segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Deliciando-se com referências, este esporte para poucos: uma epifania de domingo, envolvendo Laurence Olivier e Morrissey

Em minha visita diária à locadora do bairro, trouxera uma produção inglesa de 1972, em grande parte pelo nome do diretor: Joseph L. Mankiewicz (1909 – 1993), o que em geral é garantia suficiente de bom cinema, mas o elenco trazia também Laurence Olivier e Michael Caine, com uma prometida batalha de chistes (aquele esporte inglês de wit) neste que é o último filme de Mankiewicz. O diretor americano é um dos meus favoritos. Ora, bastaria que ele houvesse filmado tão-somente o clássico estupendo que é All About Eve (1950) para que eu o venerasse. Mas ele é também o diretor de outros oásis divescos como A Letter to Three Wives (1949), The Barefoot Contessa (1954), Guys and Dolls (1955) e aquele fracasso formidável e exuberante que foi Cleopatra (1963), que o arruinou. Por tudo isso, eu até o perdoei por aquele Suddenly, Last Summer (1959) e sua homofobia velada. O filme, de qualquer forma, acaba sendo um ótimo thriller, já que Mankiewicz era o gênio que era.

Sleuth (1972) é mesmo divertidíssimo. Pelo que li a respeito, é baseado numa peça homônima premiada de Anthony Shaffer (1926 – 2001), um autor de peças e romances de mistério. Sleuth é ao mesmo tempo uma ótima comédia e bom filme de suspense, e ainda veículo excelente para o talento de Laurence Olivier (que eu jamais imaginei pudesse ser tão engraçado) e Michael Caine.


Trailer para o filme Sleuth (1972), de Joseph L. Mankiewicz.


Por fim, em um dos momentos em que a comédia se transforma em tragédia e desta em farsa, a personagem de Laurence Olivier começa uma torrente de impropérios contra a personagem de Michael Caine, listando os motivos pelos quais o odeia, e, entre eles, este:


__ "You are a jumped-up pantry boy who never knew his place."


Ah! Epifania de adolescente indie! Não, querido, não índio. Indie, classe social algo esnobe e ridícula à qual já pertenci e de certa forma ainda pertenço, provavelmente não se escapa dela. Uma definição? Ai, que difícil, somos criaturinhas urbanas que se deliciam em conhecer bandas obscuras de pequenos selos musicais, os tais de independentes, que podem na verdade vir do pós-punk industrial britânico ou de bandinhas de garagem americanas que tocam em estações de rádio universitárias. ANTES de indie se tornar uma espécie de gênero em si, especialmente entre pessoas mais jovens, digamos, que acreditam que este começou quando Julian Casablancas primeiro viu um microfone. Ufa... não leve a mal este desabafo de fã musical começando seu leve declínio adiposo e capilar.

De qualquer forma, voltemos à epifania intertextual.

Ora, para uma criaturete que foi adolescente quando eu fui e sofreu, entre quatro paredes, com a trilha sonora que a mim serviu de acompanhamento musical para tragédias amorosas tardo-infantis seria impossível não reconhecer imediatamente esta sequência de palavras! Oh, Morrissey, sua diva esnobe!



"This Charming Man", canção dos Smiths, letra de Steven Patrick Morrissey.


Não é apenas uma das canções mais importantes da minha adolescência, uma espécie de código pessoal que eu cantava pela casa enquanto meus pais monolíngues não percebiam o que exatamente eu estava lhes revelando. Eu sempre considerei este texto excelente em sugestão e economia de meios na descrição de uma cena.


This Charming Man
Steven Patrick Morrissey

Punctured bicycle
On a hillside desolate
Will nature make a man of me yet?

When in this charming car,
This charming man.

Why pamper life's complexity
When the leather runs smooth
On the passenger seat?

I would go out tonight
But I haven't got a stitch to wear
This man said:

"It's gruesome that someone so handsome should care"

A jumped up pantry boy
Who never knew his place
He said "return the ring"
He knows so much about these things



Há todo um affair descrito aqui, do começo ao fim, até mesmo com suas cenas de crueldade, flerte e ofensa separados por um refrão. Não são assim nossos relacionamentos, tantos deles, flerte e ofensa separados apenas por um refrão? Mesmo assim, como sonhei com esta cena, como quis esquecer todas as complexidades da existência por alguns segundos enquanto meus dedos afagassem o couro no assento do passageiro de um carro qualquer, correndo pela estrada deserta, admirando os braços de macho ao volante, pensando "quando eu crescer, quero ser como this charming man."

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