segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

No qual o poeta, vivo da silva e em sangria desatada, pede perdão ao mestre morto por seus arroubos tragicômicos


No ano dois mil e onze de nossa era,
chamada agora de comum

por motivos politicamente corretos,
na cidade ex-bombardeada de Berlim,
o poeta escreve ao seu mestre eleito.


...............Mestre, dói-me confessar, mas quando li em um de seus poemas tardios que você webernizara-se, mondrianizara-se, foi inevitável e incontrolável pensar: “Este já não pode me ajudar”. Pergunto-me, caso nos houvesse sido dada a oportunidade de compartilhar o oxigênio dos mesmos dias, se teria vergonha deste seu discípulo repetente e repetitivo, discípulo que você mesmo não escolheu, se constrange-lhe agora que meio me douglas-sirkei, eu, todo desejoso de fassbindar-me, olhe, mestre, veja como estou todo almodovaricado.

...............Mestre, perdoe, sei que jamais ganharei o Nobel, talvez mereça um dia um Troféu Imprensa como Poeta B televisivo, mas sei hoje também que o cânone não passa de um equivalente mais prestigioso de um Vale A Pena Ver De Novo, e não me aflijo, pois, ao final das contas pagas, por que gerações futuras haveriam de se importar com nossas tragicomédias individuosas, como esta que ora me ocupa? Elas terão as próprias e nos saquearão como se fôssemos meras bulas de remédios com datas de validade vencidas, ai de nós.

...............Mestre, já não tem volta, traduzi "Ein jeder Engel ist schrecklich" por "toda Ângela Ro Ro é terrível". Piora tudo que em algum bairro do Berlimbo um moço com cabelos em caracóis não telefone há 36 horas, e a memória de todas as perdas passadas deixa uma pessoa em polvorosa, mestre, um hematoma nos glúteos basta para o pavor alérgico de todos os tarsos, metatarsos e dedos, conheço a lhanura das plantas dos pés dos homens, experimentei falanges e tornozelos. Imagino que você ainda nos compreenda, mesmo morto há tanto tempo e de quem talvez nem mesmo pó mais haja, pois, a quem já presenciou o ato de retroacção de sentimentos que se cria irrevogáveis, um dia de ausência é a certeza do sumidouro, da mesma forma como suspeitamos que o sol nascerá amanhã apenas porque o fez todos os dias de nossa vida, mestre, é o Magnum Mysterium.

...............Mestre, se quiser me extirpar dentre os seus parcos discípulos, entenderei, tudo bem, sou um fracasso como cristão e como modernista, pode repreender-me, expulsar-me até, nem precisarei remendar as iniciais no meu uniforme de poeta escolar, sei que Maysa Matarazzo há de me aceitar em seu curso noturno, e de seu amado nome, Murilo Mendes, até poderão permanecer os dois M iniciais em minha saia plissada.

...............Mestre, como eu poderia acalmar-me com blocos simétricos de cores ou palavras se os dias são sete e ímpares, os pratos da balança nunca em equilíbrio e os pulmões são estas bolhas precárias de pânico? A loteria dos dias tão raramente nos bendiz, perdoe-me esta postura nas ruas, esta corcunda, meus ombros suportam todos os breakups do mundo. Quisera ser o gladiador das éticas, o xamã a abrir com xampu místico os portões de Xanadu, o poetóide beijoqueiro que ressuscitasse o amor cortês de medievezas, mas, björkices à parte, contento-me com os ósculos ao espelho, com as alegrias que me caem sobre a cabeça porque os anjos erraram de endereço. Assim e assado, todo maysado em náuseas, sussurro: “Moço, não me quite a paz, não me quite a paz”, e por fim angelizado ronrono para não perturbar o público quando, plúmbeo e com plumas, tudo o que queria era uivar à lua como uma cadela em que a sarna houvesse doado certo tom rosáceo de solteirice aguda.

...............Mestre, o que posso dizer em minha defesa é que em prato que como só cuspo se este mo implora por qualquer fantasia erotizada, cachorro magro nunca fui, sempre comi e então ali fiquei, aos pés do que me alimentara, disposto a lealdades de mouros salvos num deserto, dizendo: “Eis que agora seguir-te-ei até o fim dos teus dias, salvaste-me a vida, sou teu escravoso cravo na lapela, oro para que nossos lábios costurem-se um no outro como se formassem, quando separados, o lábio leporino da mesma pessoa.”

...............Mestre, encontrei enfim um moço com paciência de Jó e potência de Thor, toda antilirice desértica em mim sumiu quando as chuvas regulares da saliva deste despencaram em minha boca, e enquanto houver em cada esquina o perigo do litígio amoroso, enquanto houver a cada aurora o risco do céu cair das bombas, ou de que eles venham todos em uma guirlanda de brechas: dependerei, dependerei, dependerei.



Rocirda Demencock. "No qual o poeta, vivo da silva e em sangria desatada, pede perdão ao mestre morto por seus arroubos tragicômicos", ou "Ricardograma para Murilo Mendes". Berlim, 18 de janeiro de 2011.


§

Oh captain, my captain!



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3 comentários:

Sebastião Ribeiro disse...

Gostei muito. Não vejo mais palavras completando essa impressão. Gostei muito.

Ricardo Domeneck disse...

Que bom, Sebastião. Há audiência então para meus arroubos tragicômicos, mesmo que o mestre me expulse? Quiçá!
beijo
Ricardo

João Filho disse...

O senhor sempre se reinventando, gostei! O bom do texto é que ajuda o autor (assim espero) a exorcizar o seu fantasma quase litigioso. Beijão.

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