
Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu simbolismo "sígnico" aproxima-a também de um poeta como Wallace Stevens, que fez da apropriação do mundo pela consciência através da linguagem o jogo poético por excelência. Poderíamos pensar também na Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem, de 1963. Mas, se em Stevens este embate e organização do mundo pela consciência é assunto humano e apenas humano, sem sombra de transcendência, Orides Fontela manteve um fio místico em sua poesia, e seus livros possuem movimentos rotatórios, sofrendo enxugamento e pousando em concretude no chão do mundo no poema de uma página, para logo em seguida abandonar-se em certo ambiente etéreo e simbolicamente carregado no poema da página seguinte. Como se a poesia de Orides Fontela não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico daquele que jamais possuiu coisa alguma era preferível. Algo deste fluxo e refluxo pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso. Em "Clima", do livro Alba (1983), tal via de mão dupla da linguagem se faz presente com força, abstração centrífuga, concreção centrípeta, signo, símbolo: linguagem. É neste livro, Alba, que acredito que Orides Fontela encontrou seu ângulo de equilíbrio. O livro é um ponto luminoso na década de 80 (assim como Asmas, de Ronaldo Brito, publicado em 1982). Poeta contemporânea, poeta do pós-guerra, Orides Fontela sabia escrever poesia com símbolos herdados de uma tradição milenar, mas informados em um mundo que já tivera os escritos de Saussure, Wittgenstein, Jakobson. Orides Fontela sabia que o silêncio não provinha da falta de respostas, mas de nossa incapacidade e limitação no momento de fazer as perguntas através da linguagem, cujos limites são os limites do nosso mundo, nas palavras de Wittgenstein.
Esfinge
Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.
É tentador mitificar a mulher que viveu como viveu e escreveu estes poemas, que mais parecem cubos de energia concentrada, esperando para explodir no olho do leitor. Seus poemas, à primeira vista tão simples, singelos, exigem a concentração e atenção daquele que pode sussurrar, como no poema-exórdio do livro Alba:
A um passo
do pássaro
res
piro.
Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em 1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim, o século XX da poesia brasileira. ---
Ricardo Domeneck






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