Além do trabalho poético formal de Hans Arp e Tristan Tzara (quase nada há nos surrealistas que já não estivesse nestes poetas, ou em franceses independentes como Guillaume Apollinaire e Pierre Albert-Birot) e dos trabalhos visuais em colagem e montagem de Kurt Schwitters, Hannah Höch e Raoul Hausmann, há um outro trabalho importantíssimo dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire, em minha leitura, e ainda mais ignorado, com que aprendo muitíssimo e do qual retiro implicações frutíferas para meu trabalho. Que obra importante é essa, tão ignorada, dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire?
O próprio Cabaret Voltaire.
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Em Berlim, onde todas as vanguardas parecem se politizar fortemente, o dadaísmo assumiu seu caráter mais combativo em termos de intervenção política. Só a Internacional Situacionista, quatro décadas mais tarde, viria a unir a estética e a política com tamanha agressividade. Não preciso dizer que os dadaístas do entre-guerras e os situacionistas do pós-guerra estão no centro de meu pensamento crítico.
A crítica contemporânea segue dividindo os trabalhos dos artistas mais plurais do século passado em gêneros e categorias que já não faziam mais sentido mesmo no século XIX. Estuda-se a música de John Cage, mas não seus textos. Admiramos o trabalho visual de Jean Arp, mas não seus poemas, publicados como Hans Arp. A expressão "multimídia", em minha opinião, apenas desmascara a inadequação do discurso crítico do pós-guerra. É claro que há artistas excepcionais trabalhando dentro de gêneros específicos. Há poetas-escritores publicando ótimos livros e interessados de maneira legítima na pesquisa literária tão-somente, como há cineastas fazendo filmes excelentes e músicos interessados em música. Como, no entanto, analisar o trabalho dos que dançam entre gêneros e contextos?
Pessoalmente, a discussão me interessa por estar entre os que produzem nas fronteiras dos gêneros. Escrevo poemas para a página, escrevo poemas para a voz, poemas para a tela. Existe, no entanto, um aspecto do meu trabalho que é tão ligado ao contexto específico da comunidade em que vivo (retornando à discussão do Cabaret Voltaire), que apenas os berlinenses podem conhecer. Em muitos casos, trata-se do aspecto mais forte que muitos conhecem, em Berlim, do meu trabalho: além do meu trabalho como DJ, o de curador, há cinco anos e com o coletivo de que faço parte, de uma série de intervenções às quartas-feiras, no clube Neue Berliner Initiative, NBI. Fundamentado pelo trabalho precursor e exemplar do Cabaret Voltaire, temos nele nos espelhado para aterrar a trincheira entre criação e curadoria, por exemplo. Por alguns anos, organizamos o evento conhecido como "Berlin Hilton", um comentário irônico sobre o culto de celebridades de que Paris Hilton é exemplo. Este mês, relançamos o evento como "SHADE inc", nome tirado do documentário Paris Is Burning (1990), de Jennie Livingston. Escreverei especificamente sobre isso em breve.
Isso requer o retorno a uma noção do poeta inserido em sua comunidade. Aqui, a noção de coterie torna-se uma das ambições mais honestas do poeta. Veleidades de "Literatura Universal" são quase risíveis nesta perspectiva. O poeta talvez (note o talvez, meu querido) devesse querer atingir, ao máximo, em primeiro lugar a última fila dos expectadores presentes, aquele rapaz ou moça lá no fundo da sala, antes de querer ser lido por um ausente e hipotético estranho na Sibéria, Madagascar ou Poughkeepsie, em tradução.
Além disso, dentro de uma est-É-tica da presença, sigo acreditando que o melhor caminho para um desejo de resistência e intervenção política não é aquele proposto por Adorno, o da resistência pela negatividade, pela negação do exílio, como ele escreve no ensaio "Lírica e sociedade". Não estou condenando os que a escolhem. Apenas não creio em sua eficácia e decidi guiar-me por outros parâmetros. Talvez precisemos de ambos. De qualquer maneira, não creio que todos precisem trabalhar com essas questões. Não há obrigações. Tenho preferido a tática da guerrilha e da resistência interna, da sabotagem. Esse caminho é cheio de contradições, pois sei que é difícil separar, neste caso, o resistente do colaboracionista.
Mas um dos meus guias é o poema "Primavera nos dentes", do poeta português João Apolinário (1924 - 1988), poema que foi musicado por seu filho com a banda Secos e Molhados. Uma das minhas regras pessoais está em seus versos: "No centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste."
"Primavera nos dentes", poema de João Apolinário e música de João Ricardo, vocalizado por Ney Matogrosso, com a banda Secos e Molhados.
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2 comentários:
Me interesso muito pelos dadaístas e concordo contigo em relação a poesia de Tzara. Sobre primavera nos dentes, letra e música geniais. Abraços.
Rafael,
aquele primeiro disco dos Secos e Molhados tem textos ótimos. Aquele "suave coisa nenhuma!" da canção "Amor" sempre me pega. "Primavera nos dentes" é excelente também.
abraço
Domeneck
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