sábado, 16 de maio de 2009

O jogo de equivalências

por Ricardo Domeneck


Dois focos principais têm guiado o debate, segundo minha perspectiva, ilustrados pelos dois últimos artigos que escrevi e publiquei neste espaço, a saber, a discussão sobre a historicidade do fazer poético e sobre a conjunção entre estética e ética, a partir do que chamo de uma poética de implicações.

Tentei deixar claro, em inúmeros artigos, que minha crença na necessidade de contextualizar historicamente o debate poético e a leitura formal não se alia à tendência do que se chama, no Brasil, de leitura sociológica da literatura. Não espero simplificar o debate crítico, mas torná-lo mais complexo, por crer que uma leitura
meramente formalista acaba por ser tão limitada quanto uma leitura meramente sociológica. Os exemplos que costumo mencionar, de críticos sensíveis ao contexto histórico, tanto do texto sobre o qual escrevem, como do próprio momento histórico em que produzem sua crítica, deveriam deixar isso mais uma vez claro, a
partir de nomes como Walter Benjamin (refiro o leitor à sua discussão sobre Baudelaire ou o surrealismo e a fotografia) e Hugh Kenner (em especial o apaixonado The Pound Era ou o brilhante The Mechanic Muse), assim como, em nossos dias, Marjorie Perloff, no importante Wittgenstein´s Ladder, recentemente traduzido e publicado no Brasil.

Como já escrevi, qualquer um, com a educação necessária, pode aprender a reconhecer figuras de linguagem, formas históricas a partir da mera recensão do número de versos e posicionamento de rimas de um poema, movimentos literários, ou o contar de sílabas e acentos. No entanto, após este trabalho técnico, espera-se do crítico, se ele quiser
realmente iluminar o trabalho em questão, que ele demonstre capacidade intelectual para o delicado ato de discernimento e, momento em que pode demonstrar menos memória do que inteligência, a leitura crítico-histórica daquilo que chamo de est-É-tica do poeta, na esteira da proposta de Wittgenstein, que sugeriu sua interligação em um trecho famoso do Tractatus Logico-Philosophicus. Tal discussão, volto a afirmar, não se refere à temática de um poema ou às circunstâncias meramente biográficas do poeta que o escreveu. As implicações est-É-ticas de um poema devem ser lidas a partir de seu trabalho formal e de suas escolhas literárias, uso de cada topus, construção sintática, etc. Neste aspecto, além do debate formal, acredito ser necessário hoje discutir material, função e contexto, ou seja: a escolha formal do poeta em seu manejo da materialidade da linguagem, a função que tal forma assume em seu trabalho e o contexto histórico em que este se insere.

Assim, repito que não defendo o abandono do trabalho poético-formal. No entanto, repito também que creio que a forma seja algo muito mais complexo que a contagem de sílabas, número de versos ou posicionamento de rimas de um poema, assim como vejo como contraditórias tanto a expressão "forma fixa" como a de "verso livre". A expressão "forma fixa" ignora, em minha opinião, que as formas históricas foram soluções apresentadas por poetas para problemas específicos, em contextos históricos específicos, desmascarando uma mentalidade poético-formal que toma a forma, nas palavras de Pound, menos como "center around which" ou "means through which", do que mera "box whithin which." Já a expressão "verso livre", como já foi exposto por críticos melhores no passado, acaba por demonstrar ingenuidade parecida, pois ignora o condicionamento estrutural da aprendizagem do poeta na tradição e o esquecimento dos aspectos menos óbvios da pesquisa formal de um poeta.

Como já foi dito, o debate existe há séculos, talvez milênios, e não será esta troca de argumentos entre poetas em 2009 que dará por encerrado o debate, que continuará por novas gerações, sendo renovado a partir de cada novo contexto, que escolhe seu passado e os campeões mortos de suas posições. O que se pode fazer é elaborar os argumentos,
aclarar e fundamentar assertivas, entender de que maneira o debate funciona em nosso momento histórico presente, no início do século XXI, e quais consequências tem para o trabalho poético das próximas décadas, até que novos poetas assumam a querela infindável.

Não tenho a intenção de catequisar ou convencer poetas que defendam posições históricas contrárias, muito menos a ambição de acreditar que meu trabalho crítico vá encerrar estas questões. Minha busca sempre foi a de propor questionamentos, à espera de um debate coletivo. No momento em que assumi certa veemência na defesa de minha crença na historicidade do fazer poético, foi por sentir que um conceito tão equivocado como trans-historicidade, em minha opinião, vinha fundamentando poéticas, a partir dos anos 90, com implicações est-É-ticas extremamente questionáveis. Balanço em pêndulo entre a calma e a irritação, também quando poetas recorrem à argumentação da liberdade artística para deslegitimar este debate. A liberdade de criação de todo poeta precisa ser assegurada, seu direito à sua própria pesquisa formal. É legítimo que se queira salvaguardar a autonomia do poético e sua liberdade; porém, isto se manifesta muitas vezes como desculpa para os que simplesmente querem praticar a Literatura como jogo bem-pensante, esquecendo-se que os maiores poetas do passado jamais se abstiveram dos debates históricos de seu tempo, seja Calímaco questionando a atualidade da épica homérica em Alexandria, no século IV a.C.; Catulo seguindo em seus passos e atacando a poesia classicizante e verbosa de seu tempo; Cavalcanti trazendo para sua poesia algumas das questões científicas de seu século (veja o brilhante ensaio de Pound sobre o "Donna me prega") ou mesmo o próprio Pound e Stein em "nosso" tempo.

Ora, quando se trata de uma análise apenas formal ou artística de uma obra poética, talvez tudo resida no campo inofensivo das discordâncias de gosto e preferência. No entanto, em seu artigo "Poética da fé, poética do cepticismo", Érico Nogueira invoca Immanuel Kant contra a fragilidade do juízo de gosto, e tem toda a razão neste caso. O debate, contudo, está justamente neste dilema: o juízo de gosto, em sua subjetividade, parece frágil e passageiro, extremamente condicionado pelo indivíduo e sua relação com a coletividade; ao mesmo tempo, o juízo de valor, em sua suposta objetividade, foi posto em questão, acusado de mítico; esta é justamente minha posição, nada confortável: concordo que o mero juízo de gosto tem pouquíssima validade, mas também vejo a impossibilidade do juízo de valor objetivo, baseado em alguma essência poética atemporal, sem levarmos em conta as constricões históricas e individuais de cada poeta. Como escrevi no ensaio "O que é est-É-tica", ainda que haja realmente esta essência poética a garantir qualidade, o que permitiria um juízo de valor objetivo, ela é condicionada historicamente, a partir de cada leitura feita a cada novo momento histórico. Só conhecemos as encarnações históricas desta essência, o que nos impede de estabelecer padrões imutáveis, que possam estabelecer a qualidade de todo poema, escrito em qualquer língua, país ou momento.

Talvez a saída resida em uma aceitação de que a dicotomia entre o juízo de gosto, portanto subjetivo, e o juízo de valor, objetivo, precisa encontrar-se também em um debate constantemente renovado e renovável, sem a ambição de legislação infalível. Pessoalmente, creio ser possível objetividade na análise do projeto de um poeta, em seu uso das formas históricas, apenas em uma avaliação de seu trabalho, talvez não formal, mas o que gostaria de chamar de estrutural, levando em consideração, como já disse, a materialidade da linguagem e a função que sua forma escolhida assume no contexto histórico em questão. Assim, a subjetividade inescapável do crítico seria exposta de forma honesta e clara. Penso aqui na proposta de Wittgenstein sobre o sujeito como inescapável, mesmo na filosofia, já que "o mundo é, invariavelmente, `meu´ mundo." Contextualizar impede apenas a criação de leis gerais de apreciação poética, exigindo que o crítico, assim como o poeta, crie soluções individuais diante de cada problema ou debate poético-crítico, um verdadeiro problema para os preguiçosos das poéticas genéricas.

Aqui entra a "ideologia da percepção" de cada um. Um poeta como Érico Nogueira, com o que ele mesmo chama de "pendor de antiquário", e um poeta como eu, com meu "pendor de modernoso", como ele diria, acabamos por assumir posições aparentemente opostas, pois
ainda que tenhamos, talvez, juízos de valor parecidos, eles são condicionados por nosso juízo de gosto. Eu acabaria apenas por teatralizar esta oposição, se tomasse agora, para ilustrar a discussão, exemplos dentre as obras de minha preferência, de poetas como Hans Arp ou Kurt Schwitters, ligados a DADA, de poetas-performers como Henri Chopin e John Cage, ou opusesse os meus modernistas de escolha (como Gertrude Stein e Murilo Mendes), aos seus, como Constantino Cavafy e T.S. Eliot. Já escrevi sobre o que penso da atualidade est-É-tica dos poetas ligados a DADA em vários artigos e, com várias ilustrações, especialmente no texto "DADA: implicações e inseminações", uma das primeiras postagens da franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.

Talvez seja mais esclarecedor se discutisse aqui, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, algumas das escolhas formais que, em minha opinião, ainda que sigam sendo usadas por poetas hoje em dia, pertencem na maior parte dos casos ao uso descontextualizado de soluções formais para problemas passados, de contextos mortos. Como já escrevi no ensaio "Ideologia da percepção": o desgaste das formas dá-se menos
pela hipertrofia do uso, do que pela atrofia do contexto em que surgiram.

Para que este texto não se alongue demais, e para seguir prontamente com a discussão, discutirei algumas escolhas específicas nas próximas postagens, iniciando o trabalho com a princesa das "formas fixas" no Brasil, o soneto, para tentar ilustrar a discussão.

§- Como discutir a validade est-É-tica e atualidade histórica dos sonetos?

Segundo minha perspectiva, a de que toda forma está ligada ao contexto histórico em que surgiu, espelhando de alguma forma a Weltanschauung de seu inventor ou praticante, em seu momento histórico, o mesmo poderia ser dito sobre o soneto, ainda que não possamos, sei bem, nos iludirmos com uma possível teleologia infalível em tais leituras. O que defendo, porém, é que o uso do soneto em nosso tempo precisa levar em consideração o momento
histórico em que vivemos, com o desenvolvimento poético da modernidade, sem insinuar aqui qualquer noção de evolução ou aperfeiçoamento.

É interessante como o soneto quase se transforma em sinônimo de "forma" no país. A sereia para os poetas brasileiros. Não se trata de uma solução formal particularmente
antiga. Ezra Pound, em seu ABC of Reading, propõe uma gênese cômica para ela, dizendo que provavelmente se tratara de um sujeito
que esgotara seu assunto a meio caminho de escrever uma canzone, como quem perde o fôlego antes da linha de chegada. De qualquer maneira, a forma teve praticantes ilustres, que propuseram aos leitores suas soluções para tal constrição formal, tomadas mais tarde como modelos de perfeição para os praticantes futuros. Aos que acreditam na suposta trans-historicidade do fazer poético, e crêem que cabe ao poeta, hoje, simplesmente escrever bons poemas, cuja qualidade será assegurada se puder equiparar-se aos mestres eleitos do passado, basta discutir "formalmente" cada soneto, tenha sido escrito em 1609 ou 2009, seguindo certos parâmetros fixos.

(Veja, por exemplo, a discussão de Antonio Cicero nos últimos tempos, para quem as vanguardas históricas não parecem ter passado de uma espécie de "afrodisíaco" para a tradição.)

Que parâmetros formais fixos são esses? Sua estrutura sonora e uso da rima, se segue Shakespeare em seu ABABCDCDEFEFGG, se trabalha com o hendecassílabo ou o alexandrino, se usa rimas surpreendentes e se há uma justeza de linguagem, evitando palavras desnecessárias, dizendo também algo interessante: ou seja, nosso velho amigo, o manejo
magistral da materialidade da linguagem, conformando-a às constrições do soneto como forma. Uma leitura formal, digamos, não se importando se estas escolhas têm quaisquer implicações est-É-ticas para o momento atual ou sequer se o momento atual importa para a apreciação "objetiva" do soneto em questão. Como discutir esta questão, porém, de maneira est-E-ticamente crítica?

Ora, muitos sabem contar de 1 a 14 e, com certa educação, aprendem a dominar ritmos e metros como o hendecassílabo ou o alexandrino, como notamos pela imensa lista de sonneteers do mundo ocidental, até os dias de hoje. Numa discussão formalista, importa simplesmente a eficiência e a graça (não me refiro ao humor, querido leitor) com que o poeta emprega a forma em todas as suas
constrições. O que me interessa, no entanto, é que após tal discussão formal seja feita, seja permitido discutir a função que a forma assume no trabalho do poeta e de que maneira esta se insere em seu contexto histórico. Não creio que seja necessário dizer que o soneto assume funções distintas quando empregado por Bruno Tolentino, Glauco Mattoso, Paulo Henriques Britto ou Érico Nogueira, para citar quatro exemplos de poetas que usaram a forma na última década. Vejamos quatro de seus textos:

(10 de outubro)
soneto de Paulo Henriques Britto

Até segunda ordem estão suspensas
todas as autorizações de férias,
viagens, tratamentos e licenças.
É hora de pensar em coisas sérias.

Deve chegar mais um carregamento
até o dia quinze, dezesseis
no máximo. Fui lá em Sacramento,
mas não deu pra encontrar com o tal inglês —

será que alguém errou o codinome?
Confere aí com quem organizou
o negócio todo. Bem, amanhã

a gente se fala, que agora a fome
está apertando. (Ah, o padre adorou
o canivete suíço de Taiwan.)

§

Para um tema que queima a língua
soneto de Glauco Mattoso

A cena culminante de "Laranja
mecânica", aos meus olhos, extrapola:
a língua se dobrando contra a sola
que a pisa, e que sadismo franco esbanja.

Nem que a tímida mídia se constranja,
as bandas fatalmente nessa bola
bastante vão chutar: ninguém controla
os ímpetos dum boy que a cena manja.

No entanto, as que pisaram no terreno
(Adicts ou Major Accident é pouco)
não foram fundo e fazem peso ameno.

Espero, ardentemente, que um mais louco
rockeiro, de pezão nada pequeno,
esmague com a bota um berro rouco.

§

Não quero já de novo ser banal
soneto de Érico Nogueira

Não quero já de novo ser banal:
"Ó sol etcétera", "ó mar", "ó céu".
O que pondero, o que lamento - é meu,
diz só respeito à praga do meu mal.
"Ainda assim vou ler esse animal?"
- perguntará, talvez, quem nada leu
além de blefe em quantos como eu
simulam diferir, simulam mal.
Os homens entre si mudam bem pouco;
gostam de azul ou gostam de vermelho,
ou têm o crânio cheio ou têm-no oco;
por isso mesmo, vá se olhar no espelho,
estando céu e mar e sol à parte,
quem pensa fazer sua, assim, a arte.

§

Lento, movendo na luz branca a majestade
soneto de Bruno Tolentino

Lento, movendo na luz branca a majestade,
a elegância do vulto, o cervo da Lapônia
cruza o fim do verão polar como a lacônica
exclamação crepuscular da eternidade.
Já não cabe mover-se com a mesma agilidade,
desapetece-lhe correr na luz agônica
que empalidece tão depressa e desmorona-
se-lhe entre a coroa agreste e o pinheiral. É tarde;
a lua vai morrer e nascer tantas vezes
da imensa solidão tentacular agora,
e o cervo imobiliza-se para a grande demora
na treva elementar, a habitação dos deuses;
e, lento, à contraluz, é uma estátua de cinza
excruciante: a última pétala agoniza.

§



As mesmas características, que atrairão um leitor aos sonetos de Britto e Mattoso, serão os motivos de repulsa, talvez, aos que preferem os de Tolentino e Nogueira. Não quero, com isso, criar dois pares de semelhanças. Os quatro poetas têm projetos que os ligam, mas são muito distintos entre si.

Em uma leitura formal, a irregularidade métrica do soneto de Paulo Henriques Britto incomodará e poderá ser usada contra ele, assim como seu uso de uma linguagem extremamente quotidiana para uma forma geralmente associada com o sublime. Criticar Britto por seu uso de uma linguagem quotidiana seria simplesmente criticá-lo por fazer exatamente o que quis fazer e não por fracassar em seu projeto. É necessário compreender seu projeto para poder avaliá-lo. A estratégia é claramente consciente, assim como nos sonetos mais marcadamente pornográficos de Glauco Mattoso. Não farei uma discussão puramente formal dos quatro sonetos, pois não é esta a discussão que nos interessa aqui. Gostaria de propor uma discussão funcional e contextual dos quatro textos, para tentar ilustrar, sem a ambição de esgotar o assunto em uma postagem eletrônica, o que venho tentando esclarecer.

Poderíamos dizer, à primeira vista, que os sonetos de Britto e Mattoso são os que mais demonstram consciência contextual para a função da forma do soneto. Um texto como o de Paulo Henriques Britto acaba por teatralizar, para chamar-nos a atenção, a fronteira sempre discutível entre forma e conteúdo, ao assumir uma linguagem de memorando para uma forma tão associada com o poético-sublime quanto o soneto. No soneto de Henriques Britto, não importa o que está sendo dito, mas sua relação com sua forma: neste caso, a própria forma do soneto assume significado. Tal efeito é até mesmo tratado com ironia no último verso do primeiro quarteto: "É hora de pensar em coisas sérias." O soneto segue, mencionando a chegada de outro carregamento (outro carregamento de sonetos infindáveis pelos tempos afora?) e mencionando a sacralidade da forma
("Fui lá em Sacramento / mas não deu pra encontrar com o tal inglês"... o soneto inglês ou o próprio Shakespeare?). Em um soneto como "(10 de outubro)", podemos claramente falar em forma (a escolha de Paulo Henriques Britto do soneto e da linguagem específica para ele), função (o fato de que a própria escolha da forma do soneto assume significância) e o contexto da ação: a escrita torna-se indissociável da referencialidade histórica de sua forma. O soneto é, de certa maneira, metalinguístico, sem que mencione, em qualquer momento, a palavra "poesia" ou "poema".

O mesmo efeito de "moralidade" parece surgir nos sonetos de Glauco Mattoso, especialmente nos sonetos "pornográficos". A estratégia poderia parecer-nos justamente a de inviabilizar com ironia a forma do soneto para o uso contemporâneo, mas o retorno constante dos dois poetas à forma não parece indicar tal intenção. Poderíamos ligar o trabalho de Glauco Mattoso ao de Augusto dos Anjos, de certa maneira, que encenou
a decomposição do formalismo parnasiano em sua linguagem escolhida para a forma do soneto. No caso deste soneto de Mattoso, a escolha da linguagem assume uma característica muito mais híbrida que a de Paulo Henriques Britto. A sintaxe é bem cuidada, ainda que use inversões antiquadas como "as bandas fatalmente nessa bola /
bastante vão chutar", usando também gírias como "roqueiro" e fazendo referência não à Alta Literatura, mas ao cinema, em um filme pop como Clockwork Orange, o filme de Stanley Kubrick baseado no romance de Anthony Burgess.

Quanto à estratégia de Paulo Henriques Britto, encontramo-la, antes dele, nos sonetos de Bertolt Brecht, pouco conhecidos no Brasil. Sempre me pergunto sobre esta tentativa de balanço entre o tosco e o sublime no trabalho de Paulo Henriques Britto, especialmente pela maneira como sua linguagem retorna ao "poético" e "sublime" líricos quando ele abandona a forma do soneto. O jogo de Britto passa a funcionar, portanto, no âmbito do literário, como uma poesia que referencia seus dilemas históricos. Uma discussão apenas formal de seus sonetos perderia de vista o jogo literário da referencialidade histórica das formas. O que me parece mais interessante seria discutir a validade deste jogo literário, e de que maneira ele pode interessar ao leitor que não pratica a poesia. O mesmo poderia ser dito do uso recorrente de Glauco Mattoso da forma. No caso dos sonetos de Mattoso, sem discutirmos o condicionamento biográfico do poeta, sua cegueira e portanto necessidade intrínseca de retornar a uma forma baseada claramente no ritmo e forma sonora, muito do interesse reside no choque da temática, encenando, como no caso de Paulo Henriques Britto, de certa maneira, a mesma invisível trincheira entre forma e conteúdo. No entanto, como Tolentino,
Mattoso pratica uma poética de excessos, pondo em xeque a noção creeleyca de que "form is never more than the extension of content", sem crer que cada poema exigirá uma solução formal específica, pois são dois autores que escreveram centenas e centenas de sonetos.

Entre estes dois autores e Bruno Tolentino, o soneto de Érico Nogueira parece mostrar o autor mais preocupado em encontrar uma maneira de usar a forma do soneto com consciência histórica, mas ainda assim levando-a "a sério", digamos, sem fazer dela pura referencialidade formal. Nogueira está claramente entregue à faina de produzir um texto que siga as constrições formais estabelecidas por poetas do passado, mas
demonstra consciência histórica ao fazer deste dilema, em grande parte, a sua temática. Nogueira sabe ser um poeta de parâmetros clássicos em um mundo que os pôs em xeque, e seu livro de estréia parece equilibrar-se entre o sarcasmo diante deste mundo e a self-deprecation por insistir em seus parâmetros de qualidade. Érico Nogueira é como um Hugh Selwin Mauberley não-arrependido. Em um mundo apaixonado pelo banal, e que parece dar-lhe verdadeira angústia (como sentimos em Tolentino, que a sublima constantemente crendo
fugir da História nas asas de uma poesia supostamente atemporal), Nogueira sabe que muitas das próprias formas poéticas tornaram-se banais, e quer recusar a atitude romântica que guiou, ele parece insinuar, muito da poesia modernista: "Não quero já de novo ser banal: / `Ó sol etcétera´, `ó mar´, `ó céu´." No entanto, não fica exatamente claro a quem Nogueira dirige sua irrisão: se ao mundo que se recusa a levar sua diligência poética a sério, ou a si mesmo, por insistir nela. A fé de Érico Nogueira e sua insistência em parâmetros de qualidade que poderíamos chamar de neoclássicos, vêm expressas nos últimos versos do soneto que se segue ao que aqui apresentamos, em seu trabalho de estréia, intitulado O Livro de Scardanelli (2008): "A boca antiga, então, se mostra hábil / para falar do que corrói o lábio."


Tolentino é o menos consciente do contexto histórico em que insere seus sonetos como práxis. A ideologia de Tolentino implica, claramente, uma noção de essência atemporal para a poesia, na maneira como o poeta evita qualquer indicador histórico em sua tessitura textual, criando um trabalho imagético sem grandes marcações temporais, uma linguagem que se quer pura e incontaminada de qualquer quotidianidade ou
historicidade. Se Tolentino for realmente um mestre da forma do soneto, como quer Érico Nogueira, que escreve, sobre o soneto reproduzido acima, que o "alexandrino de Bruno é sui generis: ele funde o clássico metro francês com uma dicção mais próxima da língua inglesa e as cesuras do dodecassílabo castelhano. Assim que pude perceber e compreender tamanha engenhosidade rítmica, vi-me às voltas com a própria substância da poiesis", esta será uma discussão bem menos objetiva do que quer meu caríssimo colega nascido em Bragança Paulista. Assim, estaríamos diante de uma suposta "substância da poiesis", que se manifesta em Tolentino, neste soneto em particular, na crença em uma linguagem pura, sem condicionamentos históricos, trazendo-nos o velho e hackeneyed tema da passagem do tempo, o "nothing golden stays", com a invectiva um tanto entediada de uma
nova certidão de óbito do civilizado, uma waste land de mais um início de século, criando um trabalho que, para meu gosto pessoal, mais parece a aquarela de um pintor domingueiro, kitsch onde o poeta sonha-se o sublime, com Tolentino aparentemente identificando-se com o pobre veado a passear no crepúsculo. Tolentino diz coisas já ditas tantas vezes, de forma tantas vezes já feita. Ora, mesmo isso
requer talento, de certa forma, e não me incomodo tanto com os que vêem algo de importante em um trabalho como esse. Se Tolentino atinge alguma maestria formal, é apenas em um caráter extremamente tecnicista, numa discussão que toma a forma como ferramenta. Sim, ele sabe colocar as rimas no lugar certo, usando belas palavras com os acentos nos lugares adequados e cria realmente uma tessitura sonora quase interessante, não tanto nas rimas entediantes, mas na sonoridade
interna do texto, em momentos raros como "Lapônia/polar" ou "desapetece/empalidece/depressa". Talvez este seja um juízo de gosto, que Nogueira atacaria usando Kant, já que a ele o soneto parece tão importante, estabelecendo-o como parâmetro para o seu próprio trabalho poético, trabalho que é tão mais interessante que o de Tolentino.

Bruno Tolentino é claramente, em minha opinião, um poeta que confunde o poético com o dizer belo, que passa a receber o suporte, ainda, de formas históricas tidas como sublimes, sem qualquer influência ou implicação histórica. A própria escolha do vocabulário de Tolentino denuncia tal atitude, baseando-se marcadamente em
substantivos como "majestade/eternidade", estas rimas praticamente burlescas. As implicações est-É-ticas da prática de Tolentino são várias, e serão vistas de forma diferente por cada poeta e crítico, dependendo dos condicionamentos de sua ideologia da percepção. Não mencionarei, por exemplo, a associação de Tolentino entre o poético e o aristocrático, da qual parece compatilhar Érico Nogueira, pois discuti-la exigiria uma trincheira mais propriamente política, o que gostaria de evitar aqui, para não colaborar com os que estão se empenhando em NAO entender este artigo. Deixo apenas anotada a minha discordância veemente desta posição de Tolentino e Nogueira, sem que isso implique minha defesa do popularesco ou do fácil.

Aquilo de que mais discordo em Tolentino é a maneira como creio que sua poesia pode ilustrar, como exemplo, o uso completamente descontextualizado das formas
históricas, sua visão da tradição como uma caixa de ferramentas, da qual pode retirar qualquer forma, a qualquer momento, sua crença óbvia na linguagem poética como pura e separada de qualquer outro uso da linguagem, tudo isso usado em uma poesia que raramente diz qualquer coisa realmente nova, que já não tenhamos ouvido outras centenas de vezes em outros textos, talvez por sua crença de que o poético envolva
dizer "coisas belas e profundas". Obviamente, minhas idéias de "materialidade da linguagem" e as de Bruno Tolentino não coincidem, e sei que Érico Nogueira
discordará com veemência, a quem os sonetos recentes de Bruno Tolentino apresentam novidade de apresentação e estrutura.

No entanto, afirmaria que os quatro autores praticam uma poesia que precisa ser compreendida como jogo literário e contextualizada em sua relação com a tradição. Isso poderia também ser usado como invectiva.

O único soneto, entre estes quatro aqui apresentados, que realmente falha em segurar minha atenção e interesse, é o de Bruno Tolentino. A pesquisa de Paulo Henriques Britto, Glauco Mattoso e Érico Nogueira parecem-me bastante interessantes, ainda que discorde da maneira como dependem de uma diálogo tão marcado com a referencialidade da "tradição", fazendo com que sejam pesquisas fortemente "literárias".

A mim o soneto interessa, em seu momento histórico de validade, antes da modernidade, não apenas pelos exemplos de maestria formal que acumulou. Interessa também discutir que forma de arcabouço cultural fundamentou sua prática. Eu diria,
em minha idéia de contextualização histórica para esta forma específica, que sua forma fundamentava-se em uma época que cria na simetria entre os elementos do Cosmos, para homens e mulheres sobre os quais a Máquina do Mundo ainda pairava sobre os crânios, crença espelhada, no caso da forma do soneto, em seus quatorze versos simétricos (o sete como número da perfeição, ainda que isto vá soar como numerologia a alguns)
e uma crença historicista na teleologia da salvação cristã, a parúsia, o encaminhar-se da História para um fim que estabeleceria o significado de todas as coisas, o encerramento dos séculos em uma chave de ouro, a diminuição do tempo em seu futuro encerrar-se, encarnando-se na forma simétrica e decrescente do soneto. Neste aspecto, a rima não é apenas uma prática ou técnica para conferir beleza sonora a um texto, mas fundamenta-se na crença na ligação secreta entre todos os elementos do cosmos, encontrando na linguagem sinais, placas que indiquem ao homem o caminho a esta ligação cósmica. O soneto implica a fé na equivalência natural de todos os elementos. É este aspecto filosófico e est-É-tico que encontramos nas rimas de Dante Alighieri, William Blake ou Murilo Mendes.

Estas crenças entraram em colapso no mundo contemporâneo, dando preferência
ao aleatório contra o fechado. Processo contra o produto, pois forma, em nossos dias, passa a ser entendida como fluxo. A isto chamo um exemplo de est-É-tica, a esta compreensão da implicação histórica de uma prática e sua ligação com o tempo presente, sem a qual um poema encontra sempre e tão-somente ouvidos moucos. Não discordo do uso do soneto por já haver milhares deles, mas porque ele já não mais significa uma relação intrínseca entre texto e contexto.

Este artigo se estendeu demasiado para uma postagem eletrônica. Sigo com a discussão de outras formas e suas implicações em uma outra postagem. Encerro-o, porém, com o último disclaimer deste capítulo de disclaimers: não compreenderemos jamais um texto, se não o analisarmos em seu contexto, para então aprender com ele algo de útil e belo para o nosso.

4 comentários:

Érico Nogueira disse...

Caríssimo,

A análise que v. fez da minha poesia é certeira -- é o que de melhor tenho lido. A autoconsciência é difícil, é perigosa, é desafiante. Destaco o seguinte trecho:

"...o soneto de Érico Nogueira parece mostrar o autor mais preocupado em encontrar uma maneira de usar a forma do soneto com consciência histórica, mas ainda assim levando-a "a sério", digamos, sem fazer dela pura referencialidade formal. Nogueira está claramente entregue à faina de produzir um texto que siga as constrições formais estabelecidas por poetas do passado, mas
demonstra consciência histórica ao fazer deste dilema, em grande parte, a sua temática. Nogueira sabe ser um poeta de parâmetros clássicos em um mundo que os pôs em xeque, e seu livro de estréia parece equilibrar-se entre o sarcasmo diante deste mundo e a self-deprecation por insistir em seus parâmetros de qualidade. Érico Nogueira é como um Hugh Selwin Mauberley não-arrependido. Em um mundo apaixonado pelo banal, e que parece dar-lhe verdadeira angústia (como sentimos em Tolentino, que a sublima constantemente crendo
fugir da História nas asas de uma poesia supostamente atemporal), Nogueira sabe que muitas das próprias formas poéticas tornaram-se banais, e quer recusar a atitude romântica que guiou, ele parece insinuar, muito da poesia modernista: "Não quero já de novo ser banal: / `Ó sol etcétera´, `ó mar´, `ó céu´." No entanto, não fica exatamente claro a quem Nogueira dirige sua irrisão: se ao mundo que se recusa a levar sua diligência poética a sério, ou a si mesmo, por insistir nela. A fé de Érico Nogueira e sua insistência em parâmetros de qualidade que poderíamos chamar de neoclássicos, vêm expressas nos últimos versos do soneto que se segue ao que aqui apresentamos, em seu trabalho de estréia, intitulado O Livro de Scardanelli (2008): "A boca antiga, então, se mostra hábil / para falar do que corrói o lábio"."

V. me ajuda, c/ isso, a definir os meus próprios parâmetros. Grande abraço. E.

Dimitri BR disse...

breves tópicos para o caro rocirda:

1. como não sabia que você mantinha este blog?

1.1 como não estávamos linkados por este meio (ainda não estamos, mas estaremos em breve)?

2. o presente debate me interessa sobremaneira - tanto que nem me atrevo a começar um comentário breve a respeito aqui, posto que tal brevidade me seria impraticável.

2.1 digo por ora apenas que muito me agradaram suas considerações, erigidas com seus invulgares rigor e franqueza.

2.1.1 a respeito da leitura (meramente) formalista X leitura (meramente) sociológica, aproveito pra te recomendar (se é que você ainda não leu) ‘la littérature en peril’, uma coletânea de breves artigos do todorov que li recentemente e na qual ele traça uma breve genealogia da utopia formalista de uma imanência total da obra (no artigo ‘nascimento da estética moderna’ – sim, ele perpetrou um BREVE artigo com um tal título! :) e defende a tese de que a leitura meramente formal acarreta um isolamento da obra e seu contexto histórico, implicando num perigoso ‘esvaziamento’ da obra artística como agente constituinte do tempo em que é produzida.

3. em se falando de blogues e esforços criadores intimamente vinculados com seu tempo, você vem acompanhando minha nova empreitada musico-video-virtual, o videocast diahum? a idéia consiste, tão simplesmente, em publicar, sempre no dia 1 de cada mês, um vídeo feito com/a partir de uma canção : http://diahum.blogspot.com .

3.1 nem a propósito, o formato do diahum – música tornada em vídeo – e o meio escolhido para publicá-lo – um blog – buscam assumida e deliberadamente acumular novas significações (impossível ver o vídeo como mero veículo para a canção) e fomentar novas leituras e diálogos (abraçando a natureza interativa da web).

4. no mais, como vai a vida?

4.1 no mais, saudade, alegria por esta pequena interação, desejo quase lamentoso por outras mais próximas e freqüentes.

4.1.1 beijos!

AfonsoHRAlves disse...

legal esse canal de comunicação.
parabéns por acreditar na potência da palavra.

XOXÓ NO SEU FIOFÓ disse...

Como não havia lido isso antes?

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