linn Hansén, o cipriano Mehmet Yashin e onde tive conversas muito estimulantes com o poeta e filósofo esloveno Gorazd Kocijančič, entre vários outros poetas muito bons. Foi um dos festivais com a melhor seleção que já vi;



§ - fiz minha primeira performance solo, no Espai d´Art Contemporani de Castelló, nos arredores de Valência, na Espanha.




O evento semanal que organizo às quartas-feiras no Berlimbo e que chamo de my own private Cabaret Voltaire chegou ao seu quinto ano. Algumas das noites mais impressionantes e que me deixaram mais feliz neste ano incluíram a performance do fundador do grupo de vanguarda berlinense Die Tödliche Doris, meu caro Wolfgang Müller; os israelenses do TV Buddhas; um show secreto da banda londrina Mystery Jets; a performance da jovem alemã Dillon; um set do francês Jackson Fourgeaud aka Jackson And His Computer Band; a festa do quarto aniversário com os meninos suecos do Lo-Fi-Fnk; a performance da guapísima La Prohibida, de Madri; o show da banda post-punk alemã Herpes; além de sets de amigos como Uli Buder aka Akia, entre tantas outras coisas.

Penso agora em matar o evento e começar algo novo.

Chegamos ao segundo número impresso da Modo de Usar & Co.. A franquia eletrônica esteve ativíssima durante o ano todo. Minha Hilda Magazine sofreu um pouco com meu excesso de atividades, mas espero retomá-la em 2010.

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A lista infame

Devo dizer que, a princípio e por princípio, nada tenho contra a atividade divertida de fazer listas de favoritos do ano, desde que elas sejam isso: uma lista pessoal de favoritos, que pode servir de lista de dicas para amigos. Quando jornais tentam transformar esta atividade divertida em historiografia, a coisa já se torna mais nebulosa e inevitavelmente desonesta. Portanto, o que se segue quer-se apenas como isso: lista de coisas memoráveis de 2009, como dicas aos amigos e leitores deste espaço. Devo ainda avisar que minha cabeça tende a funcionar da seguinte maneira: as últimas impressões fortes tendem a sobrepor-se às mais antigas, ainda que igualmente fortes ou mesmo mais. Dito isso:

Cinema:

§- o filme que mais me impressionou este ano (creio que ainda não estreou no Brasil) foi o novo filme do austríaco Michael Haneke, Das weisse Band (A fita branca), que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano. Eu assisti ao filme na mesma semana em que assisti ao Antichrist de Lars Von Trier, e não pude evitar as comparações. O filme de Haneke é simplesmente magnífico e (arriscarei aqui o exercício divertido da polêmica) faz o filme de Lars Von Trier ficar parecendo o trote de um adolescente revoltado, com muitíssimo talento e inteligência, mas com uma maestria técnica que não o salva de seu simplismo político e est-É-tico. Alguém mais percebeu também o quanto este filme novo de Lars Von Trier deve a David Lynch? O filme novo de Pedro Almodóvar segue a linha dos filmes produzidos depois da trilogia espetacular (Carne trémula, Todo sobre mi madre e Hable con ella), ou seja, são os trabalhos de um mestre competentíssimo, que sabe muito bem como fazer bons filmes, mas eles não têm aquela tensão espiritual que faz daqueles três filmes mencionados coisas insuperáveis da década. O filme novo de Quentin Tarantino, Inglorious Basterds, foi o mais divertido do ano. A performance do ator alemão Christoph Waltz como "Coronel Hans Landa" já é uma das coisas mais impressionantes da década.



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Música:

Esse foi o ano que viu Beth Ditto transformar-se de underground darling em pop icon. Mas o grande álbum do ano de 2009 é da banda que provavelmente ficará também como uma das grandes bandas da década: os moços americanos do Animal Collective. O álbum chama-se Merriweather Post Pavilion e está sendo eleito por todos os lados como o mais impressionante do ano.



Esse foi portanto um dos melhores e mais impressionantes álbuns do ano. Houve também o bonito Two suns da britânica Bat for Lashes, o novo álbum do Grizzly Bear, entre outros. Mas a canção, aquela favorita, a canção favorita em 2009 foi "Chrystalised", da banda britânica The XX.



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Shows:

Eu não costumo ir a shows, mas dos poucos em que estive este ano, o mais memorável foi o da Planningtorock na Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), em Berlim.



Os outros dois shows favoritos foram: a austríaca Anja Plaschg aka Soap & Skin em Berlim e o insano Ariel Pink em Heidelberg.

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Televisão:

Eu não assisto a televisão há pelo menos 10 anos, mas acompanho várias séries de TV quando são lançadas em DVD. Este ano decidi, finalmente, assistir a uma série que me recusara a ver quando ainda estava no ar. Recusava-me a vê-la porque me irritava a maneira como meus amigos falavam da série, como se fosse uma experiência quase religiosa assistir a ela. Falavam das personagens como se fossem amigos íntimos. Pareciam tias velhas falando da novela das oito. É por isso que, em 2003 e 2004, quando a série ainda estava no ar, recusei-me terminantemente a assistir à coisa.



Em algum momento do verão, alguém postou no Facebook uma cena engraçada do daydreaming autodepreciativo recorrente das personagens. Foi quando decidi assistir à série Six Feet Under, produzida pela HBO entre 2001 e 2005, e me tornei a mais fanática das tias velhas, fascinado que algo daquela qualidade pudesse ter passado na TV, com atores excelentes e episódios inteligentes, lidando com tabus ocidentais tão fortes. Não hesitaria em dizer que Six Feet Under foi uma das experiências mais poderosas de 2009. Assisti em poucas semanas às 5 temporadas e chorei como um condenado à morte no último episódio. Qualquer um deveria chorar exatamente como um condenado à morte naquele episódio. Posto abaixo exatamente a cena que me fez querer assistir à série:



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Encerro aqui a lista. Poesia e literatura, meus queridos, só no ano que vem.

Obrigado a todos que acompanharam os textos, debates e conversas neste espaço em 2009.

sinceramente,

Ricardo Domeneck

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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O próprio trabalho aos olhos e ouvidos de outrem

O jovem poeta paulista Mário Sagayama publicou esta semana um pequeno texto intitulado "(quase nada) sobre Ricardo Domeneck" em seu blogue. Agradeço aqui a atenção, referindo os leitores a seu Itinerário das cinzas. Está entre os poucos textos que buscaram um conjunção crítica entre o meu trabalho literário, oral, visual e ensaístico. Mais uma vez, agradeço ao senhor Sagayama pela atenção e pelos questionamentos interessantes que propõe.

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Só natal, natal só.

O moço trabalhando, a família e os tantos amigos que falam a língua materna do outro lado do charco atlântico, os amigos estrangeiros deste lado do charco ainda de ressaca da noite de ontem, como eu, confundindo já quem é o nacional, quem o forasteiro nesta terra, eu enfio carvão no forno (sim, meu apartamento no Berlimbo é à moda antiga, sem aquecimento a gás) que deve(ria) aquecer meu quarto. Mais tarde, vou vestir o casaco grosso e as botas, caminhar na neve até encontrar o rosto do moço na multidão, procurar os amigos europeus e ateus nos bares lotados do Berlimbo, dizer Frohe Weihnachten a quem acredita em sacrifícios mas não em redenção, abraçar um dois três corpos queridos, ouvir uma duas três vozes queridas em línguas que eu não falava quando ainda acreditava em Santa Claus, pensando como é bom ter os pés sobre a terra, mesmo quando ela pode se abrir para tragar-nos a qualquer momento. Na rua, cantarei um dos poemas líricos prediletos, imaginando que minha voz soa nos ouvidos da minha mente como a voz desse morto lindo, ai meus queridos, consider Jeff Buckley, who was once handsome and tall as you.

(Yeah but) Baby I've been here before
I've seen this room and I've walked this floor, (You know)
I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
and love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah


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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

De volta ao Berlimbo

Cheguei hoje à tarde em Berlim. Após dez dias de verão brasileiro, caminhadas por Copacacabana sem camisa e pela Avenida Paulista em pleno sol, é difícil pisotear neve. O Berlimbo está soterrado na coisa branca.

A viagem foi maravilhosa. Peço desculpas pelas postagens dos últimos dias, mais relatórios de viagem (quase coluna social), mas quis compartilhar alguns dos encontros felizes. Foram muitos, nem pude escrever sobre todos.

Muitas ideias e conversas importantes aconteceram nestes dias. Devem render artigos e postagens por várias semanas.

Passei os dias lendo os livros que agora trouxe do Brasil e que devem formar as leituras das próximas semanas. A viagem a Bebedouro foi acompanhada por uma leitura intensa do Monodrama (RJ: 7Letras, 2009), de Carlito Azevedo, e do emocionante A geração que esbanjou seus poetas (SP: Cosac Naify, 2006), de Roman Jakobson. A viagem de avião, retornando a Berlim, foi na companhia de Alfonso Berardinelli e seu Da prosa à poesia (SP: Cosac Naify, 2008).

Escrevo mais nos próximos dias.

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domingo, 20 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: São Paulo

Carlito Azevedo, Marília Garcia e eu chegamos a São Paulo na manhã da terça-feira, dia do lançamento dos livros e da Modo de Usar & Co.. Após deixar as malas no hotel, fizemos uma visita à Cosac Naify, onde encontramos nosso querido Augusto Massi. Após conhecer todo mundo, seguimos para um almoço, onde a conversa foi bem estimulante, sobre, por exemplo, os tempos da coleção Claro Enigma, idealizada e financiada por Augusto Massi, que teve um grande impacto no cenário poético do Brasil no fim da década de 80 e início da década de 90, as diferenças entre aquele tempo e o nosso. A coleção publicou poetas tão diversos entre si quanto Orides Fontela, Paulo Henriques Britto, Sebastião Uchoa Leite, José Paulo Paes, Ronaldo Brito e vários outros. Na verdade, tanto essa conversa com Augusto Massi em São Paulo, com a Coleção Claro Enigma como catalisadora, como outra com Carlito Azevedo no Rio de Janeiro, deixaram várias sementes de pesquisa na minha cabeça. Esta última aconteceu enquanto um exemplar da revista Navilouca, de 1972, editada por Torquato Neto e Wally Salomão, circulava pelas mãos de Carlito, Marília, Isadora Travassos e as minhas. Assuntos para o futuro.

Encontramo-nos com Walter Gam e Felipe Nepomuceno, que chegaram mais tarde, e em breve partimos para o Bar Balcão, onde aos poucos os amigos e colegas começaram a chegar. Revi meus caros Érico Nogueira e Dirceu Villa. Reencontrei Chacal, que vira pela última vez em 2006, quando nos apresentamos em Buenos Aires no mesmo festival. Também revi Roberto Zular, que eu conhecera há poucas semanas em Berlim, onde conversamos muito sobre poesia e oralidade, sobre as ideias do escritor Eduardo Viveiros de Castro e suas implicações, sobre Paul Zumthor, sobre Wally Salomão, etc. Conheci alguns poetas de minha idade, de quem já conhecia parte do trabalho, como Fabrício Corsaletti, Paulo Ferraz e Rui Camargo. Conheci Marçal Aquino. Revi Ana Rüsche e ganhei de Andréa Catrópa um exemplar de seu bonito Mergulho às avessas (2008); de Maiara Gouveia, seu Pleno deserto (2009). Havia muita gente legal, é sempre difícil mencionar uns e não todos.

Vendemos todos os exemplares da Modo de Usar que trouxemos do Rio, inclusive os de alguns colaboradores que não apareceram no lançamento. Do Rio, Daniel Chomsky manda avisar: já se esgotaram por lá os exemplares. Primeira leva de 100 exemplares do segundo número esgotou-se em menos de uma semana. Estamos felizes e gratos. Mas a revista está muito bonita também.


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With a little help from my friends

No dia seguinte, pude rever e passar um tempinho com alguns de meus grandes, gigantescos amigos de tempos paulistanos. Como foi bom revê-los, saber de suas últimas agruras e aventuras, pessoas que me apoiaram e sustiveram em épocas difíceis. Meus queridos Jorge Wakabara, Lígia Borges, Verônica Veloso, Roberto Borges, Talita Denardi, Felipe Gutierrez, Adelaide Ivánova. Tantos não pude ver, pela falta de tempo.

Quando nos conhecemos, éramos estudantes universitários, alguns de filosofia, outros de artes cênicas, cinema, jornalismo e publicidade. Encontrávamos no já lendário "O Sobrado", uma casa na Vila Madalena, caindo aos pedaços, onde vários de nós viveram em momentos de pobreza financeira, desgraça emocional e pindaíba amorosa. Alguém foi chutado do emprego? Buscava asilo n´O Sobrado. Alguém foi chutado pelo marido? Asilo n´O Sobrado. Naquela casa escrevi grande parte do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios.

Cada um seguiu seu caminho.

Foi emocionante ver como sobrevivemos a toda sorte de catástrofe e seguimos com nossos sonhos e projetos. Um estava no país para lançar seu terceiro livro. Outro havia acabado de voltar de Paris, onde fizera assistência de direção em uma ópera. Outra precisava correr para o SESC Pompéia, onde estava dirigindo sua nova peça, baseada em texto de Clarice Lispector. Outro ia para a Rede Globo, onde apresentava um dos programas de jornalismo mais conceituados do momento. Outro seguia sendo um dos mais interessantes jornalistas de moda da cidade. Outra andava expondo sua fotografia por galerias e revistas do mundo todo.

Esta viagem tem sido maravilhosa.

Estou em Bebedouro agora, onde nasci, no interior de São Paulo. Deixo vocês com uma matéria da MTV sobre a peça "O disfarce do ovo", com encenação de minha querida Verônica Veloso, que fala um pouco sobre o trabalho. Com Verônica, fiz parte do grupo de pesquisa das técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928 - 1992), que foi importantíssimo em minha formação. Hoje, Verônica Veloso comanda o Coletivo Teatro Dodecafônico.



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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: os dias lindos no Rio de Janeiro

Não me lembro ao certo da última vez que viajara ao Rio de Janeiro. Eram 4 anos sem vir ao Brasil, mas, creio, 7 sem visitar os amigos na capital carioca. Caminhar por Copacabana ao sol, numa manhã, ouvindo todos os passantes tagarelando naquela língua que Manuel Bandeira um dia chamou de "carioca federativo", foi tremendo. Percebi como me fazia falta vir ao Brasil com mais frequência.

A primeira vez que visitei o Rio de Janeiro foi na virada do ano de 1995/1996. Fiquei hospedado na casa de meu amigo (o hoje arquiteto) Rafael Segond, que eu conhecera nos Estados Unidos, quando lá estudávamos, os dois com 16 ou 17 anos. Essa viagem foi muito importante para mim, na verdade. Os pais de Rafael, Otávio e Cláudia Segond, tinham uma coleção maravilhosa de música brasileira, haviam vivido muitos anos na França, formam uma família adorável, com quem aprendi muito. Naquele mês, em seu apartamento próximo do Aterro do Flamengo e do Largo do Machado, quando eu tinha apenas 18 anos, pude ouvir e mais ouvir, discutindo com eles, discos de Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros.

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Foi nessa viagem que também conheci outro amigo importante em minha vida, o hoje cineasta brasiliense Pablo Gonçalo (diretor dos curtas Vestígios, de 2006, e o recém-lançado Roteiro para minha morte), com quem mais tarde dividiria apartamento em São Paulo. Foi muito bom rever Rafael Segond, poder passar alguns dias com Dimitri Rebello, Marília Garcia e Carlito Azevedo, a quem finalmente pude conhecer um pouco melhor, já que nos encontráramos até então apenas duas vezes. Cada vez mais percebo a beleza do que Ron Silliman chama de "uma comunidade de poetas", algo que, vejo mais e mais, pode suster uma vida.

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O LANÇAMENTO NO RIO DE JANEIRO

A Livraria Berinjela é um dos lugares mais simpáticos em que já li, gostei muito, imensamente, de conhecer seu dono, o nosso parceiro editorial Daniel Chomsky. O lançamento da Modo de Usar & Co. 2, assim como Monodrama (Carlito Azevedo), Ambiente (Walter Gam), Mapoteca (a reunião dos livros de Felipe Nepomuceno) e meu Sons: Arranjo: Garganta foi muito bom. Foi um prazer poder conhecer pessoalmente poetas que respeito, como Lu Menezes e Júlio Castañon Guimarães, assim como finalmente encontrar, pela primeira vez, a poeta carioca Juliana Krapp. Também encontrei pela primeira vez a poeta Masé Lemos, com quem já tive debates interessantes. Revi Laura Erber, a quem eu conhecera quando nós lemos no Festival de Poesia de Buenos Aires, em 2006, conheci poetas com quem me correspondo e mantenho um diálogo, como Franklin Alves Dassie, e alguns colaboradores da Modo de Usar & Co. impressa, como os simpáticos Ismar Tirelli Neto e Nora Fortunato. Várias pessoas queridas e interessantes estiveram na livraria, pessoas com quem gostaria de ter tido mais tempo de conversa. Conheci Walter Gam, que lançava seu livro de estreia; Márcio-André, com quem divido o interesse gigantesco pela pesquisa sonora; revi Guilherme Zarvos, que conhecera em Berlim; conheci Paulo Scott, Isadora Travassos, com quem conversei muito sobre Berlim, e Valeska de Aguirre, que organizou com Marília Garcia a antologia A Poesia Andando: 13 Poetas no Brasil (Lisboa: Cotovia, 2008). Ambas trabalham na editora 7 Letras, escrevem (em 2007, Valeska de Aguirre lançou o bonito Atos de repetição) e traduzem. Os simpáticos editores da revista Bliss estiveram na Berinjela, Lucas Matos e Clarissa Freitas, trouxeram meu exemplar da revista com a qual colaborei com um poema. É difícil mencionar uns e não todos, se não menciono todos, perdoai, é culpa do fluxo de emoções dos acontecimentos dos últimos dias. Conheci também o próprio editor da 7 Letras, o querido Jorge Viveiros de Castro. Não poderia deixar de mencionar meu caro editor, o generoso Augusto Massi, que tornara possível minha vinda ao Brasil para os lançamentos.

Por volta do meio-dia, Carlito Azevedo e eu fizemos uma leitura, acompanhados de Ismar Tirelli Neto. Carlito fez sua já clássica leitura do poema "Sobre uma fotonovela de Felipe Nepomuceno"; Ismar leu dois de seus belos poemas (quando Ismar acerta a mão, os textos são realmente memoráveis) e eu encerrei a leitura, não apenas com poemas meus, abrindo minha leitura com o poema "O cineasta do Leblon", de Hilda Machado (1952 - 2007), texto que abre também o segundo número impresso da Modo de Usar & Co., meu poema "Linear" e encerrei com o poema "Receitas para engolir e curar o fracasso", de Leonardo Martinelli (1971 - 2008). Foi minha homenagem a estes dois poetas, que eu gostaria muito de ter conhecido.

De Hilda Machado conhecemos apenas 6 poemas, dois publicados na Inimigo Rumor e 4 publicados agora na Modo de Usar & Co. 2.

Leonardo Martinelli e eu estávamos em contacto mais constante nos últimos meses de sua vida, por mensagens eletrônicas. Ele foi muito generoso comigo em vários momentos. Foi com muita tristeza que soube de sua morte.

Os próximos dias foram passados na companhia de Marília Garcia, fazendo planos e mais planos de colaboração, com Carlito Azevedo, conversando sobre poesia, poetas, poética.

No dia 13, Dimitri Rebello e Silvia Rebello lançaram os quatro primeiros números de seu novo selo, a Coleção Compacto Simples, que reúne o trabalho literário de escritores mais conhecidos como compositores de música popular. Os primeiros números trazem dois contos (Lado A e Lado B) dos escritores/compositores Dimitri Rebello, Fernando Paiva, Flávia Muniz e Ismar Tirelli Neto.

Escrevo sobre os dias e o lançamento em São Paulo na próxima postagem. Encerro com o poema de Leonardo Martinelli.

POEMA DE LEONARDO MARTINELLI

Receitas para engolir e curar o fracasso

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile

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domingo, 13 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: chegada no Rio de Janeiro

Cheguei ao Rio de Janeiro na noite de quinta-feira, após dois voos, o primeiro de Berlim a Madri e o segundo, muito cansativo, de Madri ao Rio. Na noite de quarta-feira ainda tive que discotecar em Berlim, pois era quarta-feira, a noite do evento semanal que coorganizo. Fui para o clube com malas e às 5 da manhã peguei um táxi para o aeroporto.

Ao chegar ao Rio, por volta das oito da noite, o mundo despencava em água, a cidade toda alagada. Chegar a Copacabana, onde devia encontrar meus queridíssimos Dimitri Rebello e Marília Garcia para jantar (a quem não via há 4 anos) foi uma maratona. Revê-los fez tudo valer a pena muitíssimo. Para completar o encontro, estava também Silvia Rebello, a irmã de Dimitri. Marília me aguardava com uma cópia do segundo número da Modo de Usar & Co., que está linda, especialmente com aquela capa em que sorri O Moço, meu moço. Duplo orgulho.

Dimitri é um amigo de longa data, de outros carnavais e também de outras quartas-feiras de cinzas. Um cantautor e poeta que respeito, já escrevi sobre ele aqui, quando ele gravou a canção "Mercado Negro", uma de minhas favoritas. Marília, como todos sabem, é coeditora da Modo de Usar & Co., além de responsável pelo seu aspecto gráfico e uma das criaturas mais doces que conheço. Sou leitor admirado de seu trabalho e compartilhamos a obsessão por alguns poetas, especialmente o francês Emmanuel Hocquard, que ela vem traduzindo lindamente. Já disse isso ao ar livre, repito-o aqui em letras: quando se trata do trabalho destas três mulheres - Marília Garcia, Angélica Freitas e Juliana Krapp - minha relação é de respeito mamute, "e se ele vier, defenderei, e se ela vier, defenderei, e se eles vierem todos, numa guirlanda de flechas, defenderei, defenderei, defenderei."

Estar com Dimitri, Marília e Silvia foi uma das melhores recepções que poderia imaginar. Dormi depois como uma pedra no belo hotel que a Cosac Naify reservou para os autores de fora, esperando sol no dia seguinte. O sol veio e caminhei pela praia de Copacabana agradecendo a Deus por cada segundo. Há outro agradecimento a ser feito: ao querido Augusto Massi e à Cosac Naify pelo convite incrivelmente generoso, que fez possível que eu voltasse ao Brasil depois de quatro anos, permitindo até agora que eu pudesse rever amigos como Dimitri Rebello, Rafael Segond, Marília Garcia, Carlito Azevedo, Bruno Learth Soares e os muitos amigos virtuais a quem pude finalmente dar uma face de carne e osso. Esta manhã ocorreu o lançamento lindo do segundo número da Modo de Usar & Co., na Livraria Berinjela de nosso querido parceiro Daniel Chomsky, assim como do meu livro Sons: Arranjo: Garganta, do Monodrama de Carlito Azevedo, do Mapoteca de Felipe Nepomuceno e do Ambiente de Walter Gam. Mas isso é assunto para outra postagem. Deixo vocês com meus queridíssimos Dimitri Rebello e Marília Garcia e vou dormir, dormir no Rio de Janeiro depois de um dia feliz, feliz.




terça-feira, 8 de dezembro de 2009

LANÇAMENTO do meu LIVRO NOVO, do SEGUNDO número IMPRESSO da Modo de Usar & Co. e primeira visita ao Brasil em 4 anos



Após 4 anos sem poder cruzar o charco atlântico, estou a caminho do Brasil esta semana para o lançamento do meu terceiro livro, intitulado Sons: Arranjo: Garganta, e do segundo número impresso da Modo de Usar & Co.

No Rio de Janeiro: 12 de dezembro, às 10 horas, na Livraria Berinjela, Av. Rio Branco, 185 / loja 10.
Em São Paulo: 15 de dezembro, às 20 horas, no Bar Balcão, Rua Dr. Melo Alves, 150.

O livro integra a nova leva da Coleção Ás de Colete da editora Cosac Naify, que traz ainda dois outros livros: o volume que reúne todos os poemas de Felipe Nepomuceno (São Paulo, 1975), intitulado Mapoteca, e o livro Ambiente, de Walter Gam (Belo Horizonte, 1983). Na mesma ocasião, será lançado oficialmente o livro novo de Carlito Azevedo (Rio de Janeiro, 1961), intitulado Monodrama (RJ: 7Letras, 2009).

Estamos muito felizes em poder anunciar também, finalmente, o lançamento do segundo número impresso da Modo de Usar & Co.

Segundo número impresso da Modo de Usar & Co.:

com traduções para textos de poetas hispano-americanos: Raúl Zurita, Efraín Barquero e Víctor López, além do espanhol Pedro Casariego Córdoba; poetas norte-americanos: Gertrude Stein (seu importante "Composition as explanation"), Ezra Pound, George Oppen, John Ashbery, Frank O´Hara, Allen Ginsberg, Richard Brautigan e Mei-mei Berssenbrugge; poetas alemães: Horst Bienek, Heiner Müller, Rolf Dieter Brinkmann, Odile Kennel, Monika Rinck e Sabine Scho; autores franceses: Georges Didi-Huberman, Pierre Alferi, Emmanuel Hocquard e Nathalie Quintane; e, por fim, os poetas japoneses: Yasuhiro Yotsumoto, Kôtarô Takamura e Kiwao Nomura - apresentados em traduções de Viviana Bosi, Carlito Azevedo, Diogo Kaupatez, Dirceu Villa, Andrea Mateus, entre outros.

Entre os poetas de língua portuguesa, poemas inéditos dos brasileiros Hilda Machado (1952 - 2007), Ricardo Aleixo, Marcos Siscar, Izabela Leal, Roberto Zular, Felipe Nepomuceno, Gabriel Beckman, Danilo Bueno, Nora Fortunato, Ismar Tirelli Neto, Gregorio Duvivier, Eduardo Jorge, Luiz Coelho, Renato Mazzini, Alice Sant´Anna, Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, assim como textos dos portugueses António Franco Alexandre, Nuno Moura, Manuel de Freitas, Ana Paula Inácio e Rogério Rôla.

As ilustrações da revista são de Paulo Stocker.

edição de Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck
em colaboração com Daniel Chomsky, da Livraria Berinjela (Rio de Janeiro).


sábado, 5 de dezembro de 2009

Certo paladar para tragédias

Há uma discussão que sempre me interessou muito e que, creio eu, lançaria luz sobre muitos aspectos da nossa vida contemporânea, mesmo sobre o debate poético e est-É-tico de nossos dias: trata-se da discussão sobre as transformações formais e culturais que nos encaminham da tragédia, tal qual a conhecemos em textos como Antígona (Sófocles) ou Medéia (Eurípides), no período clássico, a tragédias como Phèdre (Racine) ou King Lear (Shakespeare) no século XVII, e, por fim, destas às tragédias domésticas dos nossos dias, como Who´s Afraid of Virginia Woolf?, de Edward Albee; Long Day´s Journey Into Night, de Eugene O´Neill; ou A Falecida, de Nelson Rodrigues. Entre estas, onde encaixar Waiting for Godot (Beckett) ou A Ascensão e Queda de Arturo Ui (Brecht)?

Não estou apenas interessado em uma discussão sobre as diferenças formais entre todos estes textos. É claro que isso interessa e deve ser o primeiro aspecto discutido. Mas há muito mais, muito mais a discutir sobre as transformações que nos levam de texto a texto. De qualquer maneira, já não consigo separar forma e função. Trata-se mesmo de uma diferença de proporções, digamos, entre o cósmico e o pessoal? A perda do universal e a obsessão pelo particular? Alguém poderia dizer que estas últimas, de Edward Albee ou Nelson Rodrigues, por exemplo, são tragédias menores, domésticas, burguesas, fruto da perda de uma Weltanschaaung de caráter cósmico. Será realmente isso? Isso já foi discutido por alguns autores. Em Macbeth, os sons ouvidos na noite do assassinato do rei ecoam por todo o cosmos. O som da foghorn, que ecoa pela noite em Long Day´s Journey Into Night, está encerrado no destino de uma única família. Trata-se de uma mudança de ênfase entre o destino cósmico e o destino individual? Antígona ainda é lida, hoje em dia, como uma alegoria das batalhas entre o público e o privado, as diferenças éticas entre obrigações políticas para com o Estado, e obrigações metafísicas de cada um para com a sua consciência.

Digamos: como não saber onde traçar a linha que separa o que pertence a César e o que pertence a Deus.




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Ilustro essa discussão, abaixo, com cenas de dois dos meus filmes favoritos: "Medea", de Lars Von Trier, e "Who´s Afraid of Virginia Woolf?", de Mike Nichols.


Isso também me interessa em abundância de miocárdio: o que muda entre o amor de Medéia e Jasão e o de Martha e George?




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