sábado, 31 de março de 2012

Pequeno comentário sobre a função política do poeta a partir de dois poemas de Buffy Sainte-Marie

Descobri o trabalho de Buffy Sainte-Marie, nascida em 1941 no seio da nação Cree que sobrevive no Canadá, há um par de anos, durante minha pesquisa pessoal sobre a poesia oral e vocal, que me levara a abandonar os preconceitos literarizantes dos meus antepassados imediatos e buscar os praticantes desta tradição vivíssima, com seu arcabouço entre os Trobadours, Skalds e Goliardos medievais, chegando aos poetas-cantores do século XX, poetas orais e vocais como Woody Guthrie, Bob Dylan e Hedy West nos Estados Unidos, o belga Jacques Brel, o francês Georges Brassens, os canadenses Leonard Cohen e Joni Mitchell, o russo Vladimir Vysotsky, os chilenos Víctor Jara e Violeta Parra, entre tantos outros. Pesquisando sobre a geração anterior à que ficaria conhecida na década de 60 nos Estados Unidos, chegara a uma poeta satírica como Malvina Reynolds e seus vídeos no excelente programa televisivo de Pete Seeger, esta figura fenomenal. Foi entre os vídeos do programa que descobri as duas performances brilhantes de Buffy Sainte-Marie que mostro abaixo.

Somente preconceitos raciais e o trabalho eficiente da CIA em neutralizar poetas como Buffy Sainte-Marie poderiam explicar que uma mulher fenomenal como esta não seja idolatrada hoje ao lado de poetas-cantores como Bob Dylan e Joni Mitchell, vivendo hoje sem a fama insuspeita dos dois. Faz algum tempo que venho querendo escrever sobre ela, mas nestes últimos dias, pensando nas comemorações e protestos em torno da Ditadura Militar no Brasil, assim como a discussão com certos companheiros sobre minha postagem daquela página do Diário Completo de Lúcio Cardoso (sobre a relação entre escritor e Estado – voltarei a isso em breve), é que me vi uma vez mais ouvindo estas duas canções poderosas vez e vez outra aqui em minha caverna, pensando e pensando sobre a função política do poeta.

Em meio a tudo isso, houve duas outras situações neste mês que trouxeram novas perguntas a minha mente. Em primeiro lugar, minha última leitura em Berlim, ao lado do americano Black Cracker, da britânica Annika Henderson e da norueguesa Stine Omar Midtsæter, e as conversas que tive com vários amigos sobre suas impressões da leitura. Uma das conversas principais e mais interessantes girou em torno do caráter político de certos textos lidos naquela noite, alguns abertamente posicionados em sua política, outros altamente irônicos. Foi com tudo isso na mente que, há duas noites numa mesa de bar aqui no Berlimbo, conversava com duas amigas que são poetas-cantoras (não vou dizer quem são para não desviar a atenção da discussão), e discutíamos a despolitização do discurso poético na literatura e na música contemporâneas, assim como o uso que fazemos da ironia em nossos textos mais políticos. Lamentando o neo-hedonismo na poesia cantada atual, falávamos de Public Enemy e Bob Dylan, e passamos um bom tempo em torno da pergunta se a ironia ainda é apropriada e realmente eficiente diante de certos problemas políticos que deveriam ser enfrentados de frente por poetas. Mais uma vez, estas duas canções de Buffy Sainte-Marie vieram-me à mente.

Na primeira, "Little Wheel Spin and Spin", há um trabalho de concisão e ironia cortantes, num texto que nos leva tanto ao trobar leu dos trovadores como ao trabalho satírico dos Goliardos (que recorriam a esquemas de rima parecidos em latim), assim como a certos textos de Heinrich Heine e Bertolt Brecht. Tem uma função quase atemporal, pois tanto poderia referir-se à ganância em Roma como em Wall Street. Como eu gostaria de ter escrito os versos "Oh the sins of Caesar's men / Cry the pious citizens / Who petty thieve the 5 & 10s" ou "Turn your back on weeds you've hoed / Silly sinful seeds you've sowed / Add your straw to the camel's load / Pray like hell when your world explode"... Há ironia aqui, eficiente e que torna o poema funcional para qualquer momento, como sempre digo, já que vivemos eternamente no pré-distópico. Mesmo poetas contemporâneos posteriores como Harryette Mullen e Angélica Freitas usam estes recursos para seus textos de carga política na discussão de problemas raciais e de gênero no mundo contemporâneo, e de forma eficiente.

Aí penso em um poema poderoso como o é "My Country 'Tis Of Thy People You're Dying", sem podermos separar seu texto da performance cheia de autoridade de Buffy Sainte-Marie, e me pergunto se a ironia poderia ter sido usada ali. Tenho certeza que alguns amigos literatos dirão que o poema não se sustenta na página ou é "datado" e "de palanque". O que posso dizer é que sua força poética, de performance, e sua carga política me atingem em cheio todas as vezes que o ouço.

Mas é esta discussão que me parece estar no coração do problema que vivemos hoje, com a separação completa entre poeta e seu público. Esta ânsia por "sustentar-se no papel", este medo do "datado" levando poetas a ignorarem problemas que sempre foram tratados abertamente por poetas em seus momentos históricos, sem a preocupação (que hoje me parece tão patética) se seus textos entrariam em antologias escolares ou não. Era uma relação direta e aberta com seu público e seu momento histórico, sabendo que alguns textos sobreviveriam por tratarem de problemas eternos, mas sem negar-se a cuidar de questões que estavam marcando o calendário do seu uso pessoal do oxigênio coletivo, do ar de seus pulmões para soltarem palavras pela garganta, usando uma língua que é também propriedade coletiva, comunitária. Eram poetas realmente presentes. Até porque a apresentação de seus poemas exigia sua presença física, em contato direto com o público. É de uma miopia incrível ignorar as consequências destas trasnformações na distribuição e publicação para a recepção da poesia.

Ao tratar do genocídio de seu povo, não há como usar ironia, ainda que Buffy Sainte-Marie recorra ao sarcasmo mordaz diante da nação branca vitoriosa a engordar enquanto seu povo morria. Com o acúmulo de catástrofes sob os pés do Anjo de Benjamin, sempre uma nova matança exigindo nossa atenção, os genocídios passados vão se tornando abstratos, presos nas páginas dos livros de História, até que um poeta como Buffy Sainte-Marie ergue-se sobre seus pés em toda a sua autoridade criaturizada (uso o termo a partir de Celan) e nos atinge em cheio com a memória, trazendo à tona uma catástrofe passada. É poesia datada e eterna. É épica. É sim uma experiência histórica específica, mas nós poetas deveríamos saber que há o "tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar". É minha crença firme que a poesia escrita não encontrará novamente público amplo enquanto nós, poetas contemporâneos, seguirmos abstendo-nos de fincar os pés no nosso tempo, e seguirmos tecendo sempre e sempre e uma vez mais apenas guirlandinhas de signos desgarrados da referencialidade, trans-históricos, inofensivos e infantilizados como nós mesmos, poetas contemporâneos.

É meia-noite no Berlimbo, 1° de abril de 2012, aniversário do Golpe de 64. Meu pensamento está no Brasil. Perdoem a ênfase. The little wheel spins, the big wheel turns around, fico zonzo com os vértices e vórtices da História.




Little Wheel Spin And Spin
Buffy Sainte-Marie

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Merry Christmas Jingle Bells
Christ is born and the devil's in hell
Hearts they shrink Pockets swell
Everybody know and nobody tell

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Oh the sins of Caesar's men
Cry the pious citizens
Who petty thieve the 5 & 10s
And the big wheels turn around and around

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Blame the angels, blame the fates
Blame the Jews or your sister Kate
Teach your children who to hate
And the big wheel turn around and around

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Turn your back on weeds you've hoed
Silly sinful seeds you've sowed
Add your straw to the camel's load
Pray like hell when your world explode

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Swing your girl fiddler say
Later on the piper pay
Do see do, swing and sway
Dead will dance on judgement day

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

§




My Country 'Tis Of Thy People You're Dying
Buffy Sainte-Marie

Now that your big eyes have finally opened
Now that you're wondering how must they feel
Meaning them that you've chased across America's movie screens
Now that you're wondering "how can it be real?"
That the ones you've called colourful, noble and proud
In your school propaganda
They starve in their splendor
You've asked for my comment I simply will render

My country 'tis of thy people you're dying.

Now that the longhouses breed superstition
You force us to send our toddlers away
To your schools where they're taught to despise their traditions
Forbid them their languages, then further say
That American history really began
When Columbus set sail out of Europe, then stress
That the nation of leeches that conquered this land
Are the biggest and bravest and boldest and best.
And yet where in your history books is the tale
Of the genocide basic to this country's birth,
Of the preachers who lied, how the Bill of Rights failed
How a nation of patriots returned to their earth?
And where will it tell of the Liberty Bell
As it rang with a thud
O'er Kinzua mud
And of brave Uncle Sam in Alaska this year?

My country 'tis of thy people you're dying

Hear how the bargain was made for the West:
With her shivering children in zero degrees,
Blankets for your land, so the treaties attest,
Oh well, blankets for land is a bargain indeed,
And the blankets were those Uncle Sam had collected
From smallpox-diseased dying soldiers that day.
And the tribes were wiped out and the history books censored,
A hundred years of your statesmen have felt it's better this way.
And yet a few of the conquered have somehow survived,
Their blood runs the redder though genes have been paled.
From the Grand Canyon's caverns to craven sad hills
The wounded, the losers, the robbed sing their tale.
From Los Angeles County to upstate New York
The white nation fattens while others grow lean;
Oh the tricked and evicted they know what I mean.

My country 'tis of thy people you're dying.

The past it just crumbled, the future just threatens;
Our life blood shut up in your chemical tanks.
And now here you come, bill of sale in your hands
And surprise in your eyes that we're lacking in thanks
For the blessings of civilization you've brought us,
The lessons you've taught us, the ruin you've wrought us
Oh see what our trust in America's brought us.

My country 'tis of thy people you're dying.

Now that the pride of the sires receives charity,
Now that we're harmless and safe behind laws,
Now that my life's to be known as yourheritage,
Now that even the graves have been robbed,
Now that our own chosen way is a novelty
Hands on our hearts we salute you your victory,
Choke on your blue white and scarlet hypocrisy
Pitying the blindness that you've never seen
That the eagles of war whose wings lent you glory
They were never no more than carrion crows,
Pushed the wrens from their nest, stole their eggs, changed their story;
The mockingbird sings it, it's all that he knows.
"Ah what can I do?" say a powerless few
With a lump in your throat and a tear in your eye
Can't you see that their poverty's profiting you.

My country 'tis of thy people you're dying.


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sexta-feira, 30 de março de 2012

Foram lançados ontem na Cidade do México os livros de estreia dos poetas Daniel Saldaña París e Alejandro Albarrán

Daniel Saldaña París, em retrato de Valentina Siniego


Com apresentação do excelente poeta Óscar de Pablo (Cidade do México, 1979), foram lançados ontem na capital mexicana os livros La Máquina Autobiográfica, de
Daniel Saldaña París (Cidade do México, 1984), e Ruido, de Alejandro Albarrán (Cidade do México, 1985). Assista abaixo a dois vídeos que gravei com os autores na Cidade do México em dezembro de 2011.




Estos elementos serán destruidos
Daniel Saldaña París


Caminé cansado por Valparaíso, convencido de que allí el grito de los pájaros florece más puro, como estallado y multiplicándose de luz en el espejo de los montes.

No sé si es verdad lo de los pájaros, pero en algún momento, no sé cuándo, algo muy adentro de mi tórax se quebró del todo: fue como si me nacieran larvas inquietas en la boca, y el aire estaba hecho de ruidos insoportables que me rompían por dentro.

Entonces, algo que durmió una vida en mis pulmones maduró hacia el cielo y salió convertido en un enjambre cuando el asma ya latía locomotoras. Fue un mugido de toro pereciendo lo que surgió del fondo de mi abismo.

Y todos los niños me rodearon para darme la bienvenida al reino de la asfixia.

§

Ya no tengo porqué escribir. Desde esa falta de motivos, de intuiciones y de historias, te digo ahora lo que sigue: mi pecho es una confrontación de ríos que sacuden.

Los ríos arrastran piedras que no son tales y la confrontación de sus aguas es mi corazón latiendo.

Siéntate a la orilla de mi pecho.

Sumerge tu mano blanca en mi claridad violenta.

Tócame el fondo de las aguas.

§

Tengo rencores confrontados en mi estómago y son un acontecimiento crucial porque me siento confuso y no logro moverme. Sólo te digo esto desde la complicidad que nos anuda.

Hay una complicidad que mantiene unidas las corrientes en su desesperada confrontación.

Estas cosas suceden.

Suceden en el tórax.

(Ella cerró mis párpados con fórceps).

§

Las aves limpias fueron crucificadas, clavadas de las puntas.

Como una emanación del óxido, Valparaíso fue fundado en el desgarre. Caminar sus calles de mercado era mirar cangrejos sacudiéndose, pescados fijos en el estertor tras haber sentido la navaja. Conejos desollados eran expuestos a pocos centímetros del rostro y eran como vaginas dadas vuelta que habían perdido su misterio.

(Llegué hasta el puerto como escapando).

§

Todo es crudo y rojo.

La animalidad, en estas calles, es el centro de mi tórax.

¿Quién soportaría la animalidad desnuda de mi tórax contra este cielo de ferrocarriles oxidados?

¿Quién soportaría la crudeza irreductible de mi carne contra esta ciudad de prostíbulos diurnos?

(Mañana blanca: transportado en la niebla miras tus párpados por dentro.
Sabes que Dios te quiere dar).


§

Los árboles aquí tienen placeres. Son altos como la furia y se balancean entre los llantos que los perros improvisan…

Me estoy deshaciendo en las vocales de su nombre y por todo contexto hay una jauría de perros aullando hacia los árboles.

(¿Quién respira en mi tórax un aliento de plumas encarnadas, royendo la animalidad desnuda de mi carne contra un cielo de insultos?)

§

¿Quién soportaría la animalidad desnuda de mi tórax contra esta filiación de óxido en las calles?

El vino es un discurso intempestivo que irrumpe –tremendo, con caballos– en mi boca. Ahora es invierno en el sur de alas abiertas y persigo el olor –persistente, vertical, sin piernas– de su vulva.

(Esta sed oscura que hace ruido y me desgarra. )

§

No mires mi nuevo rostro. He renacido con el signo de los pájaros. He renacido en el pasillo y ahora frecuento la masturbación con menos gusto.

Has renacido y ya no te toca su canto cuando dice. Ella te dice y contiene en su voz todo tu aullido. Algo descansa reventándose en tu tórax (un sol, tal vez, que ya pronuncia: estos elementos serán destruidos).

Ella se cierra como una puerta.

Me han despojado.

§

No tengo porqué escribir: ella se ha lavado las uñas en mi cara.
Un arrepentimiento.

Repito la palabra tórax pero hay algo roto (un sol, quizás, que se me pudre) en el centro siempre confrontado de su nombre.

Ella tuvo abortos en mis párpados de niebla. Mejor ya que me revienten, mejor ya que me contengan: cantaba en la luz como un desnudo.

Sabes que Dios te quiere dar.

Lunes tan quieto.

§

Ríos confrontados, retenidos en mi esperma. Un arrepentimiento. Ella cerró mis párpados con fórceps.

Ella va a venir a rescatarte, a reventarte de luz. Brotarán hijos de su concha. Serás materia, gemido, confrontación perpetua.

Ella va a venir a reventarte.

§

Ella tuvo abortos en mis brazos, llagas en el centro de su humanidad clarísima. Ella tuvo nombres confrontados. Sus ojos se abrían sedientos en la noche larga de los úteros sin tregua. Mejor ya que me revienten –ella cantaba– me revienten, ella contuvo y cerró con fuerza las alas rojas de su vientre.

(Estos elementos serán destruidos).

§

Todo lo que soy se me revienta.
Ya que venga otra cosa.

Ella besó las piernas de mi amigo.

Ella dejó pasar el tiempo por mis ojos, cantaba en el pasillo, cantaba en el aire. Cerró de golpe –ya que venga otra cosa– mis párpados de niño.

Ya que venga otra cosa. Alguien va a venir a rescatarte, a reventarte de luz. Serás testigo, pecado, miedos encinta. Brotarán larvas de tu boca.

(Estos elementos de luz.)

§

Todo lo que soy se me revienta.
La casa se expande hacia el centro de sus átomos.

Perdí la voz. Ella cantaba en el pasillo: Ya mejor reviéntenme –se limpiaba el maquillaje en las paredes. Ya mejor.

Cuatro en punto. Estás reventado de luz y carcajada. Ella va a venir cantando en la cocina, mordiéndose el límite del labio para decirte hola, niño. Va a cantarte vidas, a tocar tus párpados insomnes con el tacto débil de la niebla. Ella va a ser tu esposa –comerán grillos–, va a recorrer tu cuerpo con saliva.

Sabes que Dios te quiere dar.


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A C U M U L A C I Ó N
Alejandro Albarrán

*

Acumulación, me estoy hinchando. Encontrando
el mimetismo en los ahogados. En mi cuerpo
tumefacto. Soy tu contenedor, soy tu putita. Me
estoy llenando. Me estoy saciando, colmándome
de mí, me estoy tocando en las aristas con aristas,
en mis esquinas me estoy tocando con esquinas.
Gerundio, soy hinchazón, soy yo exagerado,
exacerbado. Necesito una salida. Un punto de
fuga o me desbordo, desbordado, soy,
acumulación. Soy garrafa. Un accidente paulatino.
Un desatino o tina que se llena hasta sus bordes.
Una salida o me reviento. Una calle, un
escampado, para salirme de mí, desbordado sí, en
el paisaje. Acumulación, me estoy hundiendo,
como un Nautilus, me vengo abajo.

*

Esto es: necesito no ser yo. Confundirme. Ser tú,
por ejemplo. Ser tu sueño húmedo. Tu pesadilla.
Tu amor especial. Tu hombre de acción. Tu
postergación, tu crucifixión: tu crucifijo. La
mancha de sangre en tu toalla sanitaria. Tu santa
virgen, tu Eclesiastés, tu miedo al cambio, tu
cambio, en monedas de baja denominación, soy tu
elección, tu trueque. Tu lucha contra ti, soy tú
porque te ves en mí. En mi imagen. Tenme miedo
soy el diablo, tu Cristo de terciopelo, soy, soy tu
miedo, tu miedo a ti.


*

Soy la emperatriz de los escarabajos, en tu pubis
soy el anca de un caballo, en tu cabello soy dolor
de estómago, soy tu síntoma de mal, soy el mal, el
pervertido de voces, a veces, de muchas voces que
me anulan, soy eso: la anulación, mi anulación, la
vindicación de mí en nada.

*

Vuélvete confeti o fruta furibunda, vuélvete que
me estoy quitando el sexo. Por ti. Lo estoy
dejando en el buró como una estaca, un crucifijo.
Date vuelta: una lámpara que brilla (y ahora
brilla), una aliteración en nuestro entorno. Una
aliteración: canción que nadie canta porque
espanta.

*

Mi caballo sin ojos me dijo: "canta en mis
entrañas", "enséñame el paisaje". Aprendizaje. Mi
caballo me dijo: "ven a correr conmigo en mis
entrañas", me lo dijo esta mañana, desde mi
estómago, me lo dijo desde el vértigo, desde mi
trote caldo, en mi vientre me lo dijo, en mi
emoción, mi caballo sin ojos, mi potro hambriento
de camino. Soy camino, trayecto inconcluso es mi
oración. Ahora le canto, lo llevo al monte, a que
relinche.





quarta-feira, 28 de março de 2012

Anotação de Walter Benjamin encontrada entre seus papéis. Benjamin-Archiv, Ms 500.



Arquivo Benjamin. Manuscrito 500.

Tipos de conhecimento

I. O conhecimento da verdade
Isto não existe. Pois a verdade é a morte da intenção

II. Conhecimento redentor
Este é o conhecimento que surge com a redenção, que dessarte é consumada
Mas não é o conhecimento que precipita a redenção

III. Conhecimento ensinável
Sua mais significativa forma de aparição é a banalidade

IV. Conhecimento determinante
Há conhecimento que determina a ação. Não é, porém, determinante como "motivo", mas em verdade por razão da força de sua estrutura linguística. O momento linguístico na moralidade está conectado ao conhecimento. É de uma certeza absoluta que este conhecimento que determina a ação leva ao silêncio. Dessarte, como tal, não é ensinável. Este conhecimento determinante está intimamente ligado ao conceito do Tao. Isto está em contradição direta à Doutrina da Virtude de Sócrates. Enquanto este é motivante à ação, não determina aqueles que agem.

V. Conhecimento por discernimento* ou percepção
Este tipo é altamente enigmático. Na região do conhecimento, é algo que se assemelha ao presente na região do tempo. Existe apenas como transição incontível**. De que a quê? Entre o presságio e o conhecimento da verdade.


§

NOTAS:

* Benjamin escrevia numa letra minúscula, prática que o livro em que estes fragmentos foram publicados (veja capa acima) chamou de micrografia. A palavra no manuscrito, quase ilegível, parece ser Einsicht, que Esther Leslie, a tradutora para o inglês (estou lendo o volume lançado pela excelente editora britânica Verso, da New Left Books), optou por traduzir como insight. Optei por discernimento, palavra que me é muito cara e parece ser a que mais se aproxima à que Benjamin usa.

** Benjamin escreve unfassbaren Übergang, que Esther Leslie traduz como ungraspable transition. Estou ciente da estranheza de minha solução, transição incontível, mas este unfassbar é bastante difícil de verter, especialmente por seu uso atual na língua alemã, muito mais próximo de inconcebível ou inacreditável. Fica aqui o alerta.


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terça-feira, 27 de março de 2012

Na mais profunda escuridão, buscamos asilo na luz. Concerto do duo Light Asylum e discotecagem da Planningtorock esta noite, no Berlimbo.

"Expor-se à luz do domínio público, como pessoa, este é o primeiro risco, ousadia.
O segundo é: começamos algo, lançamos nosso fio em meio à malha das relações, sem saber quais suas consequências.
Todos nós fomos ensinados a dizer: `Senhor, perdoai-os, eles não sabem o que fazem´. Isso aplica-se a toda ação,
é um risco, uma ousadia, pois não se pode saber. Hoje, eu acrescentaria para encerrar, que esta ousadia só é possível
por confiança nos seres humanos, algo difícil de formular, mas fundamentalmente uma confiança nos seres humanos,
no humano de cada ser humano. Não é possível de outra forma". ---- Hannah Arendt, em conversa com Günter Gaus.


Organizo hoje em nosso clube um concerto do duo nova-iorquino Light Asylum, com uma discotecagem especial da minha heroína e amiga Planningtorock. É uma noite importante para mim, não apenas por ser um dos melhores eventos que já pude organizar, mas por outras questões. Oh, lá vem o poeta lírico expor-se em seus melodramas, eu sei, mas é a carnadura de minha criaturização tudo o que tenho a oferecer, minha recusa a ser paciente anestesiado sobre a mesa, por incapacidade de ser forte como vocês. Mas também "porque sentir é estar vivo", dixit cummings. Ou

the great advantage of being alive
e. e. cummings

the great advantage of being alive
(instead of undying) is not so much
that mind no more can disprove than prove
what heart may feel and soul may touch
--the great(my darling)happens to be
that love are in we,that love are in we

and here is a secret they never will share
for whom create is less than have
or one times one than when times where--
that we are in love,that we are in love:
with us they've nothing times nothing to do
(for love are in we am in i are in you)

this world(as timorous itsters all
to call their cowardice quite agree)
shall never discover our touch and feel
--for love are in we are in love are in we;
for you are and i am and we are(above
and under all possible worlds)in love

a billion brains may coax undeath
from fancied fact and spaceful time--
no heart can leap,no soul can breathe
but by the sizeless truth of a dream
whose sleep is the sky and the earth and the sea.
For love are in you am in i are in we



No verão do ano passado, esta canção abaixo, do Light Asylum, serviu de trilha sonora para uma minitragédia almodovaricada e salvou-me do colapso numa noite escura. Como escreveu Murilo Mendes:


"Há noites que são intransponíveis."

É por isso que quando um poeta ou artista nos ajuda a transpor uma delas, quedamos em estase agradecido. A primeira e única vez em que eu, todo Catarina de Aragão, fui submetido à experiência de estar entre as mesmas quatro paredes e teto em presença de Henrique VIII e Ana Bolena, era Shannon Funchess quem estava no palco, e quando meus olhos os encontraram sorridentes em meio à escuridão da sala em que se apinhava a corte noturna berlinense, a americana havia acabado de começar a cantar "Dark Allies", esta canção. Eu fiz o único que qualquer um pode fazer numa situação como esta: eu dancei, dancei, dancei, com os olhos fechados, evitando sobrevoar a sala e ver os dois lado a lado, magníficos em sua beleza apaixonada e triunfante, enormes, extáticos em meio a meu peso estático trazendo-me de volta ao chão a cada vez que meus pés lançavam-me em impulso ascendente, cantando "Nail me to the cross in the darkest alley / I said, the Prince of Peace doesn’t have to know about it", tentando, tentando, tentando não cantar aquele refrão "I’ll wait for you, forever / And ever, and ever / And ever”, ah, não haver algoz que fizesse a minha cabeça rolar ali e imediatamente, como são privados certos desastres, Auden já havia dito que só os Velhos Mestres o compreenderam bem,

"About suffering they were never wrong,
The Old Masters; how well, they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along"

ah, Moço, Moço, eu estava em meio ao Apocalipse enquanto você comportava-se como se tudo não passasse da mera troca da Guarda em frente ao Palácio de Buckingham. Hoje que uma paz precária em sua delicadeza já se instalou no meu peito, quando hoje à noite Shannon Funchess começar a cantar esta canção, pensarei naquela noite, pensarei em você, e sentirei uma espécie de vitória, a do náufrago que sente os primeiros sinais de proximidade da areia, avistando ao longe a primeira palmeira da ilha deserta.


Dark Allies
Shannon Funchess

Nail me to the cross in the darkest alley
I said, the Prince of Peace doesn’t have to know about it
Say three Hail Marys, turn around, pray about it
C’mon, nail me to the cross in the darkest alley

Heartbeats through the dark that spread like a poison
And the tears ran hot like black tar of emotion
Inherit the earth where no words are spoken
And the sky like a veil was our wounds torn open

As she lies dying in a dark alleyway
Her lips, ruby red
And her eyes were morning green
But she whispered to me “Come closer, come closer”
And as I knelt down beside
With her dying breath, she said to me
“I’ll wait for you, forever
And ever, and ever
And ever”.



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segunda-feira, 26 de março de 2012

Alejandro Albarrán na "Hilda Magazine"



Conheci Alejandro Albarrán na Cidade do México em dezembro do ano passado, quando ali estive para palestras sobre a poesia contemporânea brasileira no Centro Cultural Brasil-México. Ele nasceu na capital mexicana em 1985. Seu livro de estreia, intitulado Ruido, será lançado esta semana. Celebro a aparição do primeiro livro de um bom poeta, companheiro que respeito, com esta página dedicada a seu trabalho na Hilda Magazine. A tradução para o inglês de seu texto "Acumulación", que já mostrei aqui, foi feita pela jovem poeta norte-americana Robin Myers.





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domingo, 25 de março de 2012

Alan Turing.



Alan Turing. Meu respeito. Meu agradecimento. Minha admiração. Minha tristeza. Alan Turing.

1912 - 1954.

Alan Turing.

"Where there is personal liking we go."

Imaginá-lo em uma sala de aula em Cambridge durante palestras de Ludwig Wittgenstein, sim, imaginá-los na mesma sala faz minha cabeça dar voltas, me pone los pelos de punta.

Se tua morte por envenenamento estava naquela maçã, como evitar o redemoinho de implicações? Sem deixar de imaginar que é perfeitamente possível que tenhas sido assassinado.

A L A N T U R I N G.

Pensar que até o ano passado, um país como a Suécia ainda previa a castração de quem ousa desviar-se da normal sexual dominante.

O asco sentido em minhas entranhas com o barulho em torno da morte de Steve Jobs, enquanto tu morreste sozinho e empobrecido, acuado à beira do abismo, talvez assassinado.

a-l-a-n-t-u-r-i-n-g.

"We can only see a short distance ahead, but we can see plenty there that needs to be done."

Alan Turing.

De quantos se pode dizer que uma vida mais longa ou mais curta teria tido consequências drásticas para o mundo?

Alan Turing.

Morrem cedo os que os homens detestam. Os que os homens invejam.

Alan Turing.

"This then you may know
as the hero.
"






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NOTAS

* Os versos "Where there is personal liking we go" e "This then you may know / As the hero", do poema "The hero", de Marianne Moore.

* A citação "We can only see a short distance ahead, but we can see plenty there that needs to be done" em Computing Machinery and Intelligence (1950), de Alan Turing.


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sábado, 24 de março de 2012

"18 de maio de 1952", página do "Diário Completo" de Lúcio Cardoso

18 de maio de 1952


"Por mais que indague de mim mesmo, não consigo saber de que modo poderia o Governo auxiliar eficazmente um escritor. Por meio de um grande prêmio? Talvez isso ajudasse a um escritor, de ano em ano, caso ajudasse... Por meio de leis sobre direitos autorais, sindicatos, etc.? Mas isso já deveria existir há muito, e se não existe ainda, que fizeram até agora os escritores, que não reclamaram coisas tão primárias para suas atividades profissionais?

No mais, em que poderia o Governo ajudar os escritores? Criando um ministério de sinecuras? Instituindo o título de "poeta do rei", como na Inglaterra, e nomeando um vate profissional, como Tennyson o foi, ou um protegido do tzar, como o foi Puchkine? Talvez fosse melhor assim – poeta oficial do Sr. Getúlio Vargas – e entre tantos, escolhesse o mais vil de todos.

Mas não, inútil zombar. Nenhum escritor que se preze viveu à sombra do Estado; muitos, ao contrário, morreram contra ele. Que significa proteger oficialmente um Dickens, um Balzac, um Proust? Trucidá-los sob que glória mesquinha e humana? Esta história de escritor sob proteção do Estado é uma reminiscência de aspecto puramente totalitário – e somente por isto é que veio encontrar eco na velha mente viciada do Sr. Getúlio Vargas."

Lúcio Cardoso, Diário Completo (Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1970)




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sexta-feira, 23 de março de 2012

Sugestão de leitura aos ainda usuários do "argumento legalista" em certos debates políticos atuais

Ainda que crescente desde o início da década, especialmente durante a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva que o levaria por fim à Presidência da República, tornou-se simplesmente inegável hoje a percepção, com clareza óbvia a partir das últimas eleições (que por sua vez levariam sua sucessora Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto), de como se intensificou e radicalizou mais uma vez a polarização dualista, entre direita e esquerda, do debate político no Brasil. Mesmo certo vocabulário corrente nas décadas de 60 e 70, que causaria sorrisos constrangidos na década de 90 quando o discurso apoteótico do capitalismo autoproclamado vitorioso lançou-se ao desmantelamento do discurso político e intensificação da desregulamentação das economias nacionais, parece retornar como uma vingança previsível e retardada. Pessoalmente, após defender desde o início de meu trabalho dentro do debate poético contemporâneo uma revisão dos conceitos do "pós-utópico" e da "trans-historicidade", contemplo com um misto de sensações que vão da obviedade ao susto os discursos públicos sobre os últimos acontecimentos em São Paulo, governado por criaturas como Alckmin e Kassab, e no circo precário que é Brasília. Ao mesmo tempo, esta polarização evidencia problemas que apenas foram camuflados pela problemática transição controlada à democracia (por aqueles que a anularam) na década de 80 e certa complacência político-intelectual brasileira na década de 90. Num momento em que o debate sobre a Ditadura Militar (1964 - 1985) se reacende, é por vezes assustador ler certos argumentos incrivelmente desprovidos de qualquer capacidade de pensamento político, por parte de defensores do Golpe de 64 invocando o conceito de "legalidade". Tal argumento foi usado com frequência, por exemplo, durante a invasão da Universidade de São Paulo por militares no ano passado, e é o mesmo argumento que tem sido usado nos últimos tempos em meio ao debate político de gênero (Gender Politics), tanto no Brasil como por exemplo nos Estados Unidos, que este ano vão às urnas para eleger um novo Presidente ou reeleger Barack Obama.

Especialmente durante os conflitos na USP, ao ler "legalidade" nos debates da imprensa e blogosfera brasileiras, as palavras, voz e rosto de Hannah Arendt vinham constantemente à minha mente. A quem já tenha lido Eichmann in Jerusalem (1963), não surpreenderá que o que chamo aqui de "argumento legalista" cause espanto e asco, não apenas por denunciar a incapacidade de pensamento verdadeiramente político de quem o usa, como por sua total contradição ao defender atos inconstitucionais e de violência militar contra civis do próprio país, e refiro-me aqui tanto ao debate atual sobre o Golpe de 64 como sobre conflitos na USP em 2011 e os crimes em Pinheirinho em 2012. Se o historiador já foi chamado de profeta com olhos voltados para o passado, um dos mais alarmantes e indefensáveis argumentos dos defensores de Golpe de 64 volta a ser a ideia de uma ditadura para defender o País de outra ditadura, como se o pensamento hipotético (com ares paranóicos) tivesse peso agora historiográfico, especialmente quando muitas das reformas propostas por João Goulart poderiam ser vistas como bastante moderadas e tímidas perante a necessidade gigantesca de transformações sociais que o País ainda hoje não conseguiu levar a cabo. Pádua Fernandes e Idelber Avelar, entre outros, têm discutido de forma inteligente várias destas questões.

Já deixei clara minha posição e crença sobre uma das funções políticas dos poetas: monitorar o uso e denunciar o abuso da linguagem no discurso político de sua comunidade, algo que o obriga a ser quase invariavelmente oposição, esteja quem estiver no poder. Não consigo imaginar interpretação mais prática, objetiva e funcional do velho adágio sobre "manter puras as palavras da tribo".

E esta noite, após uma ronda de leituras na blogosfera brasileira sobre a asquerosa comemoração anual dos militares em torno de seu criminoso Golpe de 64, volto a Hannah Arendt, a suas palavras, a sua voz. Tentarei voltar a este assunto com a frequência que me for possível nestas próximas semanas, encerrando por ora com a sugestão aos leitores deste espaço da leitura do livro de Hannah Arendt – estejam do lado que estiverem na atual polarização – e de uma meditação sobre algumas destas ideias, expostas também nos vídeos abaixo.




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quinta-feira, 22 de março de 2012

Recomendação: "Desarquivando o Brasil: A Comissão da Inverdade, o começo", artigo de Pádua Fernandes

Recomendo aos leitores deste espaço uma visita ao do poeta Pádua Fernandes (Rio de Janeiro, 1971), no qual tem mantido uma discussão séria e importantíssima sobre a Ditadura Militar no Brasil e seus desdobramentos até os nossos dias. Recomendo muitíssimo a leitura do artigo no link abaixo, importante não apenas pelas informações importantes que divulga, mas também por sua exposição de como a linguagem segue sendo distorcida e manipulada na discussão sobre o período e seus crimes. Para poetas, tal discussão / meditação parece-me simplesmente uma "obrigação". Sim, eu sei que vocês não gostam da palavra, colegas. Digamos, então, "uma função social possível para poetas em suas comunidades, mas não única ou mandatória".


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terça-feira, 20 de março de 2012

Alguns poemas brasileiros: "hymnoi", de Dirceu Villa

Chega o momento nesta série de compartilhar um poema de Dirceu Villa, convidado por minha curadoria ao Festival de Poesia de Berlim 2012, no qual terá como parceiro um de meus poetas alemães favoritos, o suábio Ulf Stolterfoht (Stuttgart, 1963), autor dos livros handapparat heslach: Quellen und Materialien (2011), ammengespräche (2010), das nomentano-manifest (2009), fachsprachen XXVIII-XXXVI (2009), holzrauch über heslach (2007), traktat vom widergang (2005), fachsprachen XIX-XXVII (2004), fachsprachen X-XVIII (2002) e seu livro de estreia, fachsprachen I-IX (1998), mesmo ano em que estreou Dirceu Villa com seu MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998). Dirceu Villa é um dos poetas de minha geração que mais respeito, com quem dialogo em nossas discordâncias frutíferas. Foi uma alegria ver como sua tradução do Lustra (1918) de Ezra Pound suscitou debate e teve atenção no ano passado. Não tinha como não ser uma das grandes publicações do ano em termos de tradução e crítica, e, ao lado das traduções de André Vallias para poemas de Heinrich Heine, certamente uma das grandes lufadas de ar fresco na poesia brasileira dos últimos anos, já que está na hora de todos nós conhecermos Ezra Pound por sua poesia, além do usual disse-que-disse das leituras-por-citação interessadas de seu ensaísmo.

Meu primeiro impulso seria mais uma vez chamar a atenção para seu poema "O cutelo", incluído em Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008), um poema que é uma belezura, um dos meus favoritos na década que se encerrou. É um poema mui bem realizado, com seu ritmo anapéstico – como me chamou a atenção para o fato Ezequiel Zaidenwerg em conversa no México, durante minhas palestras sobre poesia brasileira contemporânea, em que fiz uma leitura crítica do poema –, seu uso inteligente de uma imagética expressionista, as implicações interessantíssimas que minha mente tresloucada vê no texto. Mas como pretendo reproduzir ao final desta pequena postagem o artigo que escrevi sobre seu trabalho para a Modo de Usar & Co. em 2010, no qual comento especificamente "O cutelo", achei por bem chamar a atenção dos meus queridos leitores para alguns poemas que Villa vem publicando em seu blogue nos últimos tempos, belos exemplos de poesia satírica que apenas confirmam para mim como este segue sendo um dos melhores campos de atuação dos poetas brasileiros contemporâneos, ou ao menos um dos que mais me interessam e no qual creio ver a sobrevivência intocada da necessidade do trabalho poético nos dias de hoje, sem ao menos a necessidade de hibridismo de gêneros. A poesia satírica parece-me também um trabalho que pode ajudar-nos a reflorestar a desértica arena de leitores de poesia. Dos poemas satíricos publicados por Villa nos últimos tempos, um dos meus preferidos é "hymnoi", no qual podemos ver que o poeta não se entrega a qualquer populismo ou facilidade ao voltar-se para o riso sarcástico. Ao fim, reproduzo meu artigo de 2010.


hymnoi
Dirceu Villa


aujourd’hui, ce qui ne vaut pas la peine d’être dit, on le chante
beaumarchais, le barbier de seville


I
aperta o cinto, pisa fundo
..........a boa vida passará
em 1 segundo. grande crono
..........velho corno:
antigo engodo algum
de onde píndaro
..........pendia ou implorava
..........sua paga
lavo a musa como corça
..........com faíscas e canções
de meus pneus [para o alto
..........e avante]
quem quiser ser vencedor
..........que calce minhas botas,
minha arte,
..........antes que,
é evidente,
haja mais de mim, como de um deus,
..........por toda parte.

II

dos menelaus levou
os leitos, uma virgem em suas asas
mil éguas incansáveis
e guris em pouco tempo
se atiçavam;
que virtude então teriam
antes da tumba? —
batem bola numa várzea
desgramada
nos torneios onde, após,
três dedos dão mil dribles
de mil dólares
toque rápido e
sentindo o mel
de alguns milhões
dão chapéu nesta miséria.

III


voz de esquinas e bibocas
metálica na máquina idiota:
..........bem supremo
o ser mortal
..........de tão porca melodia;
glorioso meio hino de lampejo
..........no quintal: um deus alegre
protege sua prece
..........a implorar celebridade,
matraca de concurso
..........de discurso
de jornal
..........não larga a isca que lhe deu
a mão risonha
..........em meio às nuvens:
a chave da cidade,
..........sobre um burro,
o animal.

IV

num garfo vê tridente
entre outras coisas
..........um vidente
à beira de alva praia
se confunde, “será vênus
..........ou tritão”,
uma vulva ou
..........grande arpão; dado
de aposta, sabe o vento com saliva
..........no seu dedo,
....................búzios ou brinquedos
o levam oportuno a miami
neste mau “porvir azedo”
..........um casado, outro morto
“sei dizer, quando me deito”
..........pois depois um livro inteiro
psicoimportado
..........“dois ou três, verdade mesmo,
sofrem acidente ou feio dano
..........neste ano
danado”,
..........quod scripsi, sempre a esmo.

V

do monte pó e com rajadas
soberano; glória aguda
como o morro de onde mata
..........e quer a morte amante;
belo enfeite as dez correntes
..........de ouro x quilates
reluzindo na metranca
sobre o ombro calejado.
quem o ouve diz que é como
..........júpiter à noite: caem
raios — todos falsos —
..........mas fulminam.


VI

tânatos te teve em tetas,
..........distintivo: detectando, delegavas
uma senha pro banquete
..........ou pro boquete
aquece ao sol à tarde
..........a boca rubra da sereia
que berra como louca no capô
..........a noite inteira:
éter, porre de sujeira,
..........vai com calma, coração!
cruzar dois ossos na caveira
—eloqüente, a velha lei— e
..........me passa a escarradeira.

VII

acocorada de tão
..........flamante coma
....................desdourada
grande olympia
..........se banhava: tem o cetro
de sua casa, mas colhia só galinhas
..........no espelho arredondado

que fascínio festejar?
..........que espora
...................põe o corpo a se lembrar
da antiga chipre?

olhos glaucos,
..........para homens e crianças
louça à tarde
insônia, noites frias
pratos quentes
..........e palavras
....................e palavras
como a cara
amorphophallus acabando no quintal

agora cala quando sobe
em um sorriso
..........eis adônis
.................nada mau


§


Artigo para a Modo de Usar & Co., postado a 8 de junho de 2010.


Dirceu Villa nasceu em São Paulo, em 1975. Estreou em livro com o volume MCMXCVIII (1998), seguido, neste nosso século que engatinha em meio a desastres ecológicos e econômicos, os volumes Descort (2003) e o mais recente Icterofagia (2008), no qual me concentrarei para esta postagem. Dirceu Villa é tradutor de Ezra Pound, de quem verteu e anotou, em sua íntegra, o belo Lustra (1916), que, como se poderia esperar no Brasil, permanece inédito. Seus ensaios, poemas e traduções já foram apresentados em países como o México, os Estados Unidos e o País de Gales. Por algum tempo, manteve uma excelente coluna de crítica literária na revista Germina, e escreve com frequência em seu espaço pessoal, chamado O Demônio Amarelo. Publicamos poemas seus no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co., assim como um ensaio sobre o português Dom Tomás de Noronha, mais tarde reproduzido aqui na franquia eletrônica. Ele também participou dos nossos ciclos críticos dedicados a Caio Valério Catulo e Guido Cavalcanti.

Tratando-se de um poeta em produção e atividade, não tentarei esboçar arcos que abarquem, em exegese simplificadora, um trabalho que está em andamento. Através de alguns poemas específicos, de minha predileção e extraídos de um único livro, seu último, tentarei elaborar o que me parece interessante e feliz em seu trabalho, se me entendem o uso do adjetivo, em conjunção entre forma, função e contexto.

Na década de 90, sabemos que o discurso crítico hegemônico, em geral, felicitava a época pela chamada pluralidade de vozes e possibilidades do uso eclético das formas históricas, em grande parte baseado no discurso ideológico proposto por Haroldo de Campos em seu ensaio sobre o "poema pós-utópico" e o conceito de "trans-historicidade". Já questionei estes conceitos em diversos textos e não retornarei a eles aqui. Se os menciono, é porque seria tentador abordar o trabalho de Dirceu Villa pelo uso que faz das formas históricas, retornando a dicções de outros momentos poéticos, talvez como o poeta das máscaras que Pound nos propôs em Personae (1909). A mim parece que uma das maneiras mais viáveis de analisarmos o trabalho poético dos autores contemporâneos está justamente em sua relação com a historicidade da textualidade poética, sobre a qual já participei de debates largos e longos com o autor de Icterofagia, que, eu arriscaria dizer, acredita nesta historicidade como manifestação, digamos, talvez orgânica, ou auto-evidente, o que por vezes, em alguns poemas de Icterofagia, poderíamos aproximar do discurso da autonomia da linguagem poética, certa ausência do contexto para habitar uma realidade literária. No entanto, em muitos poemas, eu creio que ele estabelece uma saudável relação de pêndulo entre diacronia e sincronia, historicidade e Literatura, algo que lhe entrega seus melhores poemas, alguns dos quais buscarei reproduzir e comentar a partir daqui.

Para começar, remeteria o leitor a um pequeno poema que já comentei em um ensaio intitulado "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", sobre a (mais que necessária) poesia satírica contemporânea, publicado em meu espaço pessoal e aqui. Trata-se do poema "Pontos-de-fuga do século XX", à página 119 do Icterofagia (2008):

Pontos-de-fuga do século XX
Dirceu Villa

Era Yeltsin
Em 1995, parecendo uma caricatura
De Russo frente às câmeras do Western
Americano, que pensava: "É nisso
Que dá o Comunismo".

O que Hobsbawn chamou
"Capitalismo de Estado": onde
Deus & Mammon dão lugar
Aos Canalhas do Partido: tudo
Em maiúsculas, ou uniforme militar.



Rimar "Yeltsin" com "Western" parece-me um dos momentos mais inteligentes da poesia satírica contemporânea. Aqui, se levarmos em conta a definição de Pound para o "épico", ou seja, "um poema incluindo a História", Villa produz um texto que é, ao mesmo tempo, épico e satírico, o que talvez irrite quem associa o "épico" apenas com a ideia de "poema longo". Poderíamos remeter esta poética, não a Pound primordialmente, mas ao mestre eleito por Dirceu Villa para si, o maranhense Joaquim de Sousândrade (1833 - 1902), em especial no "Tatuturema" e na sequência que ficou conhecida como "O Inferno de Wall Street". Em outro bom momento de poesia satírica no livro, isso se torna ainda mais claro:

Angst Brazileira I
Dirceu Villa


Anacreonte
tangia uma lira de onde
pingavam sonetos
poeirentos:


fingimento
era apenas - não a arte
- mais uma forma
de sustento.

Ceci tinha só
o sêmen de orvalho
do pistilo que passava em Peri
por caralho,

quando Pedro II
atendeu a Graham Bell
pra dizer, que profundo,
o dito de papel:


To be or not to be,
ou o tolo grude
do tupi que
tange o alaúde.

Dá no mesmo,
saúde.



Aqui, percebemos a boa poesia em que as funções da linguagem se entrelaçam, se usarmos as definições de Jakobson, como a função poética e a função referencial (mas não só), sem cancelamento mútuo como alguns equivocadamente defendem, mas uma relação de textualidade em que o poema funciona, como insisto, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo. Assim, não se trata de buscar o texto-fantasma que seria a exegese do poema, nem a dissolução da palavra por sua referencialidade, para atingir alguma espécie idealizada de "realidade" fora da linguagem. Isso estava claro, eu creio, em vanguardas históricas como a dos dadaístas ou dos expressionistas. É nesta capacidade de criar uma espécie de fluxo e refluxo entre significado e significante, como nos expressionistas germânicos ou em seu exímio contemporâneo Augusto dos Anjos, que eu penso ao ler um texto tão bom como este, abaixo, publicado pela primeira vez na Modo de Usar & Co. impressa, que eu chamaria aqui, se me permitem um neologismo, de expressinoir, remetendo tanto a Gottfried Benn, Jakob van Hoddis e Augusto dos Anjos, como a filmes de uma espécie de terror-thriller:

O cutelo
Dirceu Villa

São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos;
e às vezes, o sangue vermelho nas unhas.
São porcos, ou são as cabeças dos porcos,
penduram num gancho as cabeças,
ou a cara de estúpida morte dos porcos
no vidro embaçado do açougue.
Ou o branco, mas branco embebido de rosa,
o sangue no sonho de tripas,
sonha o açougueiro: que empunha o cutelo.
E o branco avental que se banha
ou que bebe, o sangue que salta dos nervos
num abraço com ossos, onde vibra o cutelo,
e como brilha o cutelo que corta:
é essa a virtude do aço no punho, que sobe,
ou a ameaça na roda vazia que o prende
no espaço do açougue, visível aos olhos,
anúncio de corte. Ou espeta seu fio numa pedra,
e o único olho vazio se concentra, à espera da carne.
São cortes na pedra lanhada de sangue,
ou fendas, de onde a morte o espreita,
açougueiro no sonho vermelho, acariciando
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo,
que corta. E então o cutelo é outra coisa:
nem porcos, nem nervos, nem ossos,
nem mesmo o açougueiro que o sonha,
mas parte extensiva do braço que o vibra,
e parte indelével do que ele mutila,
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.



Na pequena antologia de Vasco Popa traduzida por Aleksandar Jovanovic, publicada na coleção "Signos", da Perspectiva, há um pequeno poema intitulado "O porco", em que Popa, praticando o que Haroldo de Campos chamou de "coisismo ontológico", parece transportar-nos para dentro de um porco a correr feliz para um portão, sem saber que este o separava de seu abate. Neste "O cutelo", de Villa, é como se estivéssemos dentro da vertigem agônica deste porco, em uma escrita permutacional que parece querer desestabilizar-nos o aparelho vestibular, dando-nos quase tonteira-desequilíbrio, em um jogo de linguagem que parece imitar o de uma câmera em filmagem giratória, ou, talvez, por um segundo, o que adentra os olhos do porco, fixados em sua cabeça, que cai após ser cortada. Trata-se de escrita altamente substantiva, mas não como a dos poetas cabralinos da década de 90 e meados dos 2000, que se obcecavam com pedras e desertos e securas; os sustantivos aqui são secreções e massa orgânica, numa poética bastante corpórea. Há rimas internas e aliterações em abundância, como em "Ou o branco, mas branco embebido de rosa, / o sangue no sonho de tripas, / sonha o açougueiro: que empunha o cutelo", girando e reposicionando palavras, quase uma dança entre algoz e vítima, sem deixar de ter conotações perturbadoramente eróticas.

Em outros momentos, de delicadeza lírico-amorosa e o que já chamamos aqui de "coisismo ontológico", Villa usa algo desta escrita para nos doar poemas como este gentil "Coisas que se quebram":

Coisas que se quebram
Dirceu Villa

mecanismo de relógio:
manejo a pinça
& cuidado,
patas de inseto: cílios
com pegadas;
pequeno, tudo parte
& corre risco, coisas
que se quebram.
& como, tão
quebrados & partidos
não contamos
os resquícios, apegar-se
a todo vício de
viver:
o que sei o
que amo, frágeis
elos de cadeia, mí
nimos confortos
de uma ideia & tão
no entanto
humanas
coisas que se
quebram,
que se não se sabem
ou se respeitam
pactos
como esses, micros-
cópicos, não
germina amor nem
nada bom
deriva disso, tão minús-
culo impreciso de-
licado
ajuste.



Alguns dos cortes, se isomorfizam em ícone, como Augusto de Campos costuma pesquisar, as quebras e partidas, são também precisamente posicionados, coisa de relojoeiro, gerando vocábulos novos e totalmente pertinentes, como em "minús/culos", ou "micros/cópicos", além de ser um texto que se baseia numa linguagem que me parece a meio caminho entre a metáfora e a metonímia, algo que aprecio muito.

Icterofagia, com cerca de 200 páginas, é um dos livros mais largos da poesia brasileira desta década. Quando um crítico contemporâneo não está disposto a lidar com a dificuldade de um trabalho, no Brasil de hoje, ele chama o poeta de "ambicioso". Poderíamos aplicar o adjetivo a Dirceu Villa e seu último livro? O que eu diria é que Villa demonstra acreditar na historicidade implícita do fazer poético, produzindo uma poesia lírica que, em seus melhores momentos, apresenta uma poética tesa e tensa, e o liga a poetas tão diversos quanto Sousândrade, ou, no século XX, belos poetas que deveriam ter mais público, como o mineiro Dantas Motta (1913 - 1974), e o carioca Leonardo Fróes (n. 1941). Se, em minha opinião, nem sempre pende para o lado que prefiro o prato da balança entre o vivido e o lido, ou a experiência imediata do poeta e sua cristalização por técnicas poéticas, há momentos abundantes de beleza no livro, como os que comentei aqui. Encerro com um texto recente de Dirceu Villa, que ele publicou há algumas semanas em seu espaço pessoal, O Demônio Amarelo, e que traz algumas das características que discuti neste artigo.



--- Ricardo Domeneck


§

façam suas apostas
Dirceu Villa


desbastar do crânio
toneladas de palavras:
quem cultiva o balbucio
que coma suas mil larvas;

enquanto penteio palavras
a contrapelo,
vinte inválidos palermas
contam favas;

mas trouxe maçaricos,
lança-chamas
e o belo incêndio que verão
engolirá os trapaceiros
de plantão;
“crises”, direi, “como no almoço;
coveiros literários,
sepultados com seus ossos”.

ler livros que não passam
de farrapos?
ou reunir, numa feira de acepipes,
velhos trapos?

quantos dormem
aturdidos pelo vento
— uma existência miserável?
a estátua patética e grotesca
de anhangüera bandeirante,
com merda na cabeça
em pé no trianon?

não despertarão
do sono estético de estante?
o merencório de janela, com o anestésico
que compra com a dor
de liquidação,
oscila entre o verso
ou algum outro remédio
da emoção.

“poeta bom é poeta morto”
diz o lema da crítica,
ano um.
desentoca aquela mítica
fúria, alecto velha e cancerosa
que invade venenosa
o labirinto da memória.

mas mesmo diante
dos macacos:
cego, surdo e mudo,
a poesia vive
e não requer escudo
pra batalha,
a despeito de paspalhos
e outras tralhas.

os estados unidos do brasil
gostam de remendos
na velhíssima antigualha
sociopatológica de ocasião,
por isso a inapetência
não descreve
a história dos costumes
engessados em fardão;

críticos/poetas de sala de estar:
mentes com picotes
de onde destacar.



§

OUTROS POEMAS DE DIRCEU VILLA
extraídos de Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008)

NENHUMA DAS ANTERIORES


Existem gatos e novelos de lã.

A abstração pode ser encontrada nos interstícios que ligam duas coisas sensíveis de modo a lhes conferir um significado, digo, um significado que inclua as duas coisas. Fora isso, a abstração é inútil (filosófica), brutal (política) ou insignificante (poética).
Eliot escreveu: “o correlato objetivo”. A seção áurea da poesia.
É impossível parecer um acessório num país de necessidade.
O espetáculo: promessa de renovar superficialmente tudo que é vazio até que alguém descubra ou desconfie, daí renovar de novo do nada.
A ilusão ignorante de que se está no topo da civilização.
Um dos trabalhos do poeta é tirar as coisas do lugar, isolar, ou estabelecer relações antes invisíveis e fundamentais.
Estamos imersos numa cultura de morte ou misericórdia, i.e., o circo romano, metáfora de bolso para as multidões famintas de farrapos.
Um homem sem mestre ensina a si mesmo e cumprimenta os mortos ilustres.
O progresso da inteligência: do inventivo para o instrumental.
A poesia não está morta, os poetas estiveram dormindo (Jean Cocteau).

Moralidade: se você não sorrir, seus lábios estão com defeito.


§

MEMÓRIA, A MÃE DAS MUSAS

primeiro sim foi
quando
deuses
tolheram as letras
das tuas
preciosas palavras
e acho te partiram em mil
pedaços
espalharam
teus sons
sem sentido soando
sim mas outros te ouviram
e suponho colheram
tuas sílabas
num tecido de ritmo
indecisas e belas
em fuga perpétua
do sentido
força informe
que desfez
a velha Babel
e a devolveu
num
como é mesmo
num
pequeno milagre.


§

OS CIENTISTAS
Doubt truth to be a liar

Há alguma corrosão no início
— faz parte de seu ofício;
distribuem, como os padres,
a profilaxia, que não é santa,
mas igualmente certa.

Um silêncio de murmúrio
recobre máquinas e ataduras;
aplicam por critério antecedente
prescrições e vacinas em quem
um dia vai ficar doente.

Como na Lei,
há a vantagem do microscópio,
que é por onde entra o miópico
olho da civilização: macacos gritam,
flores abrem, deuses mortos
cospem sangue verde em gargalhada.

“Nós temos a resposta para o Nada.”

§


DILUIR EM CAFEÍNA

Diluir em cafeína a conversa, as palavras;
Seus olhos, baços, as belas unhas, sujas,
Dou um dinheiro, um aviso, e daí?
Seus olhos brilhavam no primeiro sol:
O dia espalha cores fortes pelo céu
E você, o ruído e o mundo em ruínas
Não sabem nada do sol, perderam o calor,
E uma sombra suspira e os olhos suplicam:
“Café. Preto e sem açúcar. Eu estou só.”


§

LYRA ARAGONESA: REFRAM DE ABRIL

Pero mi fez e faz Amor mal
Martim Moya

Não amor não pode
mal fazer
nenhum;
ou torna o senhor escravo,
escolhe em mil a mais
gentil
e colhe a dor do cravo
no amargo
mês de abril?

[Se então tal mal me vem
eu, sábio,
o torno logo em bem:
tolice é ter em sol tão certo
deserto só
& desolação;
e se esse é o preço
que pago,
bem pouco parece:
um pequeno estrago
no brio
que bem o merece.]

Pois tal fervor demove o frio,
e traz ardor à alma;
e então a flecha erra
a calma
e põe o peito em guerra:
torna o senhor
escravo,
o gentil prazer des
terra,
o estio já desfalece,
é um pássaro sem
pio
no amargo mês
de abril.

§


UMA MANEIRA DE

Aujourd’hui grand-mère est morte
a cama branca
cheira a antisséptico
os pulsos enrugados

importante: não há janela
paredes brancas
tudo é branco
glaucoma
a cegueira vem antes dos olhos
azul-cinzento leitosos
quando os olhos se viram para dentro
tudo é branco menos
quando os olhos se viram para dentro

você morre

peixes

se multiplicam
mas morrem

a maré não se move
cardumes de ventre para o alto

poder algum sobre a permanência
tempo como ordem
a espécie, a estação, um número

a morte vem antes da morte
o sangue não é a verdade
o dinheiro não é a verdade
as rugas no rosto
não são a ruína

idade não é a ruína

heranças, família,
ódios mesquinhos
uma maneira
amena
de dizer adeus?

§

VALE DO DEMÔNIO ANNO DOMINI 2003

Le pauvre monde est sujet à l’erreur.
Laurent Tailhade, “Ballade (touchant la variété des jugements humains)”


Do viaduto você divisa o vale do anhanga,
o “demônio”, com seus chifres e cauda:
um hiato sob as palmeiras de folhas amplas
que fatiam com suas lâminas o vento encanado;

no Municipal há o beijo de enlace neoclássico
de Eros e Psiquê; a belle époque dos italianos
nada anarquistas, mas talvez, oh sim, artistas,
que talvez lessem D’Annunzio com prazer;

os chafarizes onde farreiam moleques de rua
não têm nada de torpe, nem de Verlaine. Vivos
túneis do metrô, office-boys e envelopes pardos,
azulejos pichados no Largo da decadente Memória :

em 84 no Vale não era só escorraçar Figueiredo
ou outro fantoche de farda; votar mal, sobretudo;
um belo lugar pra se encher de gente e dizer:
“Chega”, ou “estamos fartos”, com a bênção

da Diana dos Bosques, rainha dos bêbados loucos
do Vale, e filha de Jean-Antoine Houdon (17 etc),
o mesmo do sorriso maroto do velho Voltaire:
“il faut cultiver nôtre jardin”— jardineiros de merda.

Pregadores cristãos na praça com línguas de fogo
— bênçãos das pombas dos Correios — dentro
de ternos surrados; ciganas te agarram e há uma luz,
diáfana, que surge ao fundo no horizonte.

As folhas das palmeiras se movem,
como seus cabelos, contra o vento
que leva embora os ruídos e a inutilidade
da sua opinião sobre as coisas deste mundo.




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