Desde o início do século XX, Berlim tem sido porto para os navegantes em busca de certas possibilidades, certas liberdades e libertinagens. O período da República de Weimar (1919 - 1933), quando o povo que habita este território, hoje conhecido como Alemanha, gozou de algumas das maiores liberdades civis de sua história e também das graves consequências da Primeria Grande Guerra, apenas para ver tudo mergulhar no caos da ascensão nazista ao poder, viu a cidade abrigar alguns dos artistas mais interessantes dos primeiros modernismos. Berlim sediou o grupo mais politizado dentre os dadaístas germânicos, com Raoul Hausmann, Richard Huelsenbeck e Hannah Höch à frente.
Na verdade, cada um dos movimentos de vanguarda que surgiram em língua alemã ou residiram em Berlim acabaram tendo aqui sua forma mais combativa e politizada, seja o expressionismo (basta pensar nas telas de Otto Dix e George Grosz),
DADA (poemas de Hausmann, colagens de Höch), Fluxus (ou sua versão através do trabalho de Joseph Beuys), Pop Art ou o Punk, sem mencionar o “Kapitalistischen Realismus” (Realismo Capitalista) de Sigmar Polke, Gerhard Richter e Konrad Lueg. Os alemães são obcecados com suas versões da tal de realidade.
Esta obsessão realista pode ser claramente sentida na tradição fotográfica alemã, com August Sander, Bernd & Hilla Becher ou, nos dias de hoje, com Wolfgang Tillmans e Heinz Peter Knes.
A década de 20 viu ainda alemães como Walter Benjamin e Bertold Brecht caminhando pelas ruas da cidade, mas também atraiu muitos estrangeiros, como o poeta W.H. Auden ou o romancista Christopher Isherwood, em busca da famosa liberdade sexual e vida noturna berlinenses. Esta época encontra expressão famosa no romance Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, mais tarde filmado por Rainer Werner Fassbinder.
§
Sobre o pobre B.B.
1
Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras.
Minha mãe trouxe-me, no abrigo
de seu ventre, às cidades. E, enquanto eu viver,
o frio das florestas estará comigo.
2
Na cidade de asfalto estou em casa.
Recebi cada extrema-unção logo, a saber:
jornais, álcool, tabaco. Cheio
de suspeitas, preguiça e, afinal, de prazer.
3
Eu sou cordial com todos. Ponho
um chapéu-coco, pois isto é normal.
Eu digo: que animais de cheiro estranho.
E digo: tudo bem, eu sou igual.
4
Eis que em minhas cadeiras vagas, de manhã,
uma mulher ou outra se balança.
Olho-a sem pressa e digo-lhe: dispões
em mim de alguém que não merece confiança.
5
À noite eu me reúno com os homens.
Tratamo-nos de gentlemen. O bando,
com pés na minha mesa, diz que tudo
vai melhorar. E eu nem pergunto: quando?
6
À luz da aurora gris pinheiros mijam
e os pássaros, seus vermes, abrem o alarido.
É quando, na cidade, esvazio o meu copo,
jogo fora o charuto e me recolho aflito.
7
Nós, geração leviana, vivemos em casas
supostamente eternas. (Desse modo, além
de altos caixotes em Manhattan, construímos
junto do Atlântico as antenas que o entretêm.)
8
Restará das cidades quem as cruza: o vento.
A casa alegra o comensal que a dilapida.
Sabemos bem que somos provisórios.
Nem vou falar do que virá logo em seguida.
9
Manter, sem mágoa, nos futuros terremotos,
o meu Virgínia aceso — já me satisfaz.
Eu, Bertolt Brecht, que, das florestas às cidades,
vim no ventre materno, anos atrás.
(Bertolt Brecht em tradução de Nelson Ascher, publicada em Poesia Alheia)
§
Durante o período do muro, a parte ocidental de Berlim voltaria a ser porto para os que buscavam escapar do serviço militar alemão e, com a condição-de-ilha da parte ocidental, o pouco policiamento e aluguéis baratos, artistas alemães e estrangeiros voltaram a ocupar a cidade. Foi aqui, na década de 70, que David Bowie e Iggy Pop produziram algumas de suas grandes canções. Aqui, o Punk, a New Wave e o rock industrial encontraram sua combativa maneira alemã, com grupos como o Tödliche Doris (com Wolfgang Müller à frente), o Malaria! (de Gudrun Gut) ou o Einstürzende Neubauten (de Blixa Bargeld).
(Malaria! - "Geld/Money")
Com a morte de Bertolt Brecht, o teatro Berliner Ensemble (um de meus prédios favoritos em Berlim, gosto de ir escrever na praça diante do teatro, com o rio Spree às costas e a estátua de Brecht à frente) passa a ser comandado por Heiner Müller, uma grande referência literária para o meu trabalho, com seus textos inclassificáveis, como Der Auftrag (A Missão) (1979) e Die Hamletmaschine (1977). Ou aquele que é um de meus textos favoritos em língua alemã: o estupendo salve-salve poema/peça "Medeamaterial". No pós-guerra, criaturas como Rainer Werner Fassbinder, Joseph Beuys e Heiner Müller mantiveram Berlim e a Alemanha no mapa do mundo. Estes três estão entre minhas maiores referências est-É-ticas.
(trecho do filme "I was Hamlet", sobre Heiner Müller)
(Joseph Beuys)
(Rainer Werner Fassbinder)
A Alemanha e sua língua não têm uma presença tão aparente ou óbvia na cultura brasileira, a não ser no teatro, onde Bertolt Brecht ainda impera como incontornável. A relação dos alemães com Brecht é muitíssimo mais complicada.
Os brasileiros sempre se voltaram para os franceses. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos e outros primeiros modernistas gostavam de perambular por Paris, como a maioria dos primeiros modernistas de qualquer país ocidental, de César Vallejo a T.S. Eliot, passando por Vladimir Maiakóvski. Nos últimos tempos, de forma muitas vezes quase subserviente e pouco crítica, os poetas brasileiros voltaram-se para os estadunidenses. Nova Iorque é logo ali e a Barra da Tijuca fica em Miami.
Poeta brasileiro vivendo no estrangeiro é coisa corriqueira. Não inaugurei atividade qualquer. Além dos já mencionados brasil-parisienses, houve a longa morada de Murilo Mendes em Roma, João Cabral de Melo Neto em Sevilha e Barcelona, assim como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa muito perambularam, escrevendo vários trabalhos no exterior. Hoje em dia, há os casos de Zuca Sardan e a vagamundos Angélica Freitas.
Viver em outro país, mas principalmente em outra língua, traz características novas para o trabalho de um artista da linguagem. Por exemplo, uma visão saudavelmente "artificialista" para a "língua materna", salvando-o da falácia do natural. O exílio não é uma condição a ser lamentada ou celebrada, mas usufruída e aprendida. Jamais escrevi ou escreveria uma nova "Canção do exílio", mas com meu pendor por gender trouble, escrevi minha "Cão são da ex-ilha".
§
Cão são da ex-ilha
o desgosto de cada
passo confirmar o mapa
e o diafragma contraído
entende o queixo
no joelho,
meio-dia e meia
o centro da certeza
que caminha do “quero“
ao “não-quero“,
palha, fênix, Joana
d’Arc, como perceber
que abismo e precipício
não
são sinônimos
exatos,
ou acordar no meio da
noite sem energia
elétrica
e sussurrar com a calma
do fim da força:
equivalendo
silêncio e escuridão,
real
apenas a escolha
da língua, entre-
tanto a
memória
das possibilidades
morre
para que o fato
entre inassistido
nas atas
do verídico;
saiu o sol,
deve estar tudo
bem; subiu a lua,
deve estar tudo
bem;
trocar de pele
continuamente
talvez
leve-me ao centro
e a ausência
me escame
como quem diz
“eu sinto
a falta”
(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)
§
Considero Berlim um ângulo privilegiado para contemplar o mundo e, em especial, o ocidente. São Paulo e Berlim são minhas cidades de escolha, as que impregnam meu trabalho. Não consigo me identificar com abstraçoes gigantescas como países, prefiro a concretude das cidades. Sou um poeta de São Paulo e de Berlim. Cada poeta é poeta de sua cidade. Manuel Bandeira foi poeta do Recife e do Rio de Janeiro. Oswald de Andrade foi poeta de São Paulo, como o é Augusto de Campos. João Cabral de Melo Neto com Recife e Sevilha. "A cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor", escreveu Carlos Drummond de Andrade, o itabirano carioca.
Com a queda do muro, Berlim voltou a reunir alguns dos artistas estrangeiros mais interessantes. Janine Rostron, a Planningtorock, mora aqui, assim como Olof Dreijer.
(Janine Rostron a.k.a. Planningtorock - "Changes")
Alguns dos poetas alemães contemporâneos mais interessantes vivem hoje em Berlim, como Monika Rinck e Daniel Falb ou Sabine Scho, que divide seu tempo entre Berlim e São Paulo.
Ler parágrafos biográficos sobre artistas visuais contemporâneos invariavelmente leva-nos a ler a frase "So-and-so lives and works in Berlin." Na nossa Berlin Hilton, o evento semanal que organizo por aqui, tiro proveito desta situação privilegiada, convidando alguns dos artistas sonoros que mais me interessam.
Esta semana, foi o caso do artista sonoro francês Jackson Fourgeaud, que se apresenta como Jackson and His Computer Band. Seu álbum de estréia, chamado Smash (2005) e lançado pelo selo Warp, foi um dos mais celebrados da década aqui na Zooropa. Gosto muitíssimo de seu trabalho e considero-me sortudo por compartilhar oxigênio e roçar ombros com ele aqui no Berlimbo.
§
(Jackson and His Computer Band - "Utopia")
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Berlin, Berlim
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Domeneck,
Entrei pro Fantástico Mundo do Blog.
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