sexta-feira, 29 de abril de 2011

Epigrama para um matrimônio monárquico




.................................Epigrama para um matrimônio monárquico

............................Segundo o Arcebispo da Cantuária
............................que acaba de unir em matrimônio
............................Príncipe William e sua Catherine,
............................o objetivo principal do casamento
............................é a reprodução. Algo que no caso
............................do Príncipe William e sua Catherine
............................(como todo matrimônio monárquico)
............................gerará futuros herdeiros possíveis
............................ao trono do Reino Unido, fazendo,
............................acompanhem minha lógica política,
............................que seja de muito maior interesse,
............................para a população do Reino Unido,
............................petição urgente a canais televisivos
............................do mundo que não só a cerimônia,
............................cortejo, mas também se transmita,
............................ao vivo, a sua noite real de núpcias,
............................com cenas da mesma pompa explícita,
............................ao som do mesmo gritinho histérico
............................desta massa anestesiada de súditos.


.................................Berlim, 29 de abril de 2011, ao som de sinos.


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quinta-feira, 28 de abril de 2011

Abertura da terceira parte de uma exposição com curadoria do meu companheiro de coletivo Viktor Neumann

Viktor Neumann


Abre hoje à noite, no espaço para arte contemporânea sob tutela do Governo de Berlim e funcionando no antigo espaço do Senatsreservespeicher, a terceira parte de uma série de exposições de vídeoarte com curadoria do meu companheiro de coletivo Viktor Neumann. Intituladas "Medo. Poder. Espaço" (Angst. Macht. Raum. I, II e III), cada uma das exposições trazia trabalhos de três artistas contemporâneos trabalhando com vídeo. Na primeira, peças de Sadie Benning, Ming Wong and Rommelo Yu; na segunda, de William E. Jones, Zhenchen Liu und Clemens von Wedemeyer. Nesta terceira parte da série, a última, estão Klaus vom Bruch, Niklas Goldbach e o duo Korpys/Löffler.

Eu conheci Viktor em 2004. Menos de um ano depois começamos juntos as nossas intervenções/festas/eventos às quartas-feiras. Logo, outros foram se unindo ao que se tornou nosso coletivo, mas tudo começou comigo e com Viktor. Somos um grupo, eu diria, heterogêneo como as peças de Lego, mas pode-se construir coisas interessantes ou engraçadas com elas quando se unem. Como qualquer grupo de jovens em colaboração. Ou, usando as palavras ótimas de Murilo Mendes, nós somos "complementares e adversativos": um poeta que trabalha (ou se atrapalha) com vídeo (euzinho), um videasta (Niklas Goldbach), um performer que, como eu, tambem é DJ (Daniel Reuter) e aquele que está se tornando um dos mais interessantes jovens curadores da cidade (e o mais jovem do nosso grupo) - Viktor Neumann. Este é o cerne, mas há ainda outros amigos com quem colaboramos.

Depois de suas duas primeiras exposições desta série "MEDO. PODER. ESPAÇO" e sua curadoria de uma noite com 8 horas de videoarte na Kunstlerhaus Stuttgart (intitulada "Our Darkness"), nosso amigo abre hoje a parte final desta sua estreia-em-série como curador. Compartilho aqui com vocês excertos dos trabalhos e artistas da exposição e o meu orgulho de amigo.


MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3. Exposição de videoarte com curadoria de Viktor Neumann.



(excerto de Das Schleyer-Band, 1977-1978, de Klaus vom Bruch - trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)

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(excerto de Ten, 2010, de Niklas Goldbach - trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)


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(imagem extraída do vídeo "The Nuclear Football", 2004, do duo Korpys/Löffler – André Korpys e Markus Löffler – trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)


Depois de visitar a exposição, falo mais sobre os trabalhos.

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domingo, 24 de abril de 2011

A nova canção e vídeo de John Maus, acompanhados de declarações pouco pudicas sobre sua música, voz e o corpo que embrulha sua garganta

John Maus



John Maus é para mim hoje uma das criaturas mais estranhas e atraentes e fascinantes em atividade no negócio de unir palavras e notas musicais. A avalanche de superlativos já deixa claro que sua música (e o corpo de onde ela sai) entusiasma neurônios e músculos e tendões e nervos e mucosas e cavidades esponjosas espalhados (não de forma proporcional) por todo o meu corpo.

Vamos lá, "me diga, com frio na barriga", quantas vezes você ouviu, em sua vida, alguém ter sua ocupação descrita como "compositor e professor de filosofia política na Universidade do Havaí"?! Alguém referir-se musicalmente a filmes-catástrofe de Cronenberg e passagens de textos de Jacques Rancière em arpeggios que parecem subir róseos? Pelas maquiagens de Quentin Crisp, eu confesso que estes sons realmente me pegam e me jogam na parede. Uia que voz gargantosa. E que pescoço a embrulha!

As canções são estranhas e irônicas, como em "Maniac" e "Rights for gays", e, se PJ Harvey é a senhora da tristeza raivosa, é como se John Maus cantasse uma tristeza que ri de si mesma. Esta é uma leitura pessoal.

O compositor por algum tempo esteve associado a outra criatura algo genial e esquisitíssima, o compositor Ariel Pink. A paixão dos dois pelo lo-fi é já quase marca registrada. Os dois colaboraram nos álbuns Underground (Vinyl International, 1999) e Loverboy (Ballbearings Pinatas, 2002).

O primeiro álbum solo de John Maus chama-se, em perfeito estilo lo-fi simples, Songs (Upset the Rhythm, 2006). A ele seguiu-se Love is Real (Upset the Rhythm, 2007). O rapaz é por vezes deliciosamente melodramático e camp, como seu colega Ariel Pink. Isso irrita alguns, mas aqui entre meus amigos pelo menos John Maus já adquiriu status heróico. Eu ia dizer cult, mas a verdade é que seu status é de herói. Cult é para os que chegam ligeiramente tarde, a quem as coisas que amam jamais parecem realmente pertencer. Quem ama como se objeto e sujeito se misturassem, pertencendo-se mutuamente, não cultua: heroiciza. Não posso dizer esta palavra, herói, sem pensar em um dos meus poemas favoritos de todos os tempos e línguas e geografias, "The hero", da Marianne Moore.


............"Where there is personal liking we go.
............Where the ground is sour; where there are
............weeds of beanstalk height, snakes' hypodermic teeth, or
............the wind brings the 'scarebabe voice'
............from the neglected yew set with
............the semi-precious cat's eyes of the owl --
............awake, asleep, 'raised ears extended to fine points', and so
............on -- love won't grow.

............We do not like some things, and the hero
............doesn't; deviating head-stones
............and uncertainty; going where one does not wish
............to go; suffering and not
............saying so; standing and listening where something
............is hiding. (...)
"

.........................excerto de "The hero", de Marianne Moore.


Sim, "where there is personal liking we go", e nós não gostamos de certas coisas, nem gosta delas o herói, especialmente de sofrer e calar-se, não o dizer. John Maus o diz e o diz e o diz.

O selo Upset the Rhythm acaba de anunciar para junho o lançamento de seu terceiro álbum, maravilhosamente intitulado We Must Become The Pitiless Censors Of Ourselves. A canção com vídeo "Believer" é a primeira a ser lançada aos leões e ovelhas.



"Believer", de John Maus, do álbum We Must Become The Pitiless Censors Of Ourselves
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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Vídeo de 1978 em que Bernadette Mayer oraliza seu texto "Eve of Easter", seguido de minha tradução para seu poema "The port"

Foto de Bernadette Mayer do início dos 70, usada na capa de seu livro Studying Hunger (1978)



Bernadette Mayer nasceu na cidade de Nova Iorque, no bairro do Brooklyn, em 1945. Ela estreou em livro, creio, com Ceremony Latin (1964), e ficou conhecida com suas plaquetes de poemas publicadas durante a década de 70, especialmente pela editora Angel Hair, dirigida por Anne Waldman e Lewis Warsh. Seu trabalho, porém, começou a circular através de sua revista 0 to 9 no fim dos anos 60, revista que ela editou em colaboração com o então poeta, mais tarde performer e videasta, Vito Acconci (n. 1940).


Foi através desta associação com Acconci que a descobri há alguns anos. Na época em que eu escrevia os poemas da segunda parte de Carta aos anfíbios e todos os d´a cadela sem Logos, por causa de minha obsessão por trabalhar na fronteira das dualidades corpo/mente, concreto/abstrato, corporal/espiritual, além do início do meu interesse pelo vídeo como meio poético para a poesia oral e em performance, passei a pesquisar intensamente o trabalho de performers-videastas americanos que usavam textos em seus vídeos, como por exemplo Martha Rosler, Gary Hill e Vito Acconci. Este último iniciara sua carreira como poeta conceitual, antes de dedicar-se ao vídeo e à performance, passando a ser mais conhecido por estes trabalhos e não como escritor. Esta sua metamorfose me interessava muito. O volume Vito Acconci Studio, no qual leria pela primeira vez sobre Bernadette Mayer, foi publicado como catálogo de uma exposição no MABCA - Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, e traz alguns dos textos de Acconci e também reproduções de páginas da revista 0 to 9.

Confesso ter perdido muito do meu interesse inicial por Vito Acconci, mas meu interesse por Bernadette Mayer apenas cresceu. Seu trabalho vai do puramente conceitual à prosa fluida. No vídeo abaixo, ela oraliza seu texto "Eve of Easter", em 1978. O texto seria publicado no livro The Golden Book of Words (Lenox: Angel Hair, 1978). Mayer não é poeta sonora, nem faz piruetas vocais. Mas trata-se de uma leitura muito elegante, que me parece vivificar o texto. Eu, que ando tentanto aprender a oralizar meus próprios textos sem fazer muita voz de reza, gosto bastante do vídeo e da leitura.





Véspera de Páscoa

Milton, que forçava suas filhas ágrafas
A ler para ele em cinco línguas
Até receberem a notícia que ele se casaria de novo
E disseram que prefeririam ouvir que ele morrera
Milton que transforma até mesmo Paradise Lost
Em uma autobiografia, eu tenho três
Bebês esta noite, todos estão dormindo:
Rachel a tataraneta
De Herman Melville dorme na cama
Sophia e Marie estão dormindo
Sophia homônimo das mulheres
De Lewis Freedson o acadêmico e Nathaniel Hawthorne
Marie o nome mais velho de minha mãe, estas três meninas
Em repouso na escuridão, eu fiz a escuridão luzente
Eu roubei imagens de Milton para curar o tenebroso opaco
Para tornar o quarto um globo sob esta rouca
Lua de março, eclipsada só à luz do dia
Corpos de bebês em respiração pesada
Filhas e descendentes na presença dos
Grandes, Milton e Melville e Hawthorne, todos falando
Ao mesmo tempo, eu apenas as olhei todas fundidas
Cada uma parte semita, de uma raça sempre em guerra
O restante de sua graça herdada
Dentre nórdicos, alemães e ingleses, escritores na paz
Apressando judeus em guerra para a democracia quando em verdade
A paz está à janela implorando admissão
Com as hordas em meio ao ar
Frio demais para esta época do ano,
Véspera de Páscoa e a chocante ideia da ressurreição
Algum dos bebês mexe-se agora, faminto por um ovo
É a bebê Melville, pronta para a gritaria
A Melville chupa seus dedos como consolo
Ela faz um som de grunhido
Bebê Hawthorne ainda em sono profundo
A que assemelha-se a minha mãe está apagada
A Melville ainda que a menor é a que mais quer
Porque não vive em verdade aqui
Hawthorne vai querer ser amamentada quando acordar
Melville chupou um pouco e logo cochilou novamente
Agora Hawthorne está se movimentando, a mais faminta
Mas talvez a mais seduzida pela escuridão no quarto
Eu posso escutar Hawthorne, sei que agora está acordada
Mas será que se moverá, perturbando o sono plácido
De Melville e insistindo em despertar-nos a todos
Enquanto isso o restante das pessoas de Lenox
Sobem e descem as ruas de carro
Agora Hawthorne quer comer
Todas elas veem a luz à qual escrevo, Hawthorne suspira
A casa está quieta, eu escuto Melville e seu jogo
Eu nunca troquei as fraudas de um garoto
Acho que vou pegar Hawthorne e amamentá-la pelo prazer
De cortar em meio à escuridão antes que seu barulho comedido
Estimule os garotos, cozinharei um peixe
Mantendo a postura na presença
De intrépidos descendentes, obstinados seus pais
Olham-me e brindam tinta
Eu devolvo o olhar para as filhas como quem pisca
Véspera de Páscoa, eu herdei este
Sono pacífico dos filhos de homens
Rachel, Sophia, Marie e novamente eu
Bernadette, toda coração eu vivo, toda crânio, toda olho, toda ouvido
Eu perdi o preconceito do paraíso
E acabei aqui, cuidando dos bebês destes caras


(tradução de Ricardo Domeneck)



Bernadette Mayer nos últimos anos tem sido publicada pela importante editora heróico-modernista New Directions, que primeiro lançou A Bernadette Mayer Reader (New York: New Directions, 1992), seguido de trabalhos como Proper Name & other stories (1996), a reedição de Midwinter Day (1982/1999), Scarlet Tanager (2005) e o seu mais recente, Poetry State Forest (2008).



Sob a força desta leitura-em-vídeo, procurei novamente trabalhos dela na Rede. Passei a manhã com Poetry (1976), que traz desde textos mais conceituais a textos em prosa e sextinas, do qual extraí e traduzi o poema abaixo.


.......................O porto


............Nós contamos a eles os mitos de outros
............Sentados ao redor da velha, imponente nau
............E à mesa da nau, que fora despachada
............Dalgum porto distante.
............O despenseiro chegou em busca das cartas
............À espera de notícias de um porto próximo
............Mas, como o vinho que bebêramos cedo demais,
............Nossos corações estavam com a nau
............Onde afinal nossa mesa fora posta.
............Parte de nossa atenção concentrava-se
............Na tempestade a flagelar-nos como se a chuva
............Pudesse sobrepujar a presença de outros
............E da velha devoção no discurso do capitão.
............O capitão preferia antigos modelos de exórdio
............Àqueles que eram curtos
............E interceptara a carta do despenseiro
............Durante o seu próprio discurso inicial,
............Abreviado com loas à companhia dona da nau.
............Ele acusou-nos de sermos velhos e alcoólatras
............E de deixarmos bigodes que se enroscavam
............No sal do mar em que navegávamos
............Se ao menos pudéssemos deixar o porto.


.......................(tradução de Ricardo Domeneck)



Clique na imagem para ler o original




Se você não conhece a incrível página Eclipse, que mantém arquivos em pdf dos livros do início de carreira de vários poetas norte-americanos da década de 60 e 70, conheça-a já. A página declara apresentar: "exemplars of the new trobar clus, adventures in diminished reference, lost classics of modernism, écriture actuelle, hard-core composition, ephemeral memos filed by the Research Division of the Bureau of Resistance, and a series of sacrifices in which the victims are words.", heroicamente editada por Craig Dworkin.


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quarta-feira, 20 de abril de 2011

Manhã berlinense com música do britânico Orlando Higginbottom e poemas do americano CAConrad.

Manhã de sol em Berlim. Enquanto O Moço ainda dorme, trabalho em um artigo sobre o grande poeta português António Franco Alexandre para a franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.. Na janela está finalmente verdíssima a árvore (será uma sínquise?). "Que sol! Vai ser ótimo hoje à noite na SHADE", diz Rocirda quarta-feiramente espevitada. "É cedo ainda, fica quieta no teu canto que eu estou trabalhando", digo.

Como o pó de café em casa acabou e meu roommate ainda não roubou um quilo novo do serviço, desço à padaria turca da esquina e peço um café zum mitnehmen (to go/pra viagem). Termino o artigo sobre António Franco Alexandre, parte de uma série de postagens sobre poetas lusófonos. É que havia percebido que andávamos publicando pouca coisa em português na franquia eletrônica, ainda que me orgulhe do trabalho de tradução que empreendemos ali desde 2007. Após publicar poetas jovens como as ainda inéditas em livro Helena Schmid (Brasil) e Tatiana Faia (Portugal), escrevi sobre o ótimo poeta carioca Leonardo Fróes. Hoje, sobre o mestre António Franco Alexandre, de quem relera na cama, ao lado d´O Moço, o lindo "le tiers exclu, fantasia política", o primeiro dos longos poemas em Quatro Caprichos (1999). Acendo um cigarro. Rocirda não resiste e diz em voz de ladainha: "O beijo, amigo, é a véspera do escarro...", mas é primavera, o sol parece brilhar pela primeira vez desde que o mundo é mundo, eu digo mais alto: "O beijo, amiga, é a véspera do orgasmo."

Querendo escutar música que faça sentido com este sol, penso imediatamente em minha queda abismática atual: o rapaz britânico Orlando Higginbottom, mais conhecido como Totally Enormous Extinct Dinosaurs.


Orlando Higginbottom, mais conhecido como Totally Enormous Extinct Dinosaurs



Como não ter uma das minhas quedas tardo-adolescentes? A criatura (que nasceu em Oxford em 1986) tem cara de moleque inglês que devia apanhar de bullies na escola por ter cara-e-corpo de nerd, e ainda faz música pop que não poderia ter sido feita em outro século. Além disso tudo, como se não bastasse, ele gosta de se apresentar vestindo uma fantasia de dinossauro (de cetim verde!) e usa exemplos de headgear dignos de Carmen Miranda. Resisto como?

A primeira canção que ouvi foi na pista de dança do meu clube-às-quartas-feiras, tocada pelo amigo Marius Funk. Chama-se "Waulking":


Totally Enormous Extinct Dinosaurs - "Waulking"



Explicação sobre o significado de "waulking" roubado da Wikipédia: "Fulling or tucking or walking ("waulking" in Scotland) is a step in woolen clothmaking which involves the cleansing of cloth (particularly wool) to eliminate oils, dirt, and other impurities, and making it thicker. The worker who does the job is a fuller, tucker, or walker."

Estou tentando trazer Orlando Higginbottom para tocar na minha SHADE inc aqui Berlim. Escutando o álbum de estreia dele meio obsessivamente (eu tendo a me obcecar, como os mais atentos já devem ter percebido), chamado All In One Sixty Dancehalls.



Totally Enormous Extinct Dinosaurs - "Household Goods"



Antes de acordar o Moço para irmos comer e ler ao sol (estou lendo uma tradução inglesa de um romance de Primo Levi e uma antologia alemã de poemas de Yiannis Ritsos), decido traduzir alguns poemas de um livro que me divertiu muito no ano passado: The Book of Frank (2010), do americano CAConrad. Sim, assim mesmo, numa palavra só: CAConrad. No livro, Conrad cria uma personagem chamada Frank, em puro humor autodepreciativo (meu tipo favorito de humor), algo como o Henry do seu conterrâneo John Berryman (1914 - 1972) nas Dream Songs (1969). O poeta é hoje um dos poetas contemporâneos dos Estados Unidos mais conhecidos no país (impressão que tenho pela Rede) e tem um trabalho muito legal de divulgação de outros poetas em um blogue no qual posta leituras em vídeo. "Vejam só! um poeta que não divulga só o próprio trabalho", Rocirda alfineta; eu me irrito um pouco: "Cala a boca, Rocirda, o povo já me acha chato sem estes teus comentários!"

Não vou cacarejar muito a respeito agora, deixando vocês com os poemas. Quem conhece e gosta de poetas como Susana Thénon e Bénédicte Houart, entre outros, vai reconhecer o tom e curtir, creio.



CAConrad faz uma turnê por seu banheiro




ALGUNS POEMAS DE CACONRAD extraídos do livro The Book of Frank (2008), com traduções de Ricardo Domeneck



ela era uma companhia exótica

a boca dela
cheia dum rato

Frank nunca ouviu uma palavra
seu olhar fixo no rato
desaparecendo para reaparecer
com cada sílaba

devoto
ele pediu
a Deus que ela
se casasse com ele

mas uma noite muito tarde
ela tocou sua mão

Frank repugnou-se
e percebeu
que na verdade
era o rato
na boca dela
que ele amava


:


she was exotic company

her mouth
full of mouse

Frank never heard a word
his gaze
steady on the mouse
disappearing to reappear
with every syllable

devoted
he prayed
to God she’d
marry him

but late in the night
she touched his hand

Frank recoiled
and realized
it was really
the mouse
in her mouth
he loved



§


Frank tenta ignorar
a menina que vive dentro
do seu colchão

ela nunca grita

nunca faz exigências

ele conversaria com
ela sobre os Mets*
mas ele teme que ela
nunca mais se cale

ele já não consegue masturbar-se
como estão as coisas


(Nota*: Os Mets são o time de baseball mais famoso de Nova Iorque, os New York Mets, ou Metropolitan Baseball Club of New York)


:

Frank tries to ignore
the girl living inside
his mattress

she never shouts

never makes demands

he would talk about
the Mets with her
but he’s afraid she
might never shut up

Frank can’t masturbate
as it is



§


o porco diz a Frank
"esta cerca te prende em teu mundo"
Frank diz ao porco
"esta cerca te prende em teu mundo"
o porco diz a Frank
"esta cerca te prende em teu mundo"
Frank diz ao porco
"esta cerca te prende em teu mundo"
o porco diz a Frank
"esta cerca te prende em teu mundo"


:


pig says to Frank
“this fence keeps you in your world”
Frank says to pig
“this fence keeps you in your world”
pig says to Frank
“this fence keeps you in your world”
Frank says to pig
“this fence keeps you in your world”
pig says to Frank
“this fence keeps you in your world”



§


Todas as noites
Frank dissolve-se
Em seus lençóis

Não um macho
Mas uma mancha

Sua mulher esfrega
nele cedo
até que ressuscite
sua matinal
vagina...


:



Every night
Frank dissolves
Into the sheets

Not a man
But a stain

His wife rubs him
back to life with
her early
morning
vagina…



§


Na irmã de Frank cresceram longas penas azuis

ela disse que era pior que cortar dentes

e passou um mês gritando na caverna
arrancando-as

Frank ficava acordado em sua cama à noite
alisando as próprias costas

chorando

rezando que não lhe acontecesse
o mesmo

mas o dia em que sua irmã voou para casa
ele ficou à janela assombrado
propagação azul gigante a sobrevoar o lago

ele ouviu o tiro do caçador antes dela


:


Frank’s sister grew long blue feathers

she said it was worse than cutting teeth

she spent a month screaming in the cave
pushing them out

Frank would lie in bed at night
touching his own back

crying

praying it wouldn’t
come to him

but the day his sister flew to the house
he stood by the window in awe
giant blue spread coming in across the lake

he heard the hunter’s shot before she did


§


"o senhor me daria
um autógrafo, Seu Poe?"
Frank pergunta à pilha de ossos
entre pás de pó

"mas é claro meu caro
jovem" responde Frank com
uma voz diferente


:


“would you sign
my book Mr. Poe?”
Frank asks the pile of bones
amidst shovels of dirt

“why certainly young
man” answers Frank in a
different voice



§


flores
de maio

Frank fecha
as pernas

mas

ainda

vaza

música


:


May
flowers

Frank shuts
his legs

but

music

seeps

through


§


"Eu vim ver o show" disse o homem
buscando sob a camisa de Frank a porta

"Eu não sou um teatro" disse Frank

formou-se uma fila

ele terá que convidar todos?

muitos tinham guarda-chuvas

uma mulher cega
esperava
com seu cão

"vai ser um show incrível" disse alguém
"mas quando ele vai nos deixar entrar?"

as lágrimas de Frank começaram a rolar

alguém arrombou suas portas

eles o lotaram por cerca de uma hora


:


“ I’m here for the show” the man said
looking under Frank’s shirt for the door

“I’m no theater” Frank said

a line formed

must he admit them all?

many had umbrellas

a blind woman
waited with
her dog

“it’s gonna be a great show” someone said
“but when’s he gonna let us in?”

Frank’s tears began to fall

someone ripped his doors open

they filled him for an hour



§


por recomendação do médico
Frank parou de barbear a cadeira

em um mês
ela tornou-se a cadeira mais confortável
da casa


:


at the doctor’s request
Frank stopped shaving the chair

in a month
it was the most comfortable chair
in the house



§

"ninguém mais está
FARTO desta
paralisia da
gravidade!?"
Frank pergunta

"quando eu era menino
eu pisava no céu
e eu era um menino
não um surrealista!

parte do sonho
é que você aceite
a vigília
como parte do sonho."


:



“is no one else
SICK of this
paralysis of
gravity!?”
Frank asks

“when I was a boy
I stepped into the sky
and I was a boy
not a surrealist!

part of the dream
is that you accept
your waking life as
part of the dream.”



§


Frank tinha corvos por mãos

foi uma infância difícil

na janta durante a oração
seus corvos agitavam-se
excitados com o nome do Senhor
"FRANK! FICA QUIETO!" Mãe berrava
"você lavou os corvos!?
você lavou estes seus CORVOS FEDIDOS IMUNDOS!?"

Quando Pai morreu
encontraram Frank
cavalgando-o
seus corvos a bicar
as sete obturações de ouro


:


Frank grew crows for hands

it was a difficult childhood

at dinner during prayer
his crows flapped
excited in the name of the Lord
"FRANK! KEEP STILL!" Mother hollered
"did you wash your crows!?
did you wash your FILTHY STINKING CROWS!?"

when Father died
Frank was found
straddling him
his crows picking the seven
gold fillings



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terça-feira, 19 de abril de 2011

Vídeos e trabalhos novos de amigos que conjugam texto e música: o duo Tetine, Florian Pühs e sua banda Herpes, e a belga-ruandesa Barbara Panther

Já escrevi várias vezes aqui sobre estes amigos, pessoas que respeito e admiro. Aqui seus mais recentes vídeos, extraídos de seus mais recentes álbuns.

§ - "Voodoo Dance", do Tetine, extraído do álbum Voodoo Dance & Other Stories (Slum Dunk Music, 2011).





Eliete Mejorado e Bruno Verner formaram o Tetine em 1995 e desde então vêm produzindo alguns dos trabalhos mais interessantes nas fronteiras entre performance, vídeo, poesia e instalação. Desde o início do século estão radicados em Londres, onde já organizaram para o importante selo Soul Jazz Records compilações de música brasileira, como a já lendária antologia The Sexual Life of the Savages: Underground Post-Punk from São Paulo (Soul Jazz Records, 2005), além de estarem entre os responsáveis pela disseminação de nomes como Tati Quebra-Barraco e Deize Tigrona entre os produtores de electro, grime e outros gêneros híbridos europeus. O duo já colaborou com Sophie Calle e Robin Rimbaud, suas performances e instalações foram vistas no Palais De Tokyo (Paris), no Museu Serralves (Porto), na Bienal de Liverpool e no teatro berlinense Hebbel Am Ufer. Na Whitechapel Art Gallery, em Londres, tiveram sua estreia europeia em 2000 com a performance sonora Tetine: The Politics Of Self Indulgence. Com dois amigos alemães, criei o selo Kute Bash Records apenas para relançar em vinil seu trabalho L.I.C.K. My Favela (Kute Bash Records, 2006), e criamos juntos a peça "Mula", uma das coisas que mais me alegraram na vida. Este é o décimo-primeiro álbum do Tetine. O vídeo para "Voodoo Dance" foi dirigido pela própria Eliete Mejorado (maravilhosa), como praticamente todos do duo. Nos últimos dois álbuns, o Tetine tem nos dado exemplos do que a música pop brasileira também pode ser.




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§ - "Das Karnickel im Hut", do Herpes, extraído do álbum Symptome und Beschwerden, com lançamento previsto para maio deste ano pelo selo Tapete Records.






Florian Pühs é o vocalista e letrista da banda de synthpunk alemã Herpes, formada em 2008. Aos 16 anos, por volta do ano 2002, Florian começou a angariar sua reputação no subterrâneo punk alemão com sua banda Surf Nazis Must Die, que desde o seu fim atingiu cult status na Europa e principalmente nos Estados Unidos. Eu o conheci em 2005 e tornamo-nos amigos, ele discoteca com frequência no meu evento semanal, mostrando seu lado de produções de techno. Symptome und Beschwerden (Tapete Records, 2011) é o segundo álbum de sua banda atual, Herpes.

No ano passado, com Das Kommt vom Küssen (Tapete Records, 2010) os textos satíricos de Florian Pühs já haviam ganhado fãs e desafetos para a banda, estes últimos entre os que não compreendem bem a ironia do letrista e poeta satírico alemão, nem sua marca pessoal de humor autodepreciativo (meu tipo favorito de humor). "Das Karnickel im Hut" é o novo single da banda, que traduz como "o coelho na cartola" e tem uns momentos legais, como no refrão:


"Und auch wenn das Kanninchen im Hut verschwindet
scheisst es dir früher oder später auf den Kopf”



"E mesmo que o coelho desapareça na cartola,
cedo ou tarde acaba por cagar-lhe na cabeça"

Ou então na parte final, exemplo típico da ironia de Florian Pühs, que acaba gerando desafetos:

Ich baue mir eine Karriereleiter
Und steige hinab in den Schützengraben
Oh Hallo lieber Opa
Du Loser hast auch keinen einzigen Krieg gewonnen
Ich bin das Lachen am Ende der Leiter



É difícil traduzir o jogo de palavras aqui. "Karrierleiter" é a noção de carreira profissional, algo como "escada carreirista", expressão para os que buscam (quem sabe mais sensatos que nós) sucesso financeiro. Pühs usa a ideia de "escada" no sentido também literal, para subir na vida e, no verso seguinte, usar a escada para "descer às trincheiras". Aí vem o sarcasmo e a ironia:

Eu construo uma "escada/carreira" profissional
E desço às trincheiras
Ô, olá, querido avô
Seu loser, não ganhou guerra alguma
Eu sou a gargalhada ao fim da "escada"


Eu curto muito. Para mim, é uma das possibilidades da poesia satírica contemporânea, aliar-se a guitarras. Obviamente, não para aqueles que acham que a poesia só pode habitar o sublime ou o órfico. Os que não leem Marcial, por exemplo.




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§ - "Moonlightpeople", de Barbara Panther, extraído do álbum Empire, com lançamento previsto para maio deste ano pelo selo City Slang.




Conheço Barbara Panther desde 2006, quando ela primeiro se mudou para Berlim, vinda da Bélgica. Ela nasceu em Ruanda, mas cresceu na Valônia. Foi em nosso evento às quartas-feiras que ela se apresentou pela primeira vez na Alemanha. Após anos à procura de uma gravadora, no ano passado ela teve a sorte de que o genial músico e artista britânico Matthew Herbert se apaixonasse por sua música, fazendo com que a belga-ruandesa encontrasse casa fonográfica no selo City Slang. Esperamos com ansiedade por esta estreia tardia de uma mulher muito talentosa. Mesmo que talvez não particularmente neste "Moonlightpeople", Barbara tem um talento lírico-textual muito forte, algumas de suas letras são muito potentes. Além desta música que simplesmente me pega pela jugular.






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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Um poema de Faiz Ahmed Faiz e sua consciência oral exemplar

Faiz Ahmed Faiz (1911–1984) foi um poeta paquistanês de língua urdu. Eu primeiro o descobri através de um vídeo em que ele oraliza um de seus poemas na companhia de amigos, talvez admiradores. O que mais me fascinou foi sua "leitura" do texto. Era como se ele estivesse apenas conversando com aquelas pessoas. Me fez pensar também no conselho de Pound em carta a Harriet Monroe, que já mencionei aqui em artigo sobre os poemas de Hilda Machado, quando o americano diz: "nada – nada que você não possa, em alguma circunstância, sob a tensão de alguma emoção, realmente dizer."

Pessoalmente, esta proposição de Pound tem estado muito presente em minha mente, em meu próprio trabalho. Quem acompanha os poemas recentes que tenho postado aqui talvez tenha percebido algo. De qualquer forma, não acho que a proposição deva ser restritiva, duvido que Pound a quisesse assim.

No caso de Faiz Ahmed Faiz, como não falo urdu, não sei uma palavra sequer na língua, não posso julgar seu aspecto textual. As traduções para o inglês que tenho lido mostram um poeta de simplicidade e sabedoria. Ele tem se tornado um favorito. Ouça sua oralização do poema no vídeo abaixo, com tradução para o inglês. Note como praticamente não há qualquer mudança de voz entre sua introdução ao poema e o poema em si. É como uma conversa entre pessoas emocionadamente inteligentes, inteligentemente emocionadas. O vídeo então corta para imagens do país e a voz da cantora Nayyara Noor, cantando o mesmo texto. São duas possibilidades para o mesmo poema. Tenho aprendido com este vídeo, com Faiz Ahmed Faiz, aquela roda de pessoas respondendo a um texto, unidas ainda às possibilidades dadas pela voz bonita de uma cantora.






É como uma simplicidade sofisticada. Me pergunto se de alguma forma se trata da sensibilidade de poeta que já provou gosto de celas. Sinto um pouco disso ao ler também, por exemplo, o turco Nazım Hikmet (1901 – 1963), o grego Yiannis Ritsos (1909 — 1990), alguns outros. Temo que para eles nossos debates sobre função social do poeta pareceriam ladainha de literatos. Eles tiveram poemas queimados por ditadores em praça pública, e, no entanto, seus poemas jamais parecem sentir a necessidade de erguer a voz. Estou tentando aprender sobre este falar em voz baixa. Voltei a lê-los estes últimos dias, recomendo-os a vocês como quem quer compartilhar algo muito delicado, mas muito forte. Quem sabe, talvez um dia poder sentar em roda com algumas pessoas inteligentemente emocionadas, emocionadamente inteligentes, e, sem descuidar demais do textual, poder apenas dizer um texto, que só venha a ser chamado de "poema" por questões de convenção.


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terça-feira, 12 de abril de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp

Sigo aqui com minha série de artigos sobre alguns poemas publicados na década passada, aqueles que me pareceram mais memoráveis dentre os que tive a sorte e alegria de ler. Após escrever sobre os poemas "sereia a sério", de Angélica Freitas (Pelotas, 1973), e "Miscasting", de Hilda Machado (1952 - 2007), dedico a postagem de hoje ao poema "Limite", de Juliana Krapp (Rio de Janeiro, 1980), seguido de alguns outros de sua autoria.


Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp
ou Fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e língua


Dentre os poetas surgidos na década passada, a carioca Juliana Krapp sem dúvida produziu alguns dos textos que mais permaneceram em minha memória, gerando prazer e tensões. O que mais se pode pedir de um contemporâneo? Seus poemas, além do simples contentamento feliz da beleza que possuem, parecem-me textos tesos e cheios de implicações frutíferas. Vale dizer também que, especialmente dentre nós poetas sempre tão apressados em lançar ao mundo nossas palavras, a discrição da poeta carioca tem sido algo com que aprender. Nascida em 1980, Juliana Krapp publicou até o momento pouco mais de uma dezena de poemas, espalhados em revistas como Inimigo Rumor (a primeira a presentear-nos com eles) e Poesia Sempre. Em 2007, tivemos o prazer de contar com alguns inéditos seus no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co. e, em 2008, alguns destes poemas foram traduzidos para o castelhano por Cristian De Nápoli e publicados no dossiê de poesia contemporânea brasileira do importante Diário de Poesía, editado em Buenos Aires e Rosário, Argentina. Em 2009, muitos deles foram mais uma vez traduzidos ao castelhano, desta vez por Teresa Arijón, e incluídos na antologia espanhola Otra línea de fuego. Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas, com organização de Heloísa Buarque de Hollanda, reunindo quatorze autoras produzindo hoje no País, além da decisão, que a mim parece estranhíssima ainda que previsível, de incluir na antologia textos de Ana Cristina Cesar.

No Brasil, seu trabalho ainda não foi reunido em livro, para ansiedade de alguns de seus leitores, dos quais estou certo de não ser o único. Imagino ser uma decisão por sua já mencionada discrição, sei que há editores entre seus leitores, também de olhos arregalados como nós. Talvez seja o respeito a algum prazo ditado por sua integridade artística, falta de pressa, pressa, afinal de contas, para chegar aonde? Enquanto esperamos que seu livro de estreia saia, contamos na Rede com alguns de seus textos bonitos, dentre eles este com o qual gostaria de começar este artigo dedicado a seu trabalho.

O poema foi publicado pela primeira vez em 2006, texto com que Carlito Azevedo abriu a seção dedicada a Juliana Krapp em seu "Dossiê: 15 Novos Poetas", do número 18 da revista Inimigo Rumor.


Limite
Juliana Krapp

Sebe é um acúmulo de varas entretecidas
cerceando
por vezes sim por vezes não

eu sei
do esforço para persuadir
naturezas terríveis

simultaneamente
à graça dos perímetros
que permanecem estanques

(a dor de coabitar
tanto as frinchas quanto os
confinamentos)

Quando rarefeitos, os movimentos
aguardam mais do que a conclusão, preferem
o desdém e o resguardo
ou mesmo esse estalido
(um arquejo)
embalado
pelo embaraço hipnótico
das pequenas sombras

Somente as ventanias são de fato enamoradas
e apenas nelas alijam-se
as imundícias mais profundas

como somente os ramos
estraçalham-se e engravidam-se
num único carretel de músculos em escombros

(um aparelho de tensões
alimentado pelo ritmo
dos sumidouros)




Não é trabalho de fácil entrega, aproximar-se de um texto como este de Juliana Krapp requer toda a atenção est-É-tica que possuímos, não por qualquer hermetismo, mas porque sua poesia parece tão clara naquilo que Jacques Roubaud definiria como o "não-parafraseável". Minha primeira vontade de exegese para um poema como este é simplesmente relê-lo, repeti-lo, reproduzi-lo, uma vez mais e outra, dizer: "caro leitor, a exegese deste poema é o próprio poema". Parece-me bastante preciso em sua textualidade, mas aqui não compete falar tanto em concretude ou materialidade, pois não há qualquer mera teatralização visual da linguagem. O que há é uma clareza textual lúcida em sua opacidade, equilibrada entre transparência e não-transparência do signo - não creio que encontraria descrição mais concisa para o que tento chamar aqui de textualidade.

Não temos como saber em que momento Juliana Krapp escolheu o título do poema: se com ele começou, ou se ele pareceu-lhe o mais apropriado ao terminar sua escrita. Não importa muito: como leitores, ao iniciarmos nossa experiência do poema, é como se o texto a seguir fosse uma espécie de desdobramento semântico do seu título, limite, que passa a ser muito menos rótulo ou bula que embrião. Após terminar a leitura do poema, não se consegue imaginá-lo com outro título, uma instância de sua precisão.

A poeta passa então a uma definição própria de "sebe". Em alguns dicionários nos quais busquei a palavra, encontrei entradas muito parecidas: "1. Tapume vegetal para impedir a entrada em terras cultivadas. 2. Tabique; taipa. 3. Tapume de varas delgadas com que se cerca o tabuleiro do carro e se ampara a carga". A elas, Juliana Krapp introduz desde o princípio uma incerteza deste cercear, uma indeterminação: "Sebe é um acúmulo de varas entretecidas / cerceando / por vezes sim por vezes não". Alguém com a mentalidade crítico-poética presa no tempo, lá pelos idos de 1922, poderia protestar e dizer: "mas sebe não é o mesmo que cerca? Por que usar então sebe?". Ora, meu caro, a única resposta educada seria: porque não são exatamente a mesma coisa. Trata-se de um detalhe de precisão. Não é o preciosismo que se vê por aí, nem exotismo. É precisão que vê elementos importantes na palavra "sebe", ligados intrinsecamente ao campo semântico do poema: seu entretecer-se e entrelaçar-se são essenciais aqui. Além disso e talvez mais importante, um dos dicionários nos lembra que sebe é uma cerca viva, que pode ser um "renque cerrado de árvores ou arbustos". Esse aspecto é importante para todo o poema, que poderia mostrar-se como uma fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e através da língua. Um processo de individuação como experiência do limite.

Em seu estudo Eros The Bittersweet (1986), a poeta canadense Anne Carson (n. 1950) descreve como esta experiência do limite é essencial para a compreensão da experiência lírica, ligada a Eros: a experiência do limite que individualiza uma palavra em meio ao fluxo sonoro da fala, que individualiza o ser humano em meio ao contato com os outros, que individualiza, até mesmo, a vogal de sua consoante, naquilo que Carson argumenta ser o gênio da revolução cultural representada pelo alfabeto grego. Limites sonoros e visuais que nos dão as letras do alfabeto, as palavras específicas em uma sentença. Também a nossa pele mostrando-nos onde começamos e nos encerramos, nossa fronteira que é contacto com o mundo. É como se o poema "Limite", de Juliana Krapp, reencenasse este drama da experiência dos limites e fronteiras, e, assim, também do que separa o eu do outro, o que faz de nossa consciência algo a não se esparramar pelo ar do mundo, experiência pessoal contida pela própria pele. O poema de Krapp é, em minha opinião, tanto erotizado quanto angustiante, neste sentido, em suas atas de sedução. Ao escrever "eu sei / do esforço para persuadir / naturezas terríveis", não sabemos se a poeta refere-se à experiência da aprendizagem pessoal ou da sedução do outro. Se a poeta aqui fala de si ou de outrem. Há um fluxo entre concreção e abstração admirável no poema, como na sequência "simultaneamente / à graça dos perímetros / que permanecem estanques", que é então justaposta a "(a dor de coabitar / tanto as frinchas quanto os / confinamentos)". Nada é acidental aqui: a escolha de um advérbio como "simultaneamente" está ligada a toda esta experiência do ser como uma cidade sitiada, de ser, ao mesmo tempo, o que protege e o que constringe. Frinchas para o escape do confinamento e para a própria formação do confinamento, frincha pela qual se escapa, frincha que aperta - na qual se coabita. Aqui, mais uma vez, a precisão, a lucidez da poeta na escolha do prefixo.

A imagem do vento como uma moção erotizada é muito feliz, sendo uma das poucas manifestações do não-estanque no poema, dando-nos o que cobre distâncias, une separações, atravessa limites: "Somente as ventanias são de fato enamoradas", pois realizam o movimento de suprir faltas entre espaços abertos. "Limite" reencena, parece-me, o que Carlos Drummond de Andrade chamou de "a falta que ama".

As justaposições são importantes, pois há um trabalho sintático intrigante no poema. Sem ser exatamente (ou talvez devesse dizer "sem ser exageradamente") paratática, na sintaxe dos textos de Juliana Krapp há um fluxo de interrupções, de silêncios e espaços, sem no entanto destruir a organicidade do texto. São elipses que não rendem desconjuntado o poema, pois há na autora clareza de pensamento e apresentação. O uso da elipse não se faz presente apenas pelo carnaval bobo do antidiscursivo que mal consegue terminar um pensamento.

A sonoridade do texto é também interessante: Juliana Krapp não usa qualquer técnica obviamente cantável - não há rima, não há assonância ou aliteração marcadas. Mas isso não é descuido com este aspecto da composição. O leitor (pelo menos é o meu caso) sente o texto mesmo assim como composição tesa. Isso me intrigou, e, ao pensar sobre este aspecto do poema, pareceu-me como se a poeta praticasse uma espécie de atonalidade em escrita. Como se o equilíbrio e harmonia se dessem justamente pela não-repetição, por uma variegação de sons.

O texto recorre basicamente à metonímia e haveria quase uma desmetaforização se não fosse por um verso como "num único carretel de músculos em escombros", que mesmo assim parece equilibrar-se na corda bamba mas tesa entre metafórico e metonímico. No entanto, nada há de prosaísmo no texto.

Também não são como os "sintagmas que se escandem completos" de Murilo Mendes nas palavras de Haroldo de Campos, mas não apenas pelo uso inteligente que Juliana Krapp faz do enjambement. A surpresa que ela doa ao leitor que segue seu pensamento vem pela clareza, ainda que elíptica, de suas observações, de seu pensamento. Em minha opinião, ainda que se possa reclamar o texto para a estirpe dos poetas que dançam entre pensamentos, os da logopeia, parece-me haver um equilíbrio entre imagem, som e pensamento.

Sua poesia também me parece admirável na maneira como objetividade e subjetividade se entrelaçam. Mas, para comentar isso, gostaria de chamar a atenção do leitor para outro poema de Juliana Krapp, intitulado "Av. Brasil" e publicado originalmente no número 20 da revista Poesia Sempre.


av. brasil

o que se salva aqui são apenas
os elementos construtivos:
condutores singelos
traço um para três
cornija

uma secura de mão doente
essa carne nunca sabe
o que é degradado e o que é
desterro
mas impenitentes as platibandas
arregaçam
o que reluz: intempéries
tomadas de assalto
pela ferocidade branca
de um clique




Em outros poetas dos últimos 25 anos, ligados à busca da objetividade apregoada por ótimos poetas como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, teríamos uma descrição desapaixonada do ambiente urbano da Avenida Brasil no Rio de Janeiro, feita por um eu escondido. Mas em poemas de Juliana Krapp é difícil falar sobre objetividade ou subjetividade, porque nos poemas dela eles se confundem. Há uma espécie de mundeulinguagem, se me permitem o neologismo para expressar como sinto sua junção expressiva do indivíduo apreendendo a urbe por sua língua. Um poema como "av. brasil" não é mera descrição da paisagem. Ali, a paisagem, a linguagem e a percepção da poeta são uma coisa só. Gosto de observar como seus poemas poderiam dar-nos bons exemplos para a investigação sobre o que acontece entre as palavras, desposando para isso tanto semântica como sintaxe.

Outro poema seu que parte de um topônimo:


ladeira da glória
Juliana Krapp


ele se erige como um pergaminho
em aliciante embaçamento
fazendo supor
que toda água já nasce escaldante
e, ainda assim, vibra,
a marteladas

hoje acordei
embalada por imperativos. mas foi ele quem inventou
esse cansaço labiríntico

e me trouxe aqui, com
a boca inflamada pela pressa
nos dentes, uma certa apreensão
— não por mordidas, mas por hálitos
categóricos

nele a ossatura se escancara a ponto de romper
com um estrondo a própria voz
e seu olhar apenas lembra
dobradiças, rosetas
cremones
e toda a sorte
de ferragens maliciosas

mas
entre nós estariam encerrados os dilemas
e as alíquotas
caso não houvesse
no trajeto do plano-
elevado que leva a essa igreja
imaculada de tão breve (pavimentos tristes,
vidros urgentes)
um esgotamento
ávido por pontas
desenraizado de cálculos
fortuitamente lançado sobre a baía



O vocabulário da poeta é sofisticado e foge com frequência do prosaico, mas nada tem a ver com o decadentismo exotizante típico de fim-de-século de certos poetas que se entregam a preciosismos ou uma poética randômica, misturando polissílabos exóticos caçados ao dicionário para soarem "poéticos", ou para insistir em exilar as funções poética e referencial da linguagem, como se estas fossem estanques e inconciliáveis. A diferença aqui reside entre o preciso e o precioso. O vocabulário de Juliana Krapp parece-me ditado simplesmente pela precisão de sua observação. Mimetiza e transfigura, como a poesia fez desde Safo, sem temer a realidade ou criar uma oposição entre esta e sua linguagem. Mas a precisão de linguagem, quando falamos sobre o trabalho poético, obviamente não é a que esperamos de um manual de instruções. Na poesia, a precisão da linguagem é algo inquinada.

Sim, sua poesia me parece sofisticada, mas não se trata de qualquer linguagem hermética ou aristocrática. Sua poesia requer atenção, sua leveza é tesa, densa. A alguns poderá parecer tentador ligá-la à poética pura dos neosimbolistas brasileiros. Se este for o caso, sua linguagem a conecta com poetas como Henriqueta Lisboa, mas não a mística dos livros da década de 40 e sim a autora que se agitava entre símbolo e signo num livro como Além da imagem (1963), ou a Orides Fontela dos eucaliptos "elásticos e elípticos", simbólicos e semióticos.

Em minha leitura muito pessoal da poesia contemporânea, que a alguns parecerá demasiado idiossincrática, sua poesia é uma instância do que venho chamando de "lírica analítica", de um eu extremamente desperto e consciente, com uma linguagem que não confia mais na mera naturalidade da voz própria, mas que se mostra sábia de seus artifícios. Creio reconhecer isso em poetas como Marcos Siscar (n. 1964), em Marília Garcia (n. 1979), em alguns outros.

Sobre o natural, eis o que a poeta pareceria ter a dizer:


in natura
Juliana Krapp


chegou a hora da prestação de contas:
às apalpadelas, de cor, ligeiro
gomo de amianto um tigre
dentro de um quadrado

à discreta contração de lábios não temos
sequer lastro de linguagem sequer
réplica e sua pouca carniça
— ao fundo só o desejo de orquidários
e uma perturbação de pernas

traiçoeira: uma única versão
que não fareje em seu reverso um último
recurso para a assepsia
mortal — rente aos pés a fabriqueta
formula estilhaços de atalhos presa
escandinava os olhos torpes e somente
o veludo cinza adentro do rasgo
do nome — esse




Com Juliana Krapp, aprendo sobre a discrição do que se constrói em silêncio e calma. Sobre como não parece ser saudável querer separar mundo e linguagem dentro de nós mesmos. Autora de poemas memoráveis, é minha sorte e alegria ser seu contemporâneo, como de alguns outros poetas hoje em atividade no país, sobre os quais em breve seguirei escrevendo. Espero que alguns de vocês assim o vejam também.



POEMAS DE JULIANA KRAPP

a estrutura íntima das horas


Acontece apenas no mar
de concreto protendido à beira
da estrada e apenas quando a estrada
tem algo de fogo
ensurdecedor:

um lagarto, osso
de candura, rompe
a respiração da tarde, penetra
em todas as substâncias — as rochosas
e as celestes, os líquidos escuros e
sua pantomima de espelhos

Enquanto tudo ao seu redor é ênfase
(profusão de tecidos
lancinantes),
o seu avesso
é puro vidro
ardoroso: quer partir
entreabrir-se em sulcos
lentos, desdobráveis

Você, ao volante, não percebe
mas isso tudo é como nós dois,
na Cinelândia, às cinco horas
de uma tarde de verão, com uma
caixa de alfajores e vontade de café, quando
há no ar algo de concha,
estiramento, zona cega: a experiência
do precipício


§

enseada

o ipê é como um ferro ele disse
as unhas pensas
no ardume da anunciação

sobre o rochedo
as têmporas afogueadas e o flagrante
da mandíbula irreparável do fim
da tarde (hóstia
em terracota)

nessa praia
as ondas enevoadas arrebentam o branco
........................os barcos
desabotoam a precisão das linhas
............e as ilhotas, desgrenhadas
............atracam visgos de luz

.......aqui, onde

a barbárie já nasce seca
................em seus olhos



§


Pretexto

o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores

de tudo resta sempre o seu mistério virgem
a beleza de íris os ares encardidos a córnea
tal qual um diadema espavorido
sobre nossas cabeças

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia
e travou o zíper sobre a pele



§


Punção

campanários. isso sim é uma casa
não aqui
onde os objetos sequer conspiram
onde a pele não se reconhece pele
e não se engendra cápsula de outra cápsula
posse de um único mistério
com seu agravo inabalável. uma casa

requer formas como dormideiras
que se recolham à carícia quando todas as carícias
são íntimas é tão surrado reconhecer
nas paredes que a única propriedade possível
é a fuga e mais ainda o sono profundo e
que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva
não passam de sentinelas
resfolegando seu passo de partida

esta casa
não é minha: não se alcança daqui o brejo
afetuoso ao fundo de todas as coisas
não se vê o fosso
translúcido extorquindo das frestas
as esquadrias

tampouco há cantigas
emudecedoras
quando as horas se constrangem ao toque
ou ao contato do antebraço
com o repuxo invisível do acrílico

nesta casa
(assim como em todas as outras)
só resiste a ânsia de um veneno
afogado
em seu desleixo por lãs e puxadores
um veneno tão debilitado e circunstante
inabitável
quanto a certeza de que há ainda
no mundo tanto tremor
por tão pouca terra



§


propriedade

como artifícios temos apenas as asperezas
a corpulência cabível em pavios desfigurados
ou os 28 dias necessários
para que se cure
o concreto

carregamos
nas extremidades fissuras
irreparáveis
e, nos olhos,
a cor mirabolante dos abatedouros

mesmo assim

as corredeiras
as sirenes os personagens
estão ao seu dispor

e ainda esse aguaceiro

onde o entreaberto é uma doçura
de tão fundo



§


reta

um carro de praça como uma jaula
água
da qual preciso
para partir. vê-lo — homem
........................embalsamável —
.......encouraçado pelas grades em flor
faro
na alameda escura
a dizer: aqui jaz
um coração abominável um
álibi amantíssimo
para essas dores
do desejo
........................partir
.....exige animais vivos (o sangue
................secreto
.........de uma ave noturna)
enquanto o ar reclama
as singraduras
de uma música
meramente informativa



§


armazéns


seria apenas a ausência impertinente de arredores
ou sua respiração de treva que oscila e foge
por debaixo da porta (a beleza
inteiramente desamparada)? mas este
cais de porto
é, de fato, uma chave.
suas nervuras e estalos
como fábulas
úmidas. (os agentes narrativos são incapazes
de identificar a estiagem
e o sinal dos tempos
nas amuradas). e ainda esta dor
selvagem ancorada às turbinas e granéis
ao maquinário rasgado em itinerários
de vapores e conspirações. a meticulosa
delicadeza da noite entregue
toda ao gesto de içar: originalíssimo
e escravo das circunstâncias.
(neste instante você segura a minha mão
e a põe contra o peito, temendo
a face invisível das embarcações) a água
que cresce como um germe negro ao redor, como
um calafrio inédito um
verbo inédito uma
presença quebradiça.
(mas o que é quebradiço
está morto? ou reverbera apenas
as manchas quentes de sangue no carpete?) você me diz
que sobre toda música incide uma renúncia
e mesmo este apito e enquanto diz
o horizonte reconhecível
assola de frios a linguagem
(é preciso, no entanto, reconhecê-lo em surdina
como se reconhecem nos álcoois
as rajadas de acalanto)



§


poética

o que é ferruginoso nunca será
corrosivo. quantas ideias
podem perturbar
esse lago sem vento? frutas
.............na superfície
em desacato
à delicadeza vamos
embora daqui você disse
....não
ainda há reparos a fazer, ainda
o lobo
que habita o fosso do poema
..................veja:
se contraio os joelhos
contra o coração
crio uma ponte
imprescindível — uma emboscada
para feras de graus variados, por isso
.............insisto
.............o ineditismo só cabe
...................no factual, este alagadiço
ter em casa um corpo
tão sentimental a ruir
.........dificulta amplamente
.....a execução das tarefas
..................respire:
....ar pródigo de terror
.............agora sim
.........vamos
deixar escancarada
.......a cena do crime
— sulco escarlate
...entre as pedrarias



§


fevereiro


Não seria mais possível o requinte do aço
escovado a tristeza mais ordinária a espessura
de um fôlego o atrito
.....¾ borracha irreversível ¾
.....Mas seria possível que
.....tendendo ao imagético manchado de
.....ruiva contemplação a manhã
ainda crispada de brechas

(uma oratória
imediatamente predisposta
ao rigor dos acontecimentos)

trouxesse as mãos em concha o sal
entredentes e uma vertigem
à qual se pressentisse a lógica desmesurada a tênue
miopia pousada no ombro tal qual uma fera
aspergindo o soro primeiro a fruta infindável a sede
que não tem mais para onde ir




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domingo, 10 de abril de 2011

Das canções favoritas: "Is this desire" e outras canções de Polly Jean Harvey



É muito difícil escolher uma canção favorita dentre as compostas por P.J. Harvey. Ela é muito fundamental na minha vida, mesmo em meu trabalho como poeta. Sempre considerei seus textos muito bons, exemplo de uma songwriter que mantém uma consciência textual. Além disso, seus momentos de minimalismo jamais foram marcados por qualquer esterilidade emocional, como entre os poetas cabralistas dos últimos 25 anos, que, para evitarem o sentimentalismo precisavam obliterar a emoção. Poucos poetas vocais expressam o que chamo de tristeza raivosa como ela. Um poeta-escritor pode aprender uma coisa ou outra com seus poemas vocais. Quero falar sobre algumas de suas canções e seus textos, os que tiveram maior impacto sobre mim.

Para começar, escolhi uma canção menos discutida, mas que me parece maravilhosa: trata-se de "Is this desire", que está justamente no álbum de P.J. Harvey chamado Is This Desire?, lançado em 1998, seu quarto trabalho. O texto poderia ser visto como um poema narrativo extremamente elíptico, mesmo assim de uma eficiência fanopaica incrível, algo que vemos também em uma canção como "This charming man", de Morrissey com os Smiths.



PJ Harvey vocaliza seu "Is this desire".


Is This Desire

Joseph walked on and on The sunset
Went down and down Coldness
Cooled their desire And Dawn said
"Let's build a fire"

The sun dressed the trees in green
And Joe said
"Dawn I feel like a king"
And Dawn's neck and her feet were bare
Sweetness in her golden hair

Said "I'm not scared"
Turned to her and smiled
Secrets in his eyes
Sweetness of desire

Is this desire, enough enough
To lift us higher, to lift above ?

Hour long
By hour, may we two stand
When we're dead, between these lands
The sun set behind his eyes
And Joe said : "Is this desire"

Is this desire, enough enough
To lift us higher, to lift above ?

Is this desire, enough enough
Enough inside, is this desire ?



O texto une novamente de forma eficiente a velha junção entre Eros e Tânatos. Ousa rimar sexy com eerie. A canção me parece assustadora, marcada por nosso desejo desesperado de transcendência. Nosso desespero entre o hedonismo e a ascese.

PJ Harvey tem outras canções que me ensinaram muito sobre tom, sobre ironia, sobre self-deprecation, sobre a tristeza raivosa. Quantos textos dos últimos 20 anos alcançam tal carga emotiva como "Rid of me"? Esta canção - tudo, seu texto, sua música, a voz de Harvey - me parece uma coisa deslumbrante. A encarnação de Medeia. Esta canção teve uma influência muito grande sobre minha personalidade, minha vida, minha poesia.





Rid Of Me
PJ Harvey

Tie yourself to me
No one else
No, you're not rid of me
Hmm you're not rid of me

Night and day I breathe
Ah hah ay
Hey, you're not rid of me
Yeah, you're not rid of me
No, you're not rid of me

I beg you, my darling
Don't leave me, I'm hurting

Lick my legs I'm on fire
Lick my legs of desire

I'll tie your legs
Keep you against my chest
Oh, you're not rid of me
Yeah, you're not rid of me
I'll make you lick my injuries
I'm gonna twist your head off, see

Till you say don't you wish you never never met her?
Don't you don't you wish you never never met her?
Don't you don't you wish you never never met her?
Don't you don't you wish you never never met her?

I beg you my darling
Don't leave me, I'm hurting
Big lonely above everything
Above everyday, I'm hurting

Lick my legs, I'm on fire
Lick my legs of desire
Yeah, you're not rid of me
I'll make you lick my injuries
I'm gonna twist your head off, see

Till you say don't you wish you never never met her
Don't you don't you wish you never never met her

Lick my legs I'm on fire
Lick my legs of desire



"Rid of me" está no álbum de mesmo nome, lançado em 1993, seu segundo. O álbum é excelente. Nele há outra canção também marcada pela tristeza raivosa de Medeia que marca a textualidade vocal de PJ Harvey. Trata-se de "Rub till it bleeds":





Rub 'Til It Bleeds
PJ Harvey

Speak, I'm listening
Baby, I'm your sweet thing
Believe what I'm saying
God's truth, I'm not lying

I lie steady
Rest your head on me
I'll smooth it nicely
Rub it better 'till it bleeds

And you'll believe me
Caught out again
I'm calling you weak
Getting even

And I, I was joking
Sweet babe, let me stroke it
Take, I'm giving
God's truth, I'm not lying

And you'll believe me
I, I, I'm calling you in
And I'll make it better
I'll rub 'till it bleeds



PJ Harvey encerraria a década e o século com um álbum muito bom, chamado Stories from the City, Stories from the Sea (2000). Na década passada, PJ Harvey produziu bem menos. Após lançar um álbum regular como Uh Huh Her (2004), voltou com o deslumbrante White Chalk (2007), um álbum intimista, maduro, com canções de textos maravilhosos, pungentes, tristes. Minha canção favorita é "Dear Darkness".





Dear Darkness
PJ Harvey

Dear darkness
Dear darkness
Won't you cover, cover
Me again?

Dear darkness
Dear
I've been your friend
For many years

Won't you do this for me?
Dearest darkness
And cover me from the sun

And the words tightening
The words are tightening
Around my throat

And, and...

Around the throat of the one I love
Tightening, tightening, tightening
Around the throat of the one I love
Tightening, tightening, tightening

Dear darkness
Now it's your time to look after us
'Cause we kept you clothed
We kept you in business
When everyone else was having good luck

So now it's your time
Time to pay
To pay me and the one I love
With the worldly goods
You've stashed away
With all the things you
Took from us



Este ano, PJ Harvey abriu a década voltando com outra coisa bonita, madura: o seu novo álbum Let England Shake (2011). PJ Harvey vem também compartilhando na Rede uma série de curtas feitos por Seamus Murphy para as canções, e mencionou Harold Pinter e T.S. Eliot como influências para os textos. Creio que minha favorita é "The Words That Maketh Murder".





The Words That Maketh Murder
PJ Harvey

I've seen and done things I want to forget;
I've seen soldiers fall like lumps of meat,
Blown and shot out beyond belief.
Arms and legs were in the trees.

I've seen and done things I want to forget;
coming from an unearthly place,
Longing to see a woman's face,
Instead of the words that gather pace,
The words that maketh murder.

These, these, these are the words-
The words that maketh murder.
These, these, these are the words-
The words that maketh murder.
These, these, these are the words-
Murder...

These, these, these are the words-
The words that maketh murder.

I've seen and done things I want to forget;
I've seen a corporal whose nerves were shot
Climbing behind the fierce, gone sun,
I've seen flies swarming everyone,
Soldiers fell like lumps of meat.

These are the words, the words are these.
death lingering, stunk,
Flies swarming everyone,
Over the whole summit peak,
Flesh quivering in the heat.
This was something else again.
I fear it cannot be explained.
The words that make, the words that make
Murder.

What if I take my problem to the United Nations?



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