Nesta última terça-feira, publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. um artigo sobre alguns poemas de Patrícia Galvão (1910 - 1962). A autora sempre me fascinou, desde que li, creio que em 1998, o trabalho de Augusto de Campos sobre ela, Pagu: vida-obra (São Paulo: Brasiliense, 1982). Nele pude ler pela primeira vez o poema "Natureza morta", do qual nunca esqueci. O texto, para o contextualizarmos entre os de companheiros modernistas de Patrícia Galvão, foi publicado originalmente no Suplemento Literário do Diário de São Paulo em 1948, sendo portanto contemporâneo dos que marcariam a transição de Carlos Drummond de Andrade entre A Rosa do Povo (1945) e Claro Enigma (1951), dois de seus livros mais importantes, e dos poemas que Murilo Mendes publicara no ano anterior em Poesia Liberdade (1947). Entre as mulheres mais famosas e respeitadas da poesia modernista brasileira à época, Cecília Meireles vinha da publicação de O Mar Absoluto e Outros Poemas (1945), trabalhava nos textos que viriam a formar Retrato Natural (1949); Henriqueta Lisboa publicara A Face Lívida (1945), trabalhava em Flor da Morte (1949). Marcado talvez pelas mesmas visões apocalípticas geradas pela Segunda Guerra em poemas como "Nosso tempo", de Drummond, e "Janela do caos", de Murilo, o poema "Natureza morta" transporta-nos a um ambiente de opressão tanto coletiva como individual. Passei os últimos dis pensando no destino histórico de Patrícia Galvão em nosso país de patriarcas falhos. Versos como "Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo", do poema "Natureza morta", ou "Nada mais sou que um canal" (do poema "Canal", de 1960) circulavam pela minha cabeça, acusatórios, vivos, eficientes. Na quinta-feira à noite, antes de dormir, assisti ao filme mais recente de Clint Eastwood, Hereafter (2010), que inicia com cenas extremamente realistas e bem produzidas a reencenar o maremoto que atingiu a Indonésia em 2004. Fui dormir muito perturbado, com o verso de Patrícia Galvão martelando as paredes do meu crânio: "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?", verso que sempre mexe muito comigo por sua agressividade e desespero. Acordei ontem pela manhã com as notícias do maremoto no Japão, e o verso de Patrícia Galvão ainda a martelar. Hoje é sábado, uma usina nuclear japonesa está em chamas. O verso "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?" gonga dentro do meu cérebro, enquanto o poema cantado de Jim Morrison, "The End", repete-se, em conjunto com o texto de Patrícia Galvão. O Moço dorme. Faço um café bem forte e tiro da estante dele uma de suas coletâneas de ficção científica, ponho-me a ler os contos "Impostor", do Philip K. Dick, e "Billennium", do J.G. Ballard. Na noite anterior, assistimos juntos ao documentário de Charles Ferguson, Inside Job, sobre a crise financeira de 2008, seus culpados riquíssimos. A primavera está chegando a Berlim, que não fica na costa e jamais seria atingida por um maremoto. O Moço dorme, eu tomo café e leio Dick e Ballard, pergunto-me se a água chegaria ao primeiro andar do prédio onde estamos, onde, neste momento, O Moço dorme, eu leio Dick, Ballard, e escrevo esta nota introdutória para um artigo sobre Patrícia Galvão. No Japão, uma usina nuclear está em chamas. Jim Morrison e Patrícia Galvão estão mortos. Você e eu estamos no entanto vivos, tememos maremotos, usinas nucleares. Nas Redes Sociais, a maioria dos meus "amigos" segue fofocando, trocando informações sobre festas, trocando fotos, trocando fodas. O Moço dorme. O Japão afunda. E eu, com uma xícara de café muito forte ao lado, textos de Dick e Ballard, numa janela do computador Morrison sussurrando "This is the end, my only friend, the end", leio e admiro o desespero controlado dos poemas de Patrícia Galvão.
"Patrícia Galvão, desejosa de maremotos",
por Ricardo Domeneck
por Ricardo Domeneck
Patrícia Galvão nasceu em São João da Boa Vista, estado de São Paulo, em 1910. Uniu-se ao Movimento Antropófago em 1928, e, em 1931, passou a editar o jornal O Homem do Povo com Oswald de Andrade, com quem estava a esta altura casada. Foi presa neste ano pela primeira vez ao participar de um comício do Partido Comunista e da organização de uma greve de estivadores em Santos. Seria a primeira mulher no Brasil a ser presa por "crimes políticos". Ao deixar a prisão, estreia em livro em 1933 com o romance Parque Industrial, saindo logo em seguida em viagem pelos EUA, Japão, Polônia, Alemanha, URSS e França, onde, em Paris, seria hospedada pelo poeta (ligado ao Grupo Surrealista) Benjamin Péret e sua esposa, a soprano brasileira Elsie Houston. Ali estudaria com os filósofos Georges Politzer e Paul Nizan, mas acabaria detida em 1935 como comunista estrangeira e deportada para o Brasil, onde seria então novamente presa pelo regime de Getúlio Vargas, passando desta vez cinco anos na prisão.
Seu segundo romance, A famosa revista, seria publicado apenas em 1945, com o fim do Estado Novo. Em 1946 deu início, com seu segundo marido, o crítico e escritor Geraldo Ferraz, ao Suplemento Literário do Diário de São Paulo, aos domingos, que duraria até 1948. No pós-guerra, passou a publicar poemas na imprensa santista e a dedicar-se ao teatro, sendo uma das descobridoras e incentivadoras do dramaturgo Plínio Marcos. A poeta e romancista morreu em 1962 na cidade de Santos em decorrência de um câncer, após sobreviver à tortura em mais de 20 encarceramentos pela polícia de Vargas e uma tentativa de suicídio.
Todos nós a conhecemos como Pagu e sabemos mais sobre sua vida pessoal que sobre o seu trabalho. Esta figura larger than life, como se diz, foi no entanto uma poeta talentosa, e os poucos poemas que deixou enquadram-na entre os autores lacônicos mas marcantes do primeiro modernismo, como foi o caso de Raul Bopp ou Luís Aranha. Um poema como "Natureza morta", que entusiasmaria Augusto de Campos em 1948 quando este o lê no Suplemento Literário do Diário de São Paulo, sem saber que sob o pseudônimo Solange Sohl escondia-se a lendária Pagu, traz-nos uma imagética sombria que lembra a poética algo onírica de Pedro Kilkerry em "É o silêncio", por exemplo.
Natureza morta
Patrícia Galvão
Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!
Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém ...
Nem a presença dos corvos.
(publicado com o pseudônimo Solange Sohl em 1948, no Suplemento Literário do jornal Diário de São Paulo.)
Augusto de Campos, que dedicaria à poeta paulista um de seus resgates crítico-biográficos mais apaixonados, a homenagearia antes como espécie de musa misteriosa em O sol por natural (1952) e ainda em seu famoso poema de amor à esposa, "lygia fingers":
Augusto de Campos oraliza o poema "lygia fingers", que pode ser visto abaixo:
O poema "Natureza morta" apresenta-nos um ambiente opressor, e afasta-se um pouco da poética das autoras mais conhecidas do Modernismo brasileiro, como Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles, ainda que seja criticamente frutífero ler certa poesia da paulista à luz de livros como O Mar Absoluto e Outros Poemas (1945), da carioca, ou Flor da Morte (1949), da mineira. Patrícia Galvão, em vários aspectos, adiantaria na verdade a poética de mulheres como Ana Cristina Cesar, Elisabeth Veiga, Hilda Machado e Lu Menezes. As "coisas", em seu mundo, não são geradoras daquele pavor quase psicótico e tão bem ilustrado por Fernando Pessoa no poema em que fala sobre o medo de voltar-se e descobrir as coisas tirando a máscara, ou como no famoso poema de Eugenio Montale, "Forse un mattino". Em Patrícia Galvão, o poeta está entre as coisas, é ela própria parte de uma decoração assombrada e assombrosa. Não se trata de querer equipara-la a estes que foram alguns dos maiores poetas do século XX, mas de buscar uma espécie de irmanar de preocupações políticas e metafísicas, assim como de uma teia distinta de conexões estéticas entre autores do século passado, em confluência, fora das narrativas lineares já engessadas de influências.
Os versos que abrem "Natureza morta", publicado em 1948: "Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas. / Estou dependurada na parede feita um quadro. / Ninguém me segurou pelos cabelos" parecem unir-se em arco sincrônico ao "poema de terror" que é "É o silêncio", de Kilkerry: "É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa. / Olha-me a estante em cada livro que olha. / E a luz nalgum volume sobre a mesa...", ainda que Patrícia Galvão não recorra ao animismo como Pedro Kilkerry. Como disse, os dois autores estão mais interessados em uma atmosfera de pesadelo, que a eles parece reger a realidade, do que em uma descrição objetivizante daquilo que os cerca. Ela mimetiza a objetificação de sua subjetividade. Não um coisismo, mas a coisificação. Pedro Kilkerry e Patrícia Galvão, assim como Murilo Mendes por exemplo, são poetas que tendem a borrar a fronteira que uns querem demasiado clara entre mundo externo e mundo interno, e, portanto, entre objetividade e subjetividade - são autores do que eu já chamei de uma sobjetividade. Neste aspecto, seria muito interessante discutir no mesmo contexto a poética de autores norte-americanos da década de 30 como os Objectivists (George Oppen, Louis Zukofsky, Lorine Niedecker, Charles Reznikoff, Carl Rakosi, etc), contemporâneos exatos de Patrícia Galvão e Oswald de Andrade e que compartilham com eles a preocupação política anticapitalista comum do entreguerras (basta pensar também no círculo de poetas em torno de W.H. Auden na Inglaterra): lidos ainda hoje como celebradores de um coisismo, até que ponto não foram, ao mesmo tempo e pelos mesmos meios, também os detratores de uma coisificação?
Sua escrita recorre à ironia, e quando pensamos que ela está prestes a lacrimejar, percebemos que ela está na verdade armando o bote da agressão logo a seguir. Há um inflar e desinflar do ritmo, geralmente formando-se em anticlímax. "Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo" parece-me uma das comparações mais agressivas da poesia brasileira moderna, extremamente crítica da própria entronização que ela, Patrícia Galvão, sofrera como "a musa Pagu", sem mencionar o verso (um dos meus favoritos): "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?", e o excelente e sinestésico "Vertem os meus olhos uma fumaça salgada".
Escrito em seu leito de morte, é também difícil ler um poema como "Nothing" e não pensar na poética apocalíptica de Álvaro de Campos, como em "Lisbon revisited", ou, em clave muito distinta, em certos textos da americana Laura Riding e sua desconfiança do signo, distinta da celebração sígnica que vemos na poesia brasileira do pós-guerra.
Nothing
Patrícia Galvão
Nada nada nada
Nada mais do que nada
Porque vocês querem que exista apenas o nada
Pois existe o só nada
Um pára-brisa partido uma perna quebrada
O nada
Fisionomias massacradas
Tipóias em meus amigos
Portas arrombadas
Abertas para o nada
Um choro de criança
Uma lágrima de mulher à-toa
Que quer dizer nada
Um quarto meio escuro
Com um abajur quebrado
Meninas que dançavam
Que conversavam
Nada
Um copo de conhaque
Um teatro
Um precipício
Talvez o precipício queira dizer nada
Uma carteirinha de travel’s check
Uma partida for two nada
Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas
Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava
Um cão rosnava na minha estrada
Um papagaio falava coisas tão engraçadas
Pastorinhas entraram em meu caminho
Num samba morenamente cadenciado
Abri o meu abraço aos amigos de sempre
Poetas compareceram
Alguns escritores
Gente de teatro
Birutas no aeroporto
E nada.
(publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 23/09/1962)
Para nossa sensibilidade contemporânea, o uso que Patrícia Galvão faz da anáfora pode incomodar, mas é necessário perceber que sua escrita pressupõe a oralização. Tal tática foi comum entre os Beats, por exemplo, que tanto basearam seu trabalho na performance oral. Basta pensar em um poema como "Howl", fortemente baseado na anáfora.
Patrícia Galvão merece ser lembrada primordialmente como autora em e de si, permitindo que a historiografia literária brasileira registre sua contribuição pessoal à literatura moderna do País, e não apenas através do filtro daquilo que os homens do movimento escreveram sobre ela, pois foi poeta talentosa, mais do que mera personagem coadjuvante na biografia de artistas mais ilustres. E é por estes poemas e o que ainda há de vivo neles que Patrícia Galvão adentra a sintonia de nossa sincronia.
--- Ricardo Domeneck, 7 e 8 de março de 2011, na cidade de Berlim.
§
Canal
Patrícia Galvão
Nada mais sou que um canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?
Evidentemente um canal tem as suas nervuras
As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não
Gosto de bandeiras alastradas ao vento
Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal.
(Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 27-11-1960)
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3 comentários:
poxa! não fazia idéia de que a pagu era, também, poeta. adorei seus poemas!
Pois é, Bruno, seria muito legal se relançassem o trabalho dela, para que tivéssemos acesso a tudo o que ela fez.
abraço
Ricardo
Natureza morta corta!
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