Rocirda Demencock

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Três poemas para São Sebastião


 

Dentro da iconografia cristã, a imagem de São Sebastião é uma das que mais me interessam. Há uma tradição forte em torno dela na arte em geral, e também na arte homoerótica. Reúno nesta postagem três poemas brasileiros sobre o santo. Um é já bastante conhecido, de Orides Fontela (1940-1998). Os outros dois, mais recentes, vêm dos colegas, colaboradores e amigos Frederico Nercessian e Luis Gustavo Cardoso.


SÃO SEBASTIÃO

As setas
- cruas - no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
- firmes - confirmando
a carne.

[Orides Fontela]

*

TIÃO

seu corpo
flecha

uma a uma
flecha

no peito no dorso nas costas da mão
pedaço da batata
arranha
flecha

arde a pontaria
dedilhos impulso
a corda
flecha

solavanco enfermo
rubro é a cor da manta antes
branca
flecha

afoga a mandíbula
prego
chinelo de dedo
arrasta a haste
disparo
flechas.

agora,
a casca da ferida.

[Frederico Nercessian]

*

NOME DO SANTO

São Sebastião nome do santo
teve coragem maior que eu, a
flecha pegou, o pau comeu, e

no entanto ele subiu as escadas
do castelo e repetiu ao chefe:
- Batei em mim, poupai os meus.

Subiu aos céus, às mãos de Deus,
seu chefe-mor: - Fora do corpus,
sem testamento, que o livro é meu!

Deram-lhe ao menos vida de rio
em que navego meu sangue ateu:
São Sebastião, poupai os meus.

[Luis Gustavo Cardoso]


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Imagem:  Pietro Perugino, São Sebastião1495

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segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Ricardo Domeneck + Barulhista na Associação Cultural Cecília

 A convite de Jeanne Callegari e Flora Miguel, eu me apresentei no evento Brecha em São Paulo, ao lado do músico mineiro Barulhista no dia 13 de setembro de 2022. Vídeo completo da performance abaixo.


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segunda-feira, 28 de março de 2022

João Lins Caldas (Rio Grande do Norte, 1888-1967)


Agradeço a Ayrton Alves Badriah por chamar minha atenção para o trabalho deste negligenciado modernista brasileiro. Alguns poucos poemas do autor foram reunidos no volume Poética (1975).



Começou a receber maior atenção crítica nas últimas décadas, e uma parte mais considerável de sua vasta obra foi editada no volume Poeira do céu e outros poemas (2009), organizado por Cássia de Fátima Matos dos Santos, que tem dedicado sua atenção crítica ao autor, como no texto “A ponte entre o arcaico e o moderno: leitura de um poema de João Lins Caldas”, ou sua tese de mestrado, "Vaga-lume na treva: a poesia de João Lins Caldas".

*

POEMAS DE JOÃO LINS CALDAS


UMA ISABEL MORREU NO MUNDO

Uma Isabel morreu no mundo.
Tinha pai e mãe, irmãos e sobrinhos, aquele mundo de primos no mundo.
Avós enterrados, bisavós trepidantes nos cernes duros de árvores agigantadas.
Ascendentes outros na nervura de asas e barbatanas de peixes.
Isabel hoje estava cansada.
Remontava das suas origens a dias muito anteriores aos dias de Tebas,
Viveu de fresco os poemas de Homero,
A guerra de Tróia,
O passado de Sócrates,
E, caída Cartago, soldados ruivos, assalariados, mortos.
Não soube nada de sua crônica.
Era uma mulher, vestida de saia, os cabelos compridos
E se alimentava de pão, rapadura e mel.
Isabel tinha linhas nas mãos.
Uma sorte que estava escrita, diferente sem dúvida das outras sortes.
O destino de Isabel, o destino da vida como dos outros que carregam a morte.
Eu nunca vi Isabel.

*

O SOMBRA
 
Esse homem infeliz e sacrificado,                     
Os dias de sol que passaram sobre a sua cabeça,
As noites de chuva e tempestade,
As suas horas de esperança,
As suas horas de desespero,
Onde está ele, onde estão dele todas as suas tempestades?
 
O coração que lhe pulsa acelerado
De sangue, veia e veia, do seu corpo,
Seus nervos retorcidos, abalados,
Grisalho o seu cabelo, o olhar na noite,
A noite na sua alma, demorada,
Onde estão ele, a tempestade e a noite?
 
Sonâmbulos os passos, carregados,
Algidas as mãos de trémula brancura,
Tudo nele a sombria claridade..
 
Vejo, com vê-lo, nada ver no mundo.
Vejo, com vê-lo, já não ver mais nada.
 
Esse homem que se abriu um sepulcro no mundo.
 
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A VIDA ESTÁ CHEIA DE TODOS OS ACABADOS MONSTROS

— O homem.

A vida está cheia de todas as famigeradas serpentes.

— O homem.

A vida corre parelha com todos os ventos e com todas as tempestades.

— O homem.

A vida marcha para a concretização de todas as ideias e de todos os pensamentos.

— Para onde marcha o homem.



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quarta-feira, 23 de março de 2022

Régis Mikail [Quero me enterrar aos monges]

 



[Quero me enterrar aos monges]


Quero me enterrar aos monges, sentir o cheiro da bata, da inhaca e da sandália surrada, engolir balidos couros, da crosta ao calcanhar, a cada passo os dedos alargados afundando minhoquinhas; 

persigo cada uma, 

dedinhos de pés e fios encaracolados a terra seca tamisada

sálvia murta penugem e caramujos na cóclea de ouvidos hirsutos

o Monte Athos do agreste acantos e espinhosas 

suculentas

a silhueta dissipa míope a muxiba 

fimose da cobra esturricada.

 

O Aprendiz de Feiticeiro desejava a picada selvagem e a catinga das virilhas dos anacoretas, a quem décadas austeras proibiram abluções de qualquer sorte, por medo do desejo.

 

E esse deus sujo se revela mais puro que qualquer assepsia pregressa.

 

Nem mesmo um herói sob o Sol de Satã existe; verdade, já não mais está. Mas creio nele, sim, este é o prodígio, 

um homem de fé que não seja o idiota, 

um pé-de-cabra não brilhante nem paspalho 

abobado iluminado

com o diabo trava batalha  

não como aqueles 

das histórias da carochinha 

fiapos nas tripas de novelos em bofes regadas.

 

Não existem separadamente: Deus e diabo habitam 

tentam as mesmas pessoas 

nos mesmos lugares.

 

            Apenas nunca vou conhecê-los, nem a um nem a outro. Cedo fui mutilado do divino, cegado, ensurdecido, emudecido, por Deus intocado,

exposto aos olfatos mais elaboradamente simples

melhor teria sido anosmia da napa morta

o cheiro de couro mofado

dejeta assepsia

 

ao corpo inerme proibida qualquer relação mística

      palavra tão puída, e não prostituída; 

as putas estão com Deus – 

            

e o gosto de cada som – ínfimo, é verdade, – não deixa de tocar o êxtase, como estelares 

pretendem 

poetastros 

veem poeira morta

acho que a eles amo. 

Resta apreciar como categoria lá do marfim entalhada, uma torre, o javali castrado, sublime onania,

a santa furada no pelo, do monge pelado o escalpo

ao longe, um navio a afundar.

 

Castigo? O regozijo é gozo lapado na arte.

 

Só fui entender, com muito retardo, que o pincel – e tão somente o pincel manejado por Deus –, é para ser sentido a cada golpe de tinta encharcado; e que na ponta cabeluda o pintor pode esboçar um jumento.

Sem Arte, pode-se chegar a Deus,

sem nome nem forma nem ideia

Ele é tudo e tudo é Ele 

E Deus sendo demônio é caminho pedregoso a mula empaca 

defronte 

falo de serpente

por isso mais fácil. 

 

Senda a pé, descalço, Deus habita a beleza árida do estéril e até mesmo a urucubaca. 

 

Não se avexasse tanto com a Luz, a melatonina se assemelharia a Ele. O repouso promissor dos anjos custa caro, liberto do tempo e do vencimento, 

 

que nem pacto com diabo

se um dia é atormentado 

o hormônio recompensa 

espelho a contrario 

e as preocupações se deformam de ponta cabeça. 


*


Régis Mikail é um escritor e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1982. Publicou o romance Onofre (Editora Deep, 2021).


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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

"Balada para Aníbal Barca" -- Victor Heringer (1988-2018)

Estou relendo o trabalho do amigo Victor Heringer (1988-2018), enquanto trabalho no posfácio para o volume que reunirá seus poemas. Está sendo muito forte, à luz de tudo o que veio depois na escrita de Victor, reler seu primeiro livro de poemas, Automatógrafo (2011). Abaixo, um dos meus textos favoritos no volume.



Victor Heringer (1988-2018)
in Automatógrafo
2011

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Pedro Lucas Bezerra - "A memória de Salomé"

 O poema abaixo está no livro de estreia de Pedro Lucas Bezerra (Natal, 1993), intitulado Trem fantasma (2021), e publicado pela Quelônio.




A memória de Salomé

No limiar
toda cabeça que se pede é a dele
de iocanaan

se no silêncio
uma voz vem a ti e fala “salva-me”
essa voz é a da cabeça de iocanaan

se num sonho rubro
tu vês a pálida cabeça
iluminada com lanternas
é essa a de iocanaan

se iocanaan disser que sua cabeça é de outro
que não tem nome
cabeça ori
cabeça que surge em combate
não acredite em iocanaan
porque ele não tem mais cabeça

se você está ouvindo uma música
e nela alguém assobia fora do tempo
é ela lá
a cabeça de iocanaan

se uma cabeça sem lábios
atravessa a noite e invade a festa
é essa ela
a cabeça de iocanaan

- Pedro Lucas Bezerra, in Trem fantasma (2021).

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Nota: Iocanaan é a versão em aramaico do nome de João Batista. Oscar Wilde (1854-1900) usa esta versão do nome em sua peça teatral Salomé (1891).

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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Ana Maria Vasconcelos [poema]

 



Ana Maria Vasconcelos
(Maceió, Alagoas, 1988)

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Caetano Romão - MAU-MAU E A MEDICINA [poema inédito]

Caetano Romão (Ribeirão Preto, 1997)

MAU-MAU E A MEDICINA

i.

mau-mau na outra ponta do sofá
sentado feito um buda
cheio de farelo no colo
me faz recomendações
a calvíce a rinite a nicotina
de perna cruzada
comendo biscoito de maisena
prescreve xaropes medicinas
conhece bem minhas manias
mau-mau é bom
só o sapato no estofado desmente
logo ele que diz
não pisa com o pé no sofá
mau-mau hoje está terrível 
muito sabido
toma meu pulso
cheira minhas partes
desconfiado
querendo saber 
de onde eu vim


ii.

a partir de agora 
se faz necessário
certo recuo
não tão brusco:
mau-mau estralando meu dedão 
do pé esquerdo
me elogia dizendo
você parece ser simples
tento responder
mordo a língua na pontinha
me espremo contra o sofá
agudo de aflição
sua fala cirúrgica
limpa os óculos 
na borda da cueca
pra ver de perto
pra ver melhor
mau-mau que
me conta verdades
como se catasse pulgas
diz assim 
como um doutor
me dá o outro pé


iii.

recuar
como um ossinho volta ao lugar
depois que puxa
sei de gente que estralava 
os lugares mais improváveis
escápula cotovelo bacia
isso pra não falar do resto
quem estrala o corpo
teima com o corpo
quer prolongar o corpo
está de mal com o corpo
como se padecesse
de um soluço no osso
digo já chega pro mau-mau
esse sou eu encolhendo as pernas
eu que muitas vezes sinto cócegas
em lugares indevidos
esquecendo as coxas
em lugares indevidos
gargalho quando não quero
confundindo com bitucas
minhas unhas cortadas no chão


iv.

gente que pigarreia antes de falar
mau-mau é desses
como se trouxesse notícias muito novas
o rapaz é profissional
mau-mau corrige minhas lições
e meus ossos


v.

faz de conta que ele 
guardasse um estetoscópio
ao redor do pescoço
a brincadeira é essa
quem tira a roupa sou eu
quem fica vestido é ele
conhecemos bem 
os papéis
eu digo é aqui que me dói
já ele apalpa outro canto
assim vai
decifra meus centímetros
os pentelhos 
todos no mesmo lugar
fica pasmo quando tusso
interroga anota cutuca
caxumbas catarros
insinua o caso é grave
entre nós alguma malícia
de ciência ou suborno
diz que tenho dor de dentes
no coração
não acredito
não peço a receita
não pago a consulta


– Caetano Romão

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NOTA: este poema foi publicado no primeiro número impresso da revista Peixe-boi, mas ali apareceu com outras quebras de linha. 

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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Frederico Nercessian - DISCURSO [poema inédito]

Frederico Nercessian (São Paulo, 1988)
 

DISCURSO

               a I.T.N.

é perigoso 
aqui na caixa d’água 

ponto.

trata-se de 
documento histórico 

outro ponto.

cadafalso:
suspenso à 
forca na
janela
encaroça;

calço-me em falso,

e cedo
diante da 
transparência do
colorido.

proclamo:

não se pode,
do passado,
cobrir o corpo
de concreto

imagine então 
ressequir a saliva
ao falar aos quatro
cantos


– FREDERICO NERCESSIAN

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