"Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou."
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou."
São versos do poema "Autotomia", da polonesa Wislawa Szymborska. Não se trata de um de seus mais famosos, algo que nunca entendi. Tenho antologias de poemas dela em alemão e inglês que não trazem este poema específico. E, no entanto, eu já não sei se seria capaz de viver sem ele na memória. Nada que as beatas da materialidade possam entender, já que não compreendem como hedonismo e ascese se confundem em nossa miséria extrema.
Autotomia
Wislawa Szymborska
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(tradução coletiva, publicada na revista Inimigo Rumor número 10)
§
Soube através de Carlito Azevedo que a Companhia das Letras está lançando a primeira antologia de Wislawa Szymborska no Brasil, uma notícia que é simplesmente radiante.
Em novembro de 2008, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem sobre a poeta polonesa, ganhadora do Nobel em 1996 (quando a descobri), para a Modo de Usar & Co., da qual vocês podem ler o artigo introdutório abaixo.
WISLAWA SZYMBORSKA
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Seu primeiro livro é proibido pela censura do regime comunista por não estar de acordo com os regulamentos da literatura socialista. Tenta conformar-se às regras para conseguir publicar, rejeitando mais tarde, a partir da década de 50, a ideologia político-estética socialista. Nega seus dois primeiros livros e “reinicia” sua obra com o volume Wołanie do Yeti (Chamando Yeti), de 1957. Em 1962, chama a atenção da comunidade poética polonesa com o pequeno volume Sól (Sal). Desde então, seu trabalho espraia-se por pouco mais de 10 volumes de poemas, o último tendo sido publicado em 2005, com o título Dwukropek, “Dois pontos”, como no sinal de pontuação (nota: desde então, a poeta publicou em 2009 o volume Tutaj, "Aqui"). Wislawa Szymborska era uma discreta poeta polonesa até tornar-se mundialmente conhecida em 1996, ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura.
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Para contextualizarmos o trabalho de Wislawa Szymborska em seu momento histórico-poético, teríamos que compreender que este surge em um período confuso e de classificação ainda polêmica quando, no pós-guerra, muitos poetas modernistas ainda estavam vivos e produzindo suas maiores obras, e uma nova geração começava a formar-se, alguns buscando ser ainda "altos modernistas", outros seguindo tendências menos conhecidas dos movimentos de vanguarda e retaguarda do início do século XX. Wislawa Szymborska é contemporânea de poetas como João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Frank O´Hara, Robert Creeley e Ingeborg Bachmann, que retomam o trabalho literário dos primeiros modernistas. Ao mesmo tempo, é contemporânea de poetas experimentais como Henri Chopin e Bob Cobbing, mostrando a pluralidade poética do pós-guerra como algo muito mais complexo do que nossa tentativa de abarcá-la sob a sombrinha do conceito de "pós-modernismo".
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Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 3 de novembro de 2008
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Um comentário:
Fantástico o artigo e o poema.
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