quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ana Cristina César descia aos infernos há 25 aos 31

Há 25 anos, a poeta carioca Ana Cristina César (1952 - 1983) decidia encerrar a própria vida. Com apenas 31 anos de idade e parcos livros publicados, segue na pauta do dia da poesia brasileira. Sentei-me hoje na sala e reli A Teus Pés e os Inéditos e Dispersos. Ainda que meu esôfago discorde um pouco de muitos de seus arpejos, em alguns poucos poemas Ana Cristina César conseguiu realmente atingir textos que permanecem porque permanecem porque permanecem. Passei um tempo pensando naqueles poetas brasileiros que morreram em seus late twenties, early thirties, como Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry, Mário Faustino, Torquato Neto, deixando alguns poucos poemas que valem tanto, tanto. Não escrevi um poema para Ana Cristina César hoje, mas saiu no Diário Catarinense uma matéria sobre os 25 anos de sua morte, com poemas de vários autores brasileiros, todos dedicados a Ana Cristina César. Reproduzo os belos belos poemas de Marília Garcia, Ricardo Aleixo e Laura Erber.

a garota de belfast ordena
a teus pés alfabeticamente


por Marília Garcia


98 voltas pelo parque antes de cair em
círculos, parecia a garota de belfast com
sua memória dobrada como um pára-quedas
dentro do tecido eletrizado e que dizia pode ou não pensar
em algo definitivo
. enquanto falava descia a
escada lateral recortando os ruídos
da orquestra. a roda da bicicleta
girando em loop esfarelando os
reflexos no ar e seis horas parada diante
do ralo, pode ou não pensar, sentada na beira do
quarto. olha de longe quando o carro
passa, descer à noite pelos trilhos
quando tudo é uma vingança, levanta
para ouvir direito e não tem mais o eco
(passagem é a ligação externa
entre os dois prédios).
fala de pontes atravessando os túneis
da cidade e ordena a teus pés
alfabeticamente

A anoitecer sobre a cidade
A câmera em rasante
A correspondência
A curriola consolava
A dor
A espera
A intimidade era teatro

e depois de algumas linhas

A tomar chá, quase na borda
A voz em off nas montanhas

pode ou não pensar que era sua voz em mountain hill
a uma velocidade de 1 km/h ou mil. antes
de voltar para a irlanda começou a perda já. entende
que só depois de o blindex esfarinhado contra a
cabeça, só em poucos segundos até que a cabeça
contra o blindex, pode ou não, mas era apenas parte
do trajeto, não podia calcular as noites ou linhas
em que passaria.

........................como extrair o áudio de uma imagem
congelada
era a etiqueta que colava nas paredes
para tentar descobrir como chegar com precisão
e ao fundo a voz pela fresta
a ordenar este livro:

Agora chega
Agora é a sua vez
Agora estamos em movimento
Agora pouco sentimental
Água
Água na boca
Agulhadas

ou vertigem das alturas. você pode acordar trinta anos
depois com a imagem ainda mais viva
quando o quarto está às cegas

As cartas
As cartas, quando chegavam
As lupas desistem
As mulheres e as crianças são as primeiras
Asas batendo
Atravessa a ponte
Atravessando a grande ponte
Atravessa vários túneis da cidade
Autobiografia. Não, biografia
Aviso que vou virando um avião
Azul deixo as chaves do 1114 soltas no balcão
Azul que não me espanta

§§§

Sampler

por Ricardo Aleixo

Da próxima vez
não tem dúvida:

mesmo que a deusa
não suba

à superfície,
sampleio

seus uivos
e torno

a querer tanto
os seios da sereia.

§§§

movido contraditoriamente por x e y

por Laura Erber

cogumelinhos podres
pot-pourri de sais aromáticos do Mar Morto
sedução do não
teoria de mascar
y outros tesouros confiscados
no rabo da baleia disfarçada de Jonas
(não tem Judas nessa história sem beijo) – desvelos
de fariseu em fuga – reciclar o velho cachimbo 18 x 10
disjuntivo and move on just play it again and
– fácil de limpar cabeça desmontável –
all those pictures na berlinda
saltos de poquita fé
teorias do talvez
e dale mais tradução
promessa de promessas removidas
desgraça contágio capitania
deserdada maltraçadas tordesilhas
cigana maltrapilha de véu
em véu ai que enjôo – risque a palavra
desejo – desatraca um dia – sorriso inteiro –
repare: hoje é fácil dar de ombros dizer
o vulnerável comungar profanações vazar
o bebê ops com a água – ou confissão
das confissões nesta pista de
luz Farnsworth quem poderia
recusar o brilho da moréia
shampoo de queratina
para fios em queda pontas duplas
pistas de pouso incerto
tratamento sedoso
aplicação intensiva – curioso,
ela já não combina com o blues
da década passada: colombina cansada
lânguido ardor depois de tudo te livrando (me pergunto
ainda
sem resposta) me virando oh dia oh
céus oh azar mas quem disse que
o meu embaraço não te ? – é por dentro,
é no cativeiro que te leio

5 comentários:

Leonardo Martinelli disse...

Pois é: não há como não lembrá-la sem um certo travo de desgosto, uma sensação de sufoco - tão bem amplificada pelo livro De Cor, de Armando Freitas Filho... Também não deixa de ser irônico que uma contemporânea influente de Ana, nossa querida Angela Melim, ande tão esquecida de todos, vivinha e cheia de novos e belos poemas... Escrvi um texto sobre A.C.C. com Carlito para um número da Poesia Sempre (auqlele dedicado ao Gullar, vc lembre, Ricardo?). De qualquer forma, como ela mesma disse: as mulheres e as crianças são as primeiras a abndonar os navios. Saudades de Ana, de Sylvia, de Emily... Saudades de mulheres insubmissas, fortes e pasageiras como um vendaval.

Leonardo Martinelli disse...

Ah, não resisti e escrevi um poema bem escroto pr essa doida tb. está no blog, vai lá!

Angélica Freitas disse...

gostei muito desses poemas.

Angélica Freitas disse...

eu de novo. correção: esses poemas são uma loucura!

laura erber disse...

querido Leo, entrei aqui hoje, quase por acaso, com enorme atraso. a digestão do desvairio de Ana ficou mais lenta pois um dos comentadores já não pode comentar.
o ventilador revolve o ar mas não refresca. esse sufoco. aliás, esse sufoco tem vários nomes.
"os nossos melhores silêncios", (verso que roubei de ti) retornam, irrrespiráveis (só para anfíbios). o problema é a manutenção do silêncio quando o público espera a fluência de um bandolim de ouro.mensagens instantâneas também são isso, um buraco enorme. aqui é tarde, preciso dormir, com sorte sonharei um poema bem escroto que contenha, entre outras coisas, o teu sorriso irreversível.

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