quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Caetano Romão - MAU-MAU E A MEDICINA [poema inédito]

Caetano Romão (Ribeirão Preto, 1997)

MAU-MAU E A MEDICINA

i.

mau-mau na outra ponta do sofá
sentado feito um buda
cheio de farelo no colo
me faz recomendações
a calvíce a rinite a nicotina
de perna cruzada
comendo biscoito de maisena
prescreve xaropes medicinas
conhece bem minhas manias
mau-mau é bom
só o sapato no estofado desmente
logo ele que diz
não pisa com o pé no sofá
mau-mau hoje está terrível 
muito sabido
toma meu pulso
cheira minhas partes
desconfiado
querendo saber 
de onde eu vim


ii.

a partir de agora 
se faz necessário
certo recuo
não tão brusco:
mau-mau estralando meu dedão 
do pé esquerdo
me elogia dizendo
você parece ser simples
tento responder
mordo a língua na pontinha
me espremo contra o sofá
agudo de aflição
sua fala cirúrgica
limpa os óculos 
na borda da cueca
pra ver de perto
pra ver melhor
mau-mau que
me conta verdades
como se catasse pulgas
diz assim 
como um doutor
me dá o outro pé


iii.

recuar
como um ossinho volta ao lugar
depois que puxa
sei de gente que estralava 
os lugares mais improváveis
escápula cotovelo bacia
isso pra não falar do resto
quem estrala o corpo
teima com o corpo
quer prolongar o corpo
está de mal com o corpo
como se padecesse
de um soluço no osso
digo já chega pro mau-mau
esse sou eu encolhendo as pernas
eu que muitas vezes sinto cócegas
em lugares indevidos
esquecendo as coxas
em lugares indevidos
gargalho quando não quero
confundindo com bitucas
minhas unhas cortadas no chão


iv.

gente que pigarreia antes de falar
mau-mau é desses
como se trouxesse notícias muito novas
o rapaz é profissional
mau-mau corrige minhas lições
e meus ossos


v.

faz de conta que ele 
guardasse um estetoscópio
ao redor do pescoço
a brincadeira é essa
quem tira a roupa sou eu
quem fica vestido é ele
conhecemos bem 
os papéis
eu digo é aqui que me dói
já ele apalpa outro canto
assim vai
decifra meus centímetros
os pentelhos 
todos no mesmo lugar
fica pasmo quando tusso
interroga anota cutuca
caxumbas catarros
insinua o caso é grave
entre nós alguma malícia
de ciência ou suborno
diz que tenho dor de dentes
no coração
não acredito
não peço a receita
não pago a consulta


– Caetano Romão

*

NOTA: este poema foi publicado no primeiro número impresso da revista Peixe-boi, mas ali apareceu com outras quebras de linha. 

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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Frederico Nercessian - DISCURSO [poema inédito]

Frederico Nercessian (São Paulo, 1988)
 

DISCURSO

               a I.T.N.

é perigoso 
aqui na caixa d’água 

ponto.

trata-se de 
documento histórico 

outro ponto.

cadafalso:
suspenso à 
forca na
janela
encaroça;

calço-me em falso,

e cedo
diante da 
transparência do
colorido.

proclamo:

não se pode,
do passado,
cobrir o corpo
de concreto

imagine então 
ressequir a saliva
ao falar aos quatro
cantos


– FREDERICO NERCESSIAN

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

DEVOÇÃO - um poema inédito de Ismar Tirelli Neto

 

Ismar Tirelli Neto (Rio de Janeiro, 1985)

DEVOÇÃO

 

Estou doce doce de condicionais

Todos os dias capacito-me de um crânio

A cultura coloca-me certo número de buracos onde meter minha devoção

Estou doce doce de diretivas

De meio a formidáveis reescrituras tenho caminhado

Caminhado com emparedamento cada vez maior

Encarregue de certo ritmo na roseira

Arrasto pelo mundo aparição e desaparição

Arrasto o triz até o tram

Quando subo

O mesmo vazio de consecução

Olhos choram contracorrentes 

Onde um assento vazio?

Na minha frase 

Onde um assento vazio?

Estou doce doce de hibridação

Para sentar às centelhas sobre o veículo já não se tem idade

Para sentar às estrelas

Para tomar café-da-manhã com as estrelas

Já não se tem idade

Não lhes parece o caso? 

Sou eu quem deve preponderar na minha frase

Não lhes parece o caso? 

Quem deve preponderar na minha frase sou 

Eu fora 

Fora todos os ouvidos

Preciso de um vagão vazio para dizer o ouvido

Um ouvido inteiro

A cultura corta um buraco redondo entre os reservados do banheiro 

Volvam volvam as vontades quebradas

Estou virado como século

Vemos um filme extremado

Tenho pelo menos a virtude de realmente existir

Trabalho por adesivos de coração

Jogo ao cisco

Ganho em urbanidade

Muro-me de Introduções Guias Manuais 

Tacanhado em cômodo com todos os quadrantes da Terra

Concateno frêmito no escroto à chegada do significado

A cultura coloca-me certo número de histórias de conversão a memorizar

Estou por assim dizer


– Ismar Tirelli Neto


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