quarta-feira, 23 de março de 2011
"Elegia para a Rainha dos Epitalâmios" ou "The Day Liz Died"
Elegia para a Rainha dos Epitalâmios
ou The Day Liz Died
E era o primeiro dia do ano
em que eu saía de casa
sem cachecol e capuz.
Não era exatamente o nirvana,
mas era um começo.
Tudo o que eu queria era
um café como eu
me sentia, forte e barato,
e na calçada meus passos
tinham aqueles ares
de segurança pública,
como entre pagar o seguro
de saúde e comprar a revista
preferida de música,
não havia motivos
para hesitações: consistimos
em uma série de prioridades
conflituosas, coexistentes.
Sabia dos mortos no Japão
e na Líbia
mas, com certa lábia,
tinha certeza e convicção
de que me convenceria
de merecer uma xícara
de café num mundo
em que Tânatos
estaria de férias
há anos.
Aí soube de Liz Taylor
e do Grim Reaper.
Filmes há décadas ilustram a morte
como o instante em que a vida passa
diante dos nossos olhos
– “como num filme” –
diz-se. Talvez instância
de autopromoção da sétima
arte. Mas em teu caso, criatura
de Deus, quando a existência
foi toda gasta em estúdios,
cenários de fundo falso e filmes,
será que ficaste presa no limbo
de um disco
riscado, um eterno retorno
a la Nietzsche
como se perante um espelho
pusessem uma série
de espelhos, ou quem sabe
como os cineastas recentes
que abusam do tropo e truque
do filme dentro do filme?
De todos os teus óvulos ejetados
e quilos de maquiagem borrada
por lágrimas restará hoje
em alguma tela de TV um Best Of
de tuas brigas
ou a contagem regressiva
dos husbands.
É assim nossa ânsia
de consumir,
ânsia que não se consuma.
Ela não te era estranha.
E nesta manhã,
quando a Cadela Inimiga
adentrou teu quarto,
não havia nem uma Lassie
que ladrasse,
não havia um corcel alazão
que fugisse a galope,
não havia Richard Burton
nem Marcus Antonius
a proteger-te com músculos
e tropas.
Só, tu e tuas trompas
de falópio.
Tantas coisas me ensinaste,
Rainha dos Epitalâmios,
sobre a vida com gônadas
e hormônios,
sobre homens e uísque,
ensina-me agora
como se morre. Finjo
então que, já do meio
do Aqueronte,
deixando trêmulo
o próprio Caronte,
ouço a sua voz
dizer: “Ricardo, a morte
não é épico histórico,
nem filme com 65 trocas
de roupas,
não é produzida pela Disney,
nem baseia-se em peça
indicada ao Pulitzer;
a morte é sempre Off-Broadway,
ocorre, desde as tragédias gregas,
fora de cena,
estreia-se nela sempre como amador
e ela mal emula filmes B de terror
em produções televisivas.
Quanto à minha vida,
tudo o que digo é: I stood
warned”. Soube então como
que por instinto
que a morte decerto
nem tivera o senso
de humor de metamorfosear-se
em áspide
e esconder-se num cesto
para buscar-te.
Deve ter sido
lacônica e ríspida.
Indignado, com a xícara
a meio caminho da boca,
penso em como a morte
não poupara Afrodite
nem sua reencarnação
como Vênus; levara
Cleópatra
e também Nefertiti.
E que Liz Taylor agora
era como elas todas
abstrata, icônica
– como uma lápide.
Soube aí que o mundo
não passa de um vale
de reprises sem sequels
e com nossas próprias mãos
carregamos nossas sequelas
ainda que as escondamos
sob diamantes de 68 quilates.
Berlim, 23 de março de 2011.
.
.
.
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8 comentários:
Maravilhoso e merecido tributo, Ricardo.
Ricardo, se eu disser que é só comovente este poema estarei mentindo, é belíssimo e sábio, e nós sabemos o quanto isso é raro em Arte. Um trecho como este (um entre tantos):
"E nesta manhã,
quando a Cadela Inimiga
adentrou teu quarto,
não havia nem uma Lassie
que ladrasse,
não havia um corcel alazão
que fugisse a galope,
não havia Richard Burton
nem Marcus Antonius
a proteger-te com músculos
e tropas."
É duca!!! (Agora vejo o duplo sentido da gíria aí eheheheheh). Beijão.
quem vem lá?
http://deletrando.blogspot.com
Obrigado, João! e
Obrigado, Paulo!
Muito bom.
Hugo, que bom receber sua visita. Grande abraço,
Ricardo
Lindíssimo. De uma lucidez dorida e dolorosa.
São lindas as vozes. Muito bom!
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