domingo, 25 de agosto de 2019

Witzel e os pangarés do apocalipse




Houve
Joaquim Pedro de Andrade?
Houve.

Houve
Alfredo da Rocha Vianna?
Houve.

Houve
Antônio Carlos Jobim?
Houve.

Houve
Angenor de Oliveira?
Houve.

Houve
Vinicius de Moraes?
Houve.

Houve
Machado de Assis?
Houve.

Houve
Heitor Villa-Lobos?
Houve.

Houve
Antônio Candeia?
Houve.

Houve
Cecília Meireles?
Houve.

Houve
Dolores Duran?
Houve.

Houve
Zózimo Bulbul?
Houve.

Houve
Lima Barreto?
Houve.

Houve
Clara Nunes?
Houve.

Houve
Lygia Pape?
Houve.

Houve
Márcia X?
Houve.

Etcétera.
Contudo,

há esse,
o esse

Witzel,

o ovo
choco

do frio
da Candelária,

do calor
do ônibus 174.

Desse pasmo
falso,

desse fracasso,
nasça algo.

*



A república refém, num ônibus sobre ponte de concreto, sob ameaça de ser carbonizada. Do norte, chove cinza. A república - também - executada ao vivo. A república - a mesma - que aperta o gatilho. Uma tragédia só. Não há vitória. Há uma derrota mitigada. Nós somos um fracasso com atenuantes.

Matamos. Morremos. Nos salvamos. A legítima defesa. O alívio e o velório. O bom horror. Não, “enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos”, como escreveu Clarice Lispector sobre Mineirinho.

A gasolina real. A arma de brinquedo. O governador descendo de helicóptero como num pangaré do apocalipse. Fomos salvos. Fomos mortos.

“Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça.” (CL)

*



‪Senhora entre os reféns:

___ “Precisamos acolher a mãe desse menino.”

acerca de Willian Augusto da Silva, que sequestrou o ônibus, e foi morto.

‪Parente do rapaz:

___ “Ainda bem que só a nossa família está chorando hoje.”‬

‪Como no poema de Borges: ‬essas duas pessoas, sem saber, estão salvando a República. Estão salvando o mundo.

.
.
.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Carta a André Capilé no fuzuê de um toró




Nessa cambada,
que parentesco fora do sangue
nos une, songos

que somos nessa terra grande
das mil zangas?
Zune ao redor o grão-muxoxo

de marimbondos,
enquanto nos emperiquitamos
nessa vida-a-jiló,

nossa pobreza nas quitandas,
nós, uns moleques.
Curingas em preto-e-branco.

E algum antepassado
meu terá ferido ancestral teu,
pele, couro e pelouro?

Bagunça o cochilo essa ideia,
me sinto qual titica
a pensar em crimes que herdei.

Ou jamais hemos nós
de saber em que parte da carne
carregamos o algoz?

O algoz-pai que agua
a nossa tinta, o dendê na ginga?
Dóem pés-na-bunda,

chafurdar qual minhoca na farofa
da dor nacional.
Doar nosso fubá, nossa canjica,

as babas do quiabo nas bibocas.
Nenhum cafuné
exigimos de cidadãos, só aluguel

para o cafofo pago, paz na roça.
O abuso da cachaça,
já sabemos, é culpa toda nossa.

Seguimos. Ninamos
traumas como a filhos que um dia
enfim se emancipem.

Examinamos sem dedo e aliança
o campo comum
da batalha, maxixe do cangaço.

Por ti às vezes me candomblo,
macotas no toró
de línguas-fantasma sem plural.

Nesse nosso dengue anti-capanga,
capenga, o samba nosso.
Parentes, até o beleléu, sem igual.

*

Berlim, 02 de agosto de 2019. Retrato de André Capilé por Vinicius Vargas.

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