segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

"Feliz aniversário, senhor Ōe", ou "O Dia em que Ele Próprio Enxugará dos meus Olhos Toda Lágrima", ou ainda "Dos textos que dão febre".

O prosador japonês Kenzaburō Ōe completa hoje 76 anos. A notícia, que li casualmente, iniciou em mim uma cadeia de recordações e pensamentos sobre os textos que amo.

Quando Kenzaburō Ōe ganhou o Prêmio Nobel em 1994, eu estava morando nos Estados Unidos, terminando o colegial como estudante de intercâmbio na cidade de Shreveport, em Louisiana. Tive a sorte de ser matriculado por minha família anfitriã na melhor escola da cidade, o que não deixou de ser muito difícil no começo, pois as aulas eram realmente muito puxadas para quem não dominava a língua, e, saindo de casa e do país pela primeira vez com 16 anos, passava ainda por um tremendo choque cultural.

O nome da escola era Caddo Parish Magnet High School, e tinha uma programação especial baseada na educação artística e literária. Para dar um exemplo, que está ligado a esta postagem sobre Kenzaburō Ōe, eu tinha uma aula que se chamava simplesmente Novels. Sim, "Romances". Nesta aula, que era diária e de 55 minutos, tudo o que fazíamos era ler, discutir, destrinçar e analisar um único romance por mês: seu texto, seu autor, sua recepção crítica. A lista de romances mensais, enquanto estive ali, foi de Fiodor Dostoiévski (Crime e Castigo, 1866) a Henry David Thoreau (Walden; or, Life in the Woods, 1854), de Primo Levi (If Not Now, When?, 1982) a Henry Miller (Sexus, 1949), entre vários outros. Creio que estes quatro exemplos dão uma ideia de como a escola era progressista. A professora chamava-se Ms. Pam Peak, e pelo que vi no site da escola, dá as aulas de English, Creative Writing e Novels ainda hoje por lá.

Todo ano em outubro, quando era anunciado o Nobel, a classe então lia um trabalho do autor, fosse ele prosador, dramaturgo ou poeta. Assim, numa manhã em outubro de 1994, a senhora Peak chegou à sala de aula e escreveu na lousa:

Kenzaburō Ōe
Teach Us to Outgrow Our Madness

O original havia sido publicado no Japão em 1969 e a primeira tradução americana em 1977. A edição que usamos, cuja capa reproduzo ao lado, reunia quatro novelas de Ōe.

Teach Us to Outgrow Our Madness é um dos trabalhos que trazem certos elementos autobiográficos de Ōe, no qual a personagem principal lida com os fantasmas de sua decisão de interromper a gravidez da mulher quando descobrem que o bebê tinha a Síndrome de Down, e sua relação quase obsessiva com o filho quando este nasce. Há uma passagem na novela envolvendo um urso polar que é memorável.

O texto me impressionou tanto que decidi ler as outras três novelas incluídas no volume. Comecei por Aghwee The Sky Monster, de 1964, que à época me pareceu um dos textos mais aterrorizantes que lera nos meus 16 anos de vida. A novela conta a história de um homem que é contratado para fazer companhia à personagem que durante toda a novela é chamado apenas por sua inicial, D., um compositor de 28 anos que enlouquecera após causar a morte de seu filho recém-nascido e deficiente. D passa a ser visitado pelo fantasma do bebê, que ele chama de Aghwee por ser a única palavra que o bebê falara antes de morrer. O livro é assustador.

Depois li Prize Stock, um trabalho mais realista, que conta a história de um piloto negro norte-americano que acaba capturado e mantido preso em uma vila japonesa, por pessoas que jamais tiveram contacto com estrangeiros. Segundo o autor, é também um trabalho baseado em acontecimentos de sua infância.

Mas foi a novela que abre o volume e que deixei por último, a mais longa, estonteante e lindamente intitulada The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away (1972), que me causou a febre, o aguar na linha do diafragma, a natação dos pulmões.

The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away é uma das coisas mais inesquecíveis que li, e a segunda vez na minha vida de leitor, até aquele momento, em que experimentara A FEBRE. Espero que algumas pessoas lendo isso entendam o que quero dizer, sem que eu tenha que explicar muito. A febre. Aquela febre que certos textos dão, e que apenas textos muito específicos conseguem causar. Àquela altura, com 16 anos, minhas leituras ainda consistiam em grande parte de ficção científica e histórias de terror. A única vez que me lembrava de ter experimentado aquela sensação ao ler algo fora com Clarice Lispector, com o conto "O ovo e a galinha". Em poesia, até então apenas com alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

Não estou tentando estabelecer uma comparação entre Lispector e Ōe, dizer que são da mesma linhagem ou algo assim. Não sei o que os une. Sei apenas que há certos escritores que me dão esta febre, que vai além da mera "apreciação estética" ao nos depararmos com a grande técnica narrativa de um bom escritor. Há certos autores que fazem com que nossas cordas vocais vibrem mesmo enquanto os lemos em silêncio, como se numa frequência inaudível para os ouvidos humanos.

Você conhece a expressão "ficar aguado"? No interior de São Paulo, usa-se a expressão para aquela sensação infantil que temos quando ainda estamos aprendendo a lidar com o NÃO. Imagine uma criança a ouvir pela primeira vez o NÃO. Começando a descobrir que o mundo não é exatamente um fornecedor inesgotável de sonhos realizáveis.

"Não! Você não pode possuir esta coisa ou ser vivo do qual sua vida parece depender completamente neste exato instante dos seus 5 anos de vida sobre a Terra."

Eu me lembro ainda da primeira vez em que me foi dado, por adultos, o nome para aquela coisa horrível que estava sentindo no peito. Eu posso quase me ver encostado no portão da casa de minha avó, ouvindo-a dizer ao meu pai: "O menino ficou aguado"... sei que soa como ilusão da memória, mas às vezes eu acho que a primeira manifestação poética de que me lembro foi ali, aos 5 ou 6 anos, quando eu me maravilhei com aquela palavra, que parecia denominar tão bem aquela sensação horrível de frustração, decepção no peito, eu quase pareço me lembrar de pensar comigo mesmo: "Então é isso, eu fiquei aguado!, é isso o nome desta sensação horrível!". E fiquei muito tempo pensando no porquê do uso de um derivado de "água" para a sensação, mas, ao mesmo tempo, sabia que era perfeito. Era como estar chorando por dentro dos pulmões.

E é essa a sensação que me retorna ao ler certos escritores. Esta febre, misturada a este aguamento. Mas agora ela é subitamente um prazer! Como aquela alegria difícil de que fala Clarice Lispector em A Paixão Segundo GH? Talvez haja apenas muito masoquismo no tal prazer do texto. E vicia. Porque agora não tenho escolha, passo a vida buscando os escritores que me possam dar este prazer específico, este aguamento. Esta febre. Mas quanto mais passa o tempo mais difícil fica deslumbrar-se. São poucos os que dão a febre imensa... senti-a em "O ovo e a galinha", de Clarice Lispector, assim como, mais tarde, em várias passagens deslumbrantes de A Maçã no Escuro (1951); eu a senti neste The Day He Himself Shall Wipe My Tears Away comentado aqui, de Kenzaburō Ōe; naquelas páginas finais de Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, ou na passagem assustadora em que Riobaldo deixa o bando e embrenha-se no ermo, à procura do diabo; em quase todas as páginas de Qadós (1973) e A Obscena Senhora D (1982), de Hilda Hilst, especialmente com aquela porca; passagens de Absalom, Absalom! (1943), do Faulkner; em Temor e Tremor (1843), do Kierkegaard; em Do Sentimento Trágico da Vida (1933), de Miguel de Unamuno; na passagem em que Aliocha lamenta-se durante os eventos perturbadores do velório de seu mestre no monastério, em Os Irmãos Karamazov (1880); em Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), do Barthes; etc, etc, e outro raro e precioso etc.

Eu estou sempre em busca destes textos. Acho que é por isso que a onda brasileira seca, objetiva e econômica dos poetas cabralistas e dos prosadores fonsequistas sempre me frustrou tanto - ainda que os próprios Cabral e Fonseca sejam muitíssimo capazes de tais textos, basta pensarmos, por exemplo, em Uma Faca Só Lâmina (1955), de Cabral. Eu preciso da febre, do texto que parece aumentar a temperatura do meu corpo entre o diafragma e as amígdalas, que faz a boca ficar --- nem frouxa nem rígida (o Brasil ataca o frouxo porém celebra o rígido) --- mas tesa.

Falei aqui apenas sobre os textos em prosa que mais me marcaram, compartilhando com vocês. Adoraria saber quais textos dão febre aos amigos. Quem quiser deixar uma lista nos comentários, como sugestões a este viciado por textualismo febril, me deixaria feliz.

Quero escrever sobre uns poemas na próxima vez.

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5 comentários:

Paulodaluzmoreira disse...

Maravilhoso seu texto, Ricardo, sem puxasaquismo!
Bom, FEBRE: antes de qualquer coisa Pedro Páramo de Juan Rulfo!
"Recortes de Prensa" de Julio Cortázar; "A quinta história" e "A repartição dos pães" de Clarice; 2666 de Bolaño; "Muerte sin fin" de José Gorostiza. O Quixote. David Copperfield. Cane de Jean Toomer.
E vou parando por aqui.

Ricardo Domeneck disse...

Que legal, Paulo.

Nunca li Juan Rulfo, preciso mudar isso. Cortázar é mesmo maravilhoso. Do Bolaño falta ler ainda o "2666", mas "Detetives selvagens" poderia facilmente ter entrado na minha lista. Vou pesquisar sobre Jean Toomer... ele era da Harlem Renaissance, não?

abraço

Ricardo

Paulodaluzmoreira disse...

Concordo sobre Bolaño e talvez Detetives seja até melhor. Rulfo é de uma intensidade emocional impressionante e faz com o espanhol mexicano o que Guimarães Rosa fez com o português brasileiro - e se um dia a gente se encontrar ao vivo eu te conto uma história ótima de uma viagem que Guimarães Rosa e Rulfo fizeram da Cidade do México até Guadalajara num ônibus que ia pingando de pueblo em pueblo [mais de dez horas trocando histórias de facínoras mineiros e jalisciences].
E Jean Toomer poderia ser um modernista brasileiro e se o fosse o [primeiro] modernismo brasileiro teria sido imensamente mais interessante do que foi...

Paulo. disse...

Minhas febres: Proust, especialmente No Caminho de Swann e Sodoma e Gomorra, aquele poeminha de Coleridge "what if...", Moby Dick, o final do Quixote, O Coração das Trevas, Grande Sertão, O Conde de Monte Cristo, Sebald, o Eclesiastes e, talvez uma sugestão, Seda e Mundos de Vidro, de Alessandro Baricco.

Ricardo Domeneck disse...

Paulo,
obrigado pelas dicas. Ainda não li Sebald, por exemplo, preciso mudar isso em breve!
"O Coração das Trevas" e o "Quixote" foram também coisas muito potentes na minha vida. Vou reler o poema do Coleridge, e já pus na lista de "To Read" o romance do Baricco.
abraço
Ricardo

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