
Retorno hoje à pequena série de postagens com poemas dos autores convidados para o Festival de Poesia de Berlim. Ao falar sobre os outros poetas até o momento (Horácio Costa, Jussara Salazar e Ricardo Aleixo), tinha muito claro em mente qual poema enfatizar. Selecionar um poema de Marcos Siscar foi um pouco diferente, quis chamar a atenção para um livro recente seu, com o título excelente de Interior Via Satélite (São Paulo: Ateliê Editorial, 2010), no qual algumas das proposições que discuto no artigo de 2008 (você pode lê-lo ao fim desta postagem) parecem ter assumido um tratamento novo e mais potente, renovando seu trabalho de indeterminação e borrar de dicotomias como "interno/externo" ou "subjetividade/objetividade" com uma sensibilidade bastante peculiar no cenário poético contemporâneo do Brasil. Ao fim da postagem, reproduzo outros poemas de Siscar, publicados na década de 90, em que este trabalho por aquilo que venho chamando de "lírica analítica" já se apresentava com beleza, levada a novas consequências em seu último livro. A propósito, o parceiro germânico de Marcos Siscar na Oficina de Tradução será o poeta alemão Jan Wagner (Hamburgo, 1971), autor das coletâneas Probebohrung im Himmel (2001), Guerickes Sperling (2004), Achtzehn Pasteten (2007) e Australien (2010), e traduziu livros e antologias dos poetas anglófonos James Tate, Charles Simic e Matthew Sweeney. Jan Wagner e Marcos Siscar trabalharão em traduções mútuas durante o Festival de Poesia de Berlim. Agora, ao poema de Siscar:
Ficção início
Marcos Siscar
Começar de dentro, do interior, de onde as coisas começam. Onde terminam sua elipse vertiginosa. O interior é o fim da partida, é o começo da volta. Sair como quem volta, voltar como quem sai. A ficção viagem.
Estar perto da própria coisa não está longe do extravio. Veja as mãos do adolescente, suando frio, sem saber virar as páginas de um livro.
O interior é o lugar do extravio, lugar não se fica. Que lugar é um lugar onde não se fica? É o limite, o limite é interior.
Do interior, se vai. Como de pequenas cidades, you know you have to leave. Não se fica, no interior se chega, do interior se vai, aonde se chega, no interior não se fica. Areia, cabra, pedra, e grito, mas não se fica.
O interior se trai. Só realiza, quando se trai. O exterior das coisas é quando o interior se trai. Por isso, não há exterior puro, poesia pura, aquilo que não se trai.
Não há silêncio que não se traia.
No interior, as coisas ressoam ocas. Nada para se ver. Aqui só se ouve a coisa oca soar. Um barco enferrujado soa, devolvido pelo rio, debaixo da amoreira.
A ficção origem. A ficção precisa ser cultivada, memória aparada, mentira amparada, piedosamente. Velha história, morno ludíbrio da literatura. Interior é a ficção, a terra.
O interior é bem real, é a terra, um chão onde cair. Ter onde cair, morto, é motivo de partir.
Interior. Se for pra partir, quero que seja para não deixá-lo. Interior é onde tudo começa, como forma de não se deixar cair. Quem nunca caiu de uma árvore, precisa de segurança? Quem já se jogou de uma árvore, conhece a dor da queda?
Meu silêncio me trai. Apago os parênteses. O interior é síncope.
Você não reclama, não pede, não aceita, não fica, não arreda o pé. O interior se fecha, se oferece. Carrapicho, áspera misericórdia.
(publicado no número de estreia da Modo de Usar & Co., com o título "Interior Via Satélite")
§
Artigo meu sobre o trabalho de Marcos Siscar, especial para a Modo de Usar & Co., de 9 de julho de 2008



Marcos Siscar entrega-nos a partir de então sua “lírica analítica”, com grande liberdade em relação aos axiomas das seitas poéticas cabralizantes, digamos, da década de 90 e mesmo de hoje. Ao escrever sobre esta lírica analítica de Marcos Siscar como precursora imediata de algumas das pesquisas poéticas mais interessantes do novo milênio no Brasil, escrevi em um outro ensaio que “se lidos com atenção, muitos destes textos trazem implicações mesmo à discussão da prosa contemporânea, com suas intervenções a partir da exposição de uma realidade editável, em que os cortes abruptos não funcionam como mera entrega a uma poética de elipses ou para qualquer efeito de hermetismo, mas em ação de uma poesia consciente de si como construção, desnudando o risco de mera transparência da linguagem e expondo-a como veículo de representação, requerendo sua leitura como processo epistemológico para ser devidamente compreendida em suas implicações.”
§
POEMAS DE MARCOS SISCAR
Tome seu café e saia
a quem interessa o fracasso
do outro por que nos interessa
o fracasso ou a dor de viver
é mais forte que o abraço
(por que na despedida o beijo
só então inadiável por que
as mãos nos cabelos apenas
antes da morte os corpos se encontram)
eu lhe ofereço este cansaço
talvez você se interesse
talvez você morra de astúcia
tome seu café e saia
§
Sobre pão e frutos
a colher volteia o açúcar se eclipsa
sem razão novo e meticuloso repetir-se
doçura é pouca tão longe do amor por que
voltar à morna inflação de consciência
acolhendo cada dia com seu método
eu faço a prova do inútil copista do torno
e do retorno longe do amor sobrou-me isto
saber que tanto gesto e tanta língua
tanto escrúpulo cultivado estará perdido
no mesmo dia do descanso em outra língua
que no entanto me faz o gosto talvez
o amor volte discreto mas composto
com o pão e com os frutos pela porta dos fundos
§
Dor
não se diz rasgar rasgar um tecido como só as mãos
festa vital do barbarismo rasgar a tela de linho longamente encerada
abrir um sulco uma esteira um traço olhar por dentro dele
(você se demora na janela o vinco do seu decote
o hábito de dilacerar as folhas do caderno)
não se diz reter o vislumbre da carne pela camisa mutilada
pele retraída ao toque cerimônia do intelecto que se avalia
guardar a coisa pelo avesso posse da coisa ida
(o ato sem causa de uma chave colocada no contato)
§
Reversibilidade de beijos
vou viajar preciso de um beijo
você me diz de um jeito largo
refém da experiência sim já não
é pouco isso de querer dar sem
abrir a boca isso de querer cair
de boca seca no café pingado
sua carne branca seu estômago
fraco recitando sem pensar
uma ocasional filosofia isso de ter
sem querer de me deixar sem
pedir à beira de um zigoto mofo
à beira de um bonde de partir nós
somos irmãos ambos mudos me dê
vou viajar preciso de um beijo
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