quarta-feira, 15 de maio de 2019

A morte em parcelas

             a Francisco Bley

A primeira vez que eu morri,
gaguejei ao amigo se se sobrevive
a essa morte em parcelas
e o amigo, já escolado
em mortandade, respondeu: sim,
se sobrevive, se atravessa o quarto
em chamas e se emerge no jardim,
chamuscado, a musselina pegada
à pele, a própria pele qual musselina,
mas vivo, ainda, ainda mais para cá
do que para o além, quando hemos
de estar não só alfabetizados
mas psiomeguizados nesse vocabulário
das perdas crescentes como as dívidas.

Isso, isto deveria servir de consolo,
como volta a primavera de Perséfone
em férias no submundo, e voltam peixes
a rios devastados, e as baleias a mares
de plástico, e até o sol volta ao Ártico
após uma noite que dura meses.
Ainda que se sinta isso como castigo.

As alegorias mais esdrúxulas
já foram usadas para essa teimosia.
As alegrias mais estapafúrdias.
Almodóvar e o coma em meio a touros,
Duras e os brotos no solo de Hiroxima.
Notem a audácia. Se se sobrevive?
Sobrevive-se.

Rá monta de novo sua carruagem,
o Cristo ressuscita, Dom Sebastião
volta. A holotúria, o rabo da lagartixa,
o braço da estrela-do-mar, etc, etc.

E Hiroxima reconstruiu-se deveras.
Taparam-se as crateras em Berlim.
Vidas individuais, vidas coletivas
que se erguem de escombros
tanto do amor quanto da guerra.

Mesmo que maremotos salguem a terra.
Notem, notem a nossa audácia.
A teimosia dos pulmões. Do coração.

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