segunda-feira, 25 de abril de 2016

O motim das eminências pardas


Daniel Santiago (performance), Jomard Muniz de Britto (cartaz) e Paulo Bruscky (foto) 
- "O Brasil É O Meu Abismo" (1982)


Com a cara na folha em branco, tentando escrever este texto. Assisti à Sessão do Plenário e a votação do processo de impeachment com a sensação clara de estar vivendo o mais sério momento político do país em minha vida, certamente o de minha vida adulta. Até agora. Ninguém sabe o que virá nas próximas semanas. Uma amiga estrangeira pediu que eu explicasse o que estava acontecendo. Nem sabia por onde começar. Ela disse que eu começasse onde tudo começa: o começo. “Bem, no dia 22 de abril de 1500...”, comecei. Ela riu. Era piada. Era piada? É claro que seria absurdo dar tal causa retroativa à situação de hoje. Mas certamente sinto que nós brasileiros sempre perdemos o fio da meada porque nem sabemos que a meada existe. A meada, por certo, é a nossa História.

Há pouco foi novamente 22 de abril. Nos livros, lá está: Descoberta. Chegamos a celebrar o fato no ano 2000. Ainda. Ainda dizemos “descoberta do Brasil” para o que ocorreu naquela data, clara identificação nossa com os colonizadores. Quando os holandeses aqui aportaram e ficaram, passaram à História como a Invasão Holandesa. Os portugueses não invadiram, mas o holandeses sim. Independência nossa feita por um monarca nascido em Portugal, a nação fundou-se com uma mera troca de gerência. Simplesmente nos apoderamos da máquina colonial, sem mudá-la. Por isso nossa relação com a terra e com os povos indígenas continuou a mesma: exploração e extermínio. Por isso não abolimos a escravidão iniciada pelos portugueses, mas a intensificamos. Nossa relação com a terra ainda é a de colonizadores. Explorar, e destruir quem se oponha.


Dicionário infantil: “presidente”: pessoa que aparece na televisão 
e fala em todos os canais ao mesmo tempo. Minha primeira experiência: 
Figueiredo na televisão. Devia ser o quê? 1983? 

___ Quem é esse, mãe?
___ É o presidente.


Cresci num lar malufista. Meu pai foi cabo eleitoral de Paulo Maluf e o apoiou toda a sua vida. Além de Lula da Silva, havia apenas um homem capaz de fazê-lo xingar e gritar mais alto com a televisão: Leonel Brizola. Meu pai se alterava quando Brizola aparecia na TV. Sendo ele a autoridade que eu conhecia, por muito tempo, até certo ponto na adolescência, repeti aquelas ideias como um papagaio. Na escola, vendo outras perspectivas, e mais tarde na universidade, pude transformar minhas ideias. Talvez muita gente no país jamais passe desta fase, a de repetir como papagaio o que ouviu em casa. É claro, ainda, que muitos têm hoje no país uma ideologia de direita estando em plena posse de seus diplomas e faculdades mentais. Gostaria de acreditar que há uma possibilidade verdadeira de debate e diálogo civilizados. Mas os agentes do status quo são poderosos demais, e violentos. Amealharam este poder por séculos e com impunidade. Lá estava Paulo Maluf, dentro do Congresso, votando em favor do impeachment, contra a corrupção.

O circo de hienas naquela sessão do Plenário foi a ilustração da nossa República Federativa da Gambiarra. E as dedicatórias da família Bolsonaro ao Golpe de 1964 e ao facínora torturador Brilhante Ustra queimam. É que, ao contrário do que cantou Chico Buarque, quando chegou o momento não cobramos o sofrimento com juros, ao contrário dos nossos bancos. Contemporizamos. O Brasil ama uma conciliação temporária. Aliados dos responsáveis pelo revogamento de todos os direitos constitucionais na década de 60 podem hoje, dentro do Congresso Nacional, louvar torturadores. E é o que esperam desta remoção da presidente eleita: outra conciliação temporária. Outro pacto. O Golpe de 1964 foi um pacto civil-militar, como parece mostrar-se cada vez mais como um pacto civil-militar o que chamamos de transição democrática.

Memória antiga: muitas pessoas embaixo de uma gigantesca bandeira 
do Brasil. Muita alegria. Era carnaval? Isso eu sei quando foi: 1985. 

___ O que é isso, mãe?
___ Acabou a ditadura.
___ O que é ditadura, mãe?
___ Ah, isso é complicado. Você é muito pequeno.


Pessoas conscientes agora digladiam-se quanto a que nome dar ao que houve no dia 17 de abril de 2016. Golpe? O processo do impeachment é previsto na Constituição. Porém, com que legitimidade, não apenas legal, mas política? É política esta crise e só haverá saída com legitimidade política. Como pode um processo de tamanha seriedade ser comandado por um réu como Eduardo Cunha, envolvido em escândalos desde o governo de Fernando Collor de Melo, e por outros tantos acusados dentro do Congresso? Gigantesca gambiarra. O motim das eminências pardas, de homens como Michel Temer e Eduardo Cunha, que não seriam confiáveis como síndicos de um prédio, e agora estão às portas da presidência da República. Um possível conserto e concerto poderia ter sido a Reforma Política. Talvez. Há quem duvide mesmo disso. Defendida pelo Governo, emperrada por Eduardo Cunha, que só chegou onde chegou graças ao Governo. Mas como pode alguém em sã consciência, após estes meses todos, querer correr o risco de ter um homem como Eduardo Cunha, por um dia sequer, no Palácio do Planalto, conhecendo sua falta de escrúpulos quando se trata de manter-se no poder, custe o que custar?

Veremos tanques? Estão nas ruas os Caveirões da Polícia Militar. Nossa República nasceu militarizada. O medo de muitos de que estejamos vivendo a subversão dos direitos constitucionais, para além da sanha governista, é legítimo diante deste quadro. Porque não importa o que se pense do que houve no domingo. Só um ingênuo pensaria que estamos perto de resolver esta crise política, de uma polarização violenta que tampouco começou ontem, ainda que só tenha dado as caras nestes termos a partir das Jornadas de Junho de 2013, quando a direita sequestrou as estratégias de rua da esquerda. Algo, aliás, que se vê também na Alemanha em um movimento como o Pegida. Esta polarização já está entre nós há uns 10 anos, pelo menos. Já estava clara, certamente, nas eleições de 2010. Quanto a nossos direitos constitucionais, talvez estejamos descobrindo tarde o que já sabe Rafael Braga Vieira, ainda preso, o que sabe a família de Claudia Silva Ferreira, morta e arrastada no asfalto pela Polícia Militar, o que sabem cada quilombola e cada indígena do território. 

As capitanias hereditárias, eternamente ocupadas em amealhar, sempre serão um perigo à República. Os que só pensam em proteger o que é seu jamais compreenderão o que é de todos. No Brasil, parece compreender-se apenas o "meu" e o "de ninguém", que, portanto, pode ser revertido em "meu" também. E elas não se importam em brincar com incêndios, porque nunca se queimam.

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Carlos Drummond de Andrade - "Os bens e o sangue", in Claro Enigma (1951).

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sexta-feira, 22 de abril de 2016

Um falcão no aeroporto (dedicado a Nelson Bell)

Em performance com Nelson Bell em Madri, nosso duo Bell Dome, no Conde Duque Centro Cultural.

Hoje é aniversário do meu parceiro Nelson Bell, que também se apresenta com o codinome Crooked Waves como produtor de música eletrônica, e que terá seu EP de estreia lançado pelo selo Gully Havoc, que dirijo com Ellison Glenn (Black Cracker). Comecei a escrever este poeminha do lado dele, no aeroporto Schönefeld de Berlim, enquanto esperávamos para voar a Madri, onde nos apresentamos como Bell Dome (foto de Hortense Gauthier acima), nosso projeto colaborativo de voz e música.



Um falcão no aeroporto

                       a Nelson Bell


nós aguardávamos
o nosso voo
quando vimos
pairar sobre o gramado
no aeroporto um falcão
seu corpo
estático no ar
mas extáticas as asas
e silencioso o zoom
da câmera
de vigilância dos seus olhos
sobre uma presa qualquer
invisível nas lâminas
verdes da grama
santa maria mãe de deus
rogai por este camundongo
um falcão
estável no ar frio
que compartilhávamos
aguardando o nosso voo
entre o avião
e o falcão
e não eram suas asas
e a nossa falta
e não era o seu voo
e o nosso pouso
e não era a sua caça
e a nossa fome
mas um desejo difuso
nem sequer de ser
um pássaro
quem sabe só
um mamífero
mais inteligente
como os cetáceos
que voltaram para a água
onde depende-se menos
da graça como arma
contra a gravidade
santa maria mãe de deus
rogai por nós
durante nosso voo
artificioso
em asas de metal
e pela pobre alma
daquele camundongo


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quinta-feira, 14 de abril de 2016

Homenagem atrasada a Raul Pompeia por seu aniversário


Ontem foi o dia em que mestre Pompeia nasceu, há 153 anos. Dom Pedro II havia sido coroado fazia 21. No ano seguinte ao nascimento de Pompeia, começava a Guerra do Paraguai. Milhões de seres humanos sequestrados de seus lares trabalhavam como escravos do Oiapoque ao Chuí. Muitos anos depois, Euclides da Cunha encerraria um anti-épico: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades..."

Enquanto escrevia O Ateneu, respirava o ar do Rio de Janeiro e o compartilhava com Machado de Assis, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Luiz Gama. Logo cairia a família imperial e viria a sucessão de marechais e fazendeiros, enquanto Cruz e Sousa trabalhava como arquivista na Central do Brasil. Olavo Bilac, Luís Murat e Raul Pompeia trocavam insultos pela imprensa por desavenças políticas em torno de Floriano Peixoto.

Quando estive no Rio de Janeiro pela última vez, fui ao Cemitério de São João Batista procurar seu túmulo. Não o achei. Trombei com o de Tom Jobim, o de Carmen Miranda, o do Barão de Itambi e o do Barão de Santa Margarida.

Tropecei em um túmulo dilapidado, em que se lia algo como AM____ RI___ FACÓ (18__- 1_53) e me perguntei se seria o elegante amigo poeta de Carlos Drummond de Andrade, a quem ele dedicou seu Claro Enigma (1951).

Tempos distantes, tudo tão estranhamente igual. Tivesse encontrado seu túmulo, teria feito minha prece-ritual:

"Ave, Pompeia. Nome de catástrofe. Que se soterre em cinzas o Rio de Janeiro. Sobre os escombos d'OAteneu, teu Sérgio é o nosso Angelus Novus."



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