terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Versos que circundam a instância de serem escritos enquanto o poeta tomava café-da-manhã e sofria de dor nas costas



Versos que circundam a instância de serem escritos enquanto o poeta tomava café-da-manhã e sofria de dor nas costas


As costas talvez
sempre esperem um navegante
perdido, algum desconhecido
Vasco da Gama ou Vespúcio
em busca de porto seguro
para seu rectus abdominis
ou prepúcio.
Mas não este abominável
músculo
residente nas minhas costas,
ao qual nunca
fui apresentado, e que pouco
civilizadamente aposta
em não crer nas ressurreições
matinais que Scarlett O´Hara
preconizara ao fim
de Gone With The Wind,
e assim acorda
no mesmo espasmo
de ontem, aos gritos
por atenção, feito uma diva
histérica, inconsequente.
É o que imagino que a convivência
comigo cause. Quando escarneço
nos meus típicos exageros
que respirar às vezes
dói, querido romboide,
buscava uma hipérbole,
não literatura realista.
Se nem o coquetel de cafeína
e chocolate com nicotina
ajuda, então exacerbo e recorro
ao café-da-manhã com Ibuprofen
e um documentário sobre Auden,
suas putarias com Isherwood
na cidade que já àquele tempo
devia ser este mesmo Berlimbo
em que me esparjo e dissemino
hoje. Mas pauso a cada cinco
minutos para delirar, e imagino
que, na verdade, o documentário
é sobre certo Ricardo Domeneck
e seus mil excessos,
indo ao ar em 2077
para comemorar seu centenário,
e percebo que pelo menos
os músculos do meu ego
estão fit as a fiddle.
Olho pela janela e vejo
o sol raquítico
deste fevereiro
(o mais Gargamel
dos meses) e mal
posso esperar pela tal
de primavera,
quando nas ruas
as panturrilhas
estarão enfim descobertas
e todos os meus músculos
estarão extáticos e despertos.
Vivendo entre dois trópicos,
os poetas tupiniquins
jamais entenderão o motivo
de citar estações do ano
tintim por tintim.
Ao descer as escadas,
sei, como escreveu a outra
O´Hara,
que não haverá correspondência
na caixa de correios,
mas há luz em Berlim em pleno
meio-dia
de inverno
e os meteoros
estão todos
ainda longe da Terra.
Auden e Isherwood
são apenas sonhos mortos,
pó e ossos,
mas eu estou vivo e doloroso,
então visto a melhor jaqueta
e vou almoçar com O Moço.



Ricardo Domeneck, Berlim, 22 de fevereiro de 2011. Escrito com dores de espasmo nos músculos romboides e entupindo-me de Ibuprofen e cafeína, enquanto assistia a documentário sobre W.H. Auden.



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2 comentários:

João Filho disse...

Matou a pau!!! Podem até ser versos de circunstância, mas que beleza!!! Cotidiano e ironia em dose perfeita.

Ricardo Domeneck disse...

Que legal que você curtiu, João!
Eu no momento estou interessado justamente neste jogo de "circunstância" e "permanência"... onde a linha em que os dois estão em equilíbrio? Penso em Catulo fazendo piadas aos amigos em seus versos, por exemplo. É minha maneira de pesquisar a historicidade poética... e de me divertir enquanto escrevo, é claro!
abraço
R.

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