quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

SEIS CANÇÕES PARA A CONCHA

 1.

Deitamos em forma de concha
e as curvas de nossas colunas,
com essa minha pança ao meio,
soletram SOS a Deus e a drones.
Na pele não há qualquer corte
mas, como a alfaiate ou médico,
algo em nós implora por sutura.

2.

Não nos importa o tal Aristófanes,
suas lorotas num velho banquete.
Nós quase já somos aquela bolota
de quatro braços, quatro pernas,
como no leito do mar os polvos,
enfurnados aqui, em sua quitinete.

3.

Um pedaço de nós entra no outro, 
como o anzol na boca do peixe,
como a flecha na carne da onça.
Quisera fôssemos aptos à osmose.
Ainda lateja em nós o descorçôo 
de não amanhecermos siameses.

4.

Meu dedo se acopla ao côncavo 
do seu umbigo. É um molusco
que busca esconderijo num coco.
Fisgada que enrijece um músculo.
Satélites de satélites, em órbita 
de si, a rotação de nossas bundas.

5.

Inspeciono em seu braço direito,
qual cratera de meteoro na lua 
cheia, sua cicatriz de uma vacina.
É uma Lagoa Rodrigo de Freitas
cheia do seu suor e minha saliva.

6.

Como a Maomé veio a montanha,
até mim há-de vir o seu bíceps.
Minha testa, sobrancelhas e nariz 
celebram bodas, glória!, aleluia!, 
com sua cerviz, cangote e nuca.

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

AS TABUADAS E OS COLETIVOS



Na escola o que eu mais detestava
era a repetição diária das tabuadas.
Ali começava a confeccionar 
meu próprio espelho,
a dizer: este sou eu, o das palavras, 
não o dos números.

Rejeitava aquela reiteração 
das certezas pétreas, rígidas 
como a gravidade,
a mais detestada de todas as leis
por qualquer criança.

Nos sonhos raros 
em que podíamos voar
quebrávamos também essa lei,
pequenos mutantes caboclos,
mulas aladas sem cabeça.
Pégaso-Pangaré.

Hoje o coração está repleto
de adições e subtrações, 
multiplicações e divisões.

Está bem. 
1 + 1 são 2
e 1 x 1 é 1.
As compras, as dívidas, as eleições 
provaram seus números e porcentagens 
de forma bastante empírica.

Mas a idade 
também demonstrou outras coisas:
que UM mais UM são 
tantas vezes só isso:
esse ao lado deste, inconciliáveis.
Tão adicionáveis quanto admissíveis,
sem a metamorfose de cada UM
num único pato na lagoa.

E dois patos na lagoa são já um bando?
À matemática, língua certeira,
preferia as ambiguidades da língua incerta,
topônimos como Bonito e Gostoso.
Seria Bonito realmente bonito?
E Gostoso, deveras gostoso?

Os coletivos eram um prazer estranho,
repetia-os e não atentava 
às advertências da professora
contra meus pleonasmos,
afinal a alcateia só podia ser de lobos,
o arquipélago só podia ser de ilhas
e o cardume, só de peixes.

Mas havia o prazer da confusão
e um porco em sua vara
tanto podia ser 
um ser roliço e feliz entre os seus
quanto um cadáver assando no fogo.
Os porcos nas varas!

Havia essa liberdade da palavra
contra os números
e repetia só para mim mesmo,
não como quem comete uma gafe
mas como quem sussurra um feitiço:

matilha de meninos,
arquipélago de namorados,
cardume de amigos,

e éramos então por um segundo
corpos esfomeados 
mas livres no mato (lobos),
separados e cercados
mas pertencentes (ilhas),
submersos mas vivos
pontos móveis de prata (peixes).

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

No centenário de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector

Estou trabalhando em algo para a Deutsche Welle com o centenário de Clarice Lispector em mente, e conversei durante o fim de semana com o escritor e tradutor alemão Oliver Precht, que além de ter vertido trabalhos de Oswald de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro para o alemão, tem também trabalhado muito com textos de Clarice Lispector, em especial "O ovo e a galinha" e "Mineirinho", sobre os quais escreveu um texto muito interessante que pode ser lido na edição de dezembro da prestigiosa revista de arte alemã Texte zur Kunst.

Quando estou escrevendo sobre algo, minha cabeça viaja associativamente para vários ângulos da questão. Esta manhã estava a pensar sobre os paralelos interessantes entre dois centenários ilustres neste Ano de Nossa Senhora da Virulência 2020: o de João Cabral de Melo Neto e o de Clarice Lispector. São dois dos maiores escritores nossos do pós-guerra, talvez os mais influentes. São escritores da mesma geração, por vezes agrupados com João Guimarães Rosa na chamada Terceira Geração Modernista (que difere e coexistiu com o Grupo de 45, seu antípoda). 

João Cabral de Melo Neto estreou em 1942, com Pedra do Sono. Clarice Lispector estreou em 1943, com Perto do Coração Selvagem. João Guimarães Rosa, em 1946, com Sagarana. Se pensarmos antoniocandidamente, considerando a estreia de um autor e portanto sua inserção no diálogo republicano como determinantes geracionais e históricas, teríamos que pensar ainda em José Paulo Paes, que estreia em 1947 com O aluno, e decidir o que fazer com Dante Milano e Joaquim Cardozo, autores mais velhos que têm publicações pela primeira vez também em 1947. Perdoem-me, alguns já sabem que tenho dessas obsessões historiográficas. As histórias que nos contamos muitas vezes nos determinam.

Mas retornemos aos centenariantes: Cabral e Clarice. Como é raro pensarmos nos dois juntos! Mas há vários paralelos com diferenças determinantes. Ora, não terão se cruzado na Recife de sua infância? Talvez sim, talvez não. Afinal, um deles era um menino da elite econômica de Pernambuco e neto de senhores de engenho; a outra era uma menina imigrante pobre. Os dois fariam do Rio de Janeiro sua casa, e ali morreriam. Os dois passariam longos anos fora do Brasil, envolvidos com a diplomacia brasileira, Cabral como diplomata ele mesmo, Clarice casada com o diplomata Maury Gurgel Valente.

Na obra de Cabral, Clarice comparece em um poema conhecido:

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR
João Cabral de Melo Neto 

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

[extraído do livro Agrestes (1981/1985)]

Sabemos que Cabral apreciava muito o trabalho de Clarice, e tentou convencê-la a permitir que ele estreasse sua tipografia d'O Livro Inconsútil em Barcelona com um trabalho dela, à época uma peça intitulada 'O coro dos anjos', mas que só seria publicada no livro A legião estrangeira em 1964 com o novo título “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. Clarice recusou o convite.

Cabral entraria para nossa história como o poeta objetivo, seco, antilírico e anti-psicologizante. O menino rico também se tornaria o exemplo do autor engajado nas questões socioeconômicas do seu tempo. Clarice, por sua vez, seria lida como a autora das profundidades psicológicas (eu mesmo já cheguei a dizer que foi ela, com Machado de Assis e Nelson Rodrigues, que inventou nossa 'alma', não nos vendo como meros joguetes justamente daquelas forças socioeconômicas), a escritora de potência mística. 

Em seu texto para a revista Texte zur Kunst, Oliver Precht questiona justamente essa visão de Clarice Lispector como autora 'apolítica', a partir especialmente de um texto como "Mineirinho". E, ora, João Cabral de Melo Neto não é o autor daquela gigantesca pérola de profundidade psicológica e mesmo potência mística que é o poema “Uma faca só lâmina"?

Nos nossos dias de horríveis balas perdidas, não sei o quanto nos ajuda, salva ou exorta, pensar nas balas que comparecem em trabalhos de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Mas elas estão lá.

*

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

– João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina, excerto.

*

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos."

– Clarice Lispector, "Mineirinho", excerto.


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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

PEQUENO EXERCÍCIO DE ORNITOLOGIA HAGIOGRÁFICA



de santos e sábios
os céus
têm os seus sabiás
e assuns.

só as aves sãs
são os anjos
que nos cabem,
nos sabem.

na igreja homens
egressos do barro
de novo são barro
cozido e pintado.

mas de Pedro 
vejo o velho 
vivo de cabeça
para baixo,

de Sebastião
vejo o jovem 
que era são 
antes das setas

e Francisco todo,
são e sanado,
canta ao lobo 
-guará e suindara.

São Barro,
rogai por nós,
somos só 
roupa e borra.

o que difere
seu João 
de 
São João?

o que difere
‘ave, Maria’ 
de 
‘vai, Maria’?

o cardeal 
a quem peço 
a bença 
é o pássaro,

o sol no mar
é meu Lázaro
e é você o sal 
da minha terra.

seja sã, Maria,
seja são, João,
nessa febre 
terçã do chão 

enquanto 
no céu, suave 
e só,
vai a ave.

*

Imagem: quatro trabalhos do holandês Albert Eckhout (1610–1665) para a ornitologia brasileira.

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