Sebastião Alba (1940 - 2000)
Não me lembro bem de que maneira descobri a poesia tão delicada e bonita de Sebastião Alba (1940 - 2000). Creio que a primeira descoberta foi buscando vídeos de poesia lusófona na Rede, quando caí em um filme intitulado
Um poeta não se pega, pequeno documentário-entrevista com o poeta português naturalizado moçambicano. O filme mostra este homem, beirando os 60 anos, poeta andarilho que vive nas ruas de Braga, dormindo em um barraco improvisado, entrevistado por quem soa claramente como um brasileiro.
Tenho, confesso, sentimentos muito conflituosos em relação ao filme. Sou grato que alguém tenha guardado algo do poeta e que eu tenha chegado a sua obra pelo vídeo. Tenho certeza que o diretor tinha respeito e carinho pelo homem e pelo poeta, mas eu sempre tenho a sensação de uma
exposição da fragilidade alheia, além de um certo tom de voz no entrevistador que me parece infantilizado, talvez um pouco condescendente, não sei. Há ainda o perigo romântico de
glamourizarmos a situação precária em que vivia este homem que vim a descobrir ser um dos poetas líricos mais sensíveis, delicados e competentes da língua portuguesa no pós-guerra. Pois, após ver o vídeo por alguns minutos, o que me importou foi descobrir sua poesia, e pesquisando-a na Rede, passei a encontrar textos como este:
Ninguém meu amorSebastião Alba
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
É texto de poeta de verdade. Não é fácil esta simplicidade. Esta leve tensão sintática em alguns dos poemas na seleção abaixo. Sebastião Alba tornou-se um dos meus poetas favoritos. É uma pena que não edições de seu trabalho no Brasil. Poeta sensível, emocionado e que emociona, como já não se faz muito no Brasil desde que virou chique ser antilírico.
Reproduzo abaixo a nota biográfica e seleção de poemas de Sebastião Alba que preparei ontem para a
Modo de Usar & Co.Nota biográfica e seleção de poemas de Sebastião Alba
Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 24 de maio de 2011
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Sebastião Alba nasceu em Braga, Portugal, a 11 de março de 1940. Seu nome de batismo era Dinis Albano Carneiro Gonçalves. Em 1950, a família do poeta emigrou para Moçambique, onde ele passaria a viver até 1984, tornando-se cidadão moçambicano. No seu novo país, trabalhou como jornalista. Estreou em livro com
Poesias (1965), ao qual se seguiram
O Ritmo do Presságio (a primeira edição, moçambicana, em 1974 e a portuguesa em 1981) e ainda
A Noite Dividida (1982).
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A editora portuguesa Assírio & Alvum reuniria em um único volume seus livros
O Ritmo do Presságio,
A Noite Dividida e
O Limite Diáfano em 1996, reunidos uma vez mais no ano 2000, incluindo inéditos, com o título
Uma Pedra Ao Lado Da Evidência. A essa altura, o poeta vivia nas ruas de sua cidade natal. No dia 14 de outubro de 2000, com 60 anos, morreu atropelado. Havia escrito recentemente um bilhete:
"Se um dia encontrarem morto o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar:
dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".
Poeta lírico de extrema delicadeza, tentamos contribuir aqui com a divulgação de sua poesia tão bonita.
POEMAS DE SEBASTIÃO ALBAA palhotaEspanta não ver nada
que se coma e caçarolas
As aranhas debandaram
não há moscas
até o humor secou
nas espinhas largadas
Vive-se como?
Donde a modeladora energia
que põe a carne?
Ladino um rato
como na infância o quereríamos
rói os bambus a viga
as horas urdem
e um opaco cisco indizível
aduz as proporções laqueia
a quietação à roda.
§
Ninguém meu amorNinguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
§
Último poema(ao Jorge Viegas)
Nestes lugares desguarnecidos
e ao alto limpos no ar
como as bocas dos túmulos
de que nos serve já polir mais símbolos?
De que nos serve já aos telhados
canelar as águas de gritos
e com eles varrer o céu
(ou com os feixes de luar que devolvemos)?
É ou não o último voo
bíblico da pomba?
Que sem horizonte a esperamos
em nossa arca onde há milénios se acumulam
os ramos podres da esperança.
§
ÍcaroDa Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.
§
Não sou anterior à escolhaNão sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.
§
No meu paísNo meu país
dardejado do sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
o equilíbrio jacente
faz florir as acácias;
a terra incha;
na derme da possível
geografia,
um frémito cinde
as estações do ano.
§
A um filho mortoOntem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre
E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida
Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures
Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra
É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.
§
Como os outrosComo os outros discipulo da noite
frente ao seu quadro negro que é
exterior à música dispo o reflexo
sou um e baço
dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si
As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com suas grutas sinfónicas
no mar.
§
Como se o marQuero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos... etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.
§
O limite diáfanoMovo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.
§
Há poetas com musaHá poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.
§
Gosto dos amigosGosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.
§
Sem títuloPara isto de dar
um bambo passo entre as estrelas
não se vai com a grande ocasião reclinada
na cabeça a ouvir Puccini
Breve empanadas as estrelas
não mais se acenderão e apagarão
O rumo estará raso
O silêncio a nada obrigará
De pouco serve a ida ao lugar de ausência
que o teu sono já não é extensível
Aboliu-se uma posição relativa na noite
Não circulando em ti com a sua mistura
o ar atravessará o esqueleto
E tudo será sem data e sem prenúncio
E não acrescentarei ao poema ainda um verso relvado Que buxo!
Ele não seria a medida ou a balança Seu inconcreto molde
restaria quebrado entre outros cacos
(Se bem que da infância suba até mim o coro admonitório dos anjos.)
§
As mãosComponho com as linhas dos meus dedos outros puros
cujas pontas façam girar nenhum raio sucessivo
de sol Dedos sem o cadastro de enlaces doendo
e se declamo ficções que eles escorem
Sem par noutras mãos Nem fundos na algibeira
mexidamente obscenos e a salvo da garra dos gatilhos
Dedos com um horizonte de pálpebra baixando
que assim não acordem as formas tacteadas
donde um sono mane estrie os espaços vedados
Dedos de que mesmo a chuva escorra sem uma lágrima
Ou os que já compus e assinam adiam o poema.
§
EpílogoFui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.
O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.
Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.
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