domingo, 27 de março de 2011
Minúsculo relatório de poesia cordovesa
Minha performance ontem correu bem, apresentei minha peça baseada nas Soledades e tive o prazer de dividir o palco pela segunda vez com a espanhola Miriam Reyes e com o mexicano Eugenio Tisselli. A performance foi gravada, assim que for possível devo subir o vídeo para a Rede. Falarei mais a respeito da minha peça quando voltar a Berlim.
Por ora, enquanto descanso um pouco das caminhadas de hoje por Córdova no pátio da pensão charmosinha onde estou hospedado, penso um pouco sobre a cidade e sigo lendo os poetas cordoveses que têm acompanhado minha viagem. Este último mês estive mergulhado nas Soledades (1613) para compor minha performance vídeo-textual. Esta semana, antes de vir à cidade e agora durante minha estada, passei a conviver com a poesia de outros cordoveses, alguns descobertos aqui, outros já companheiros de minha viagem biopoética, como a princesa Wallâda bint al-Mustakfî (994-1091):
Quando anoitecer espera pela minha visita
pois a noite é quem mais guarda segredo.
O que sinto por ti é tal que se fosse o Sol, não nascia,
e a lua cheia não se erguia e as estrelas deixavam de girar.
ترقّب إذا جنّ الظلم زيارتـــــــــــــي __ فإنّي رأيت الليل أكتم للســـــــرّ
وَب منك ما لو كانَ بالشمسِ ل تلح __ وبالبدر ل يطلع وَبالنجم ل يسر
(Wallâda bint al-Mustakfî, tradução de Nádia Bentahar e André Simões, publicada originalmente na Revista Ítaca número 2)
A princesa Wallâda nasceu, viveu e compôs seus poemas em Córdova, na época em que a cidade foi provavelmente o maior centro cultural da Europa, capital do al-Ândalus. A princesa escandalizou a época ao manter uma relação amorosa com o jovem poeta Ibn Zaidûn (1003 - 1071), uma década mais jovem. Ele se tornaria um dos maiores poetas do al-Ândalus. Ibn Zaidûn por sua vez imortalizou Wallâda em seus versos, e a relação entre os dois poetas se tornaria matéria lendária para outros poetas. O fim do amor, como sempre, não foi dos melhores. Zaidún alcançou o posto de vizir, mas sua relação com Wallâda não era vista com bons olhos e o poeta caiu em desgraça. Talvez mostrando que relações amorosas não mudam tanto, os poemas de amor entre ambos se transformariam em sátiras ferozes. Ao ser substituído por outro homem na cama da princesa-poeta, Ibn Zaidún escreveu os versos abaixo, que mostro em versão minha a partir da tradução castelhana:
Me censurais que ele me substitua
nos afetos daquela a quem amo;
mas não há nisso desonra alguma:
ela era um manjar delicioso
e sua melhor parte a mim coube,
o resto deixei para este rato.
(Ibn Zaidún, versão livre de Ricardo Domeneck a partir de uma tradução castelhana de Manuel Francisco Reina, Antología de la poesía andalusí).
Após passar o tempo que passei imerso no labirinto de signos peregrinos nas veredas tortuosas de hipérbatos das Soledades, enquanto caminhava pelas ruas de Córdova e pausava para ler seus poetas, os textos amorosos e então rancorosos de Wallâda e Zaidún, pareceu-me apropriado este alerta de Luís de Gôngara em um de meus sonetos favoritos:
La dulce boca que a gustar convida
un humor entre perlas distilado,
y a no invidiar aquel licor sagrado
que a Júpiter ministra el garzón de Ida,
amantes, no toquéis si queréis vida,
porque entre un labio y otro colorado
Amor está, de su veneno armado,
cual entre flor y flor sierpe escondida.
No os engañen las rosas, que a la Aurora
diréis que, aljofaradas y olorosas,
se le cayeron del purpúreo seno;
manzanas son de Tántalo y no rosas,
que después huyen del que incitan ahora,
y sólo del Amor queda el veneno.
(Luís de Gôngora, 1584)
Conversei muito sobre poesia com os curadores da exposição "Soledades 2.0", os amáveis Antonio Jesús Luna e José García Obrero. Perguntei a eles quem seria o mais respeitado poeta cordovês contemporâneo ainda vivo. Falaram-me então de Pablo García Baena (n. 1923), um dos últimos membros vivos do chamado Grupo Cántico dos anos 40. Os poetas do grupo esposaram uma poética de lírica pura, de linhagem mística, talvez ligada (aos meus olhos) ao trabalho de Juan Ramón Jiménez (1881 – 1958). Leia abaixo o poema "Todoslossantos", de Pablo García Baena, incluído em seu livro Antes que el tiempo acabe (1978):
Todoslossantos
Suena la noche, suena el cautiverio
tenebroso, cadenas arrastradas
por el mármol. Inician las maderas
y el metal la batalla de la orquesta,
la nublada obertura crece suave,
gotea la cera sobre el paño negro.
Si pudieras dormir. Agazapado
el volatín de los timbales salta,
ríe, te trae desnudo hasta la cama,
bufón de cresta roja, cascabeles.
Ya no puedes dormir. Estás conmigo,
ah, vana sombra, aparta tu ternura,
tu torrente de lágrimas: la grave
camelia del oboe se desangra.
Ahí está la mancha. Leve, asciende,
voces humanas, órgano, los tubos
plateados del álamo en el bosque
tienen tu voz. Apaga los blandones,
retira antifonarios. Barbitúricos,
dosis letal de fiebre y laberinto,
tu cabellera flota todavía
por amargos violines del insomnio.
Sube el fagot, el panteón cerrado
ilumina la ojiva de las arpas,
pabilos crujen junto al hueco oscuro.
Humo es el sauce y su atabal ceniza.
Bebe en mi corazón. Cómo estremecen
las lilas, las violas, las sonoras
cajas el ritmo marcan de latidos.
Vuélvete a la pared. Están los sueños
exhumando el espectro. Rosas abren
por las trompas. Estallan las carcasas
de primavera, besos, huellas fulgen.
Duerme. El velorio sigue de las flautas,
pavanas para un tiempo ya difunto,
barraganía inútil del recuerdo.
Trata-se de poesia lírica sofisticada e culta, como a de outros poetas do grupo, mas a muitos na Espanha (pelo que pude entender em certos artigos) o trabalho pareceria historicamente demasiado absenteísta – o país emergia da sangrenta Guerra Civil, que deixara mortos milhares (entre eles vários poetas importantes da década de 20), exilando tantos outros. Como não somos espanhóis, talvez possamos nos abster por completo desta polêmica. Pessoalmente, não por questão política mas por ter, ousaria dizer, apenas uma sensibilidade mais telúrica, confesso apreciar mais um poeta como o basco Gabriel Celaya (1911 – 1991), contemporâneo dos poetas ligados ao Grupo Cántico. Recomendo muitíssimo o trabalho de Celaya. Mas vários poemas de Baena dentre os que li nos últimos dias me pareceram mesmo muito bonitos. Pablo García Baena estava entre os mais jovens do grupo, que fora fundado por Ricardo Molina (1917 - 1968) e Juan Bernier (1911 - 1989). Outro deles, dentre os que pude ler nos últimos três dias, parece ser um pouco mais da minha laia: trata-se de Vicente Núñez (1926 - 2002). Gostei muito deste poema:
Puesta del sol
En tanto que de rosas
hacemos una piña...
San Juan de la Cruz
La cueva sin nadie que conocía el agua
y las espátulas de pizarra del mar contra las rocas
no eran una música más arriba,
o que provocasen siquiera frente a barcas de palo.
El frío del Altísimo,
tras la solar hoguera de los montes,
un silbido espeso derramó y palpitábamos.
«Ángeles son, y no contadas naves».
Y cuando lo decías,
sin ese esfuerzo que inutiliza el recuerdo,
un pecho tierno me brotó de repente:
ángeles son, dejados a su avío;
en tanto que de gozo se me apiñó la dicha.
(Vicente Núñez, do livro Poemas ancestrales, 1980)
Mas agora chego ao que me deixa mais feliz: descobrir um poeta contemporâneo cordovês de qualidade que é alguém praticamente de minha idade e que está escrevendo uma lírica amorosa com inteligência e sensibilidade, sagacidade e ironia que me parecem ligá-lo a um poeta como Ibn Zaidún: refiro-me a Pablo García Casado, que participou de uma mesa redonda durante o evento em que apresentei minha performance. Não conversamos. Mas os curadores da exposição e ciclo de performances me disseram: "se você quiser ler um cordovês contemporâneo, leia Pablo García Casado."
Eu o fiz e não me arrependi. Pablo García Casado nasceu em Córdova em 1972. Estreou em 1997 com o volume Las afueras, publicando depois El mapa de América (2001) e Dinero (2007). É do seu livro de estreia que saíram os poemas abaixo. Poemas de Pablo García Casado, extraídos de Las afueras (1997):
Las afueras
por más que se extiendan las ciudades hasta juntarse
unas con otras por más desengaños que el sexo la muerte
o las oposiciones nos deparen quedarán siempre las afueras
la oscuridad de los polígonos industriales la ineficacia
el ministerio de obras públicas por más que se empeñen
colectivos ciudadanos asociaciones de vecinos seguirán
amaneciendo los restos del amor en las afueras
§
Número seis
me besa me desnuda hace de mí lo que quiere
estoy borracha todo me da vueltas tengo que ir
al baño dos veces para no vomitarle encima
se marcha temprano a toda prisa no hay despedida
nota justificativa o teléfono de contacto sólo dudas
todos los hombres son príncipes a las cinco de la mañana
todas las putas son tú cuando despiertas y no hay nadie
§
parís, texas
por qué travis qué hay de esa oscura pregunta
por qué la casa en ruinas por qué él por qué ella
por qué el verano de mil novecientos setenta y uno
qué tuvo que pasar qué clase de química por qué
la huelga en el sector metalúrgico por qué el atasco
por qué llegaron rendidos y aún así se besaron
como si mi vida les fuera en ello
§
Dixán
por qué se secará tan lenta la ropa por qué persisten
las manchas de grasa de fruta y de tus labios
si dixán borra las manchas de una vez por todas
por qué la aspereza de las prendas la sequedad de su tacto
si pienso en tus manos en tu modo de mirarme de decirme
que por culpa del amor habrá que lavar las sábanas de nuevo
preguntas tristes tristes como todos los anuncios de detergente
y es que no encuentro mejor suavizante que tus manos
en esos bares supermercados desnudos de la noche
§
Ford
como un oso que despierta del letargo
nuestro ford va derritiendo la nieve del parabrisas
pongo las maletas en el asiento trasero repaso el mapa de carreteras
ahora llegas tú medio dormida
sin pintar sin arreglar rota por la noche pasada
una noche de preguntas de miedo de ropa que entra
y sale de los armarios una noche de nevera desconectada
pero hoy es distinto y te sientas a mi lado como antes cuando viajábamos sin prisa
a través de bosques y maizales en esas noches
de faros encendidos en busca del océano
el ford asciende lento por la colina
quiero viajar al sur al sur de todos los proyectos
.
.
.
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Um comentário:
Vielen Dank für die Texte von Pablo García Casado. Ich finde es unheimlich schmerzlich aber auch rührend (in a good way) wie in seinen Gedichten sich das Alltägliche und das Grausame zu einer äusserst zarten und subtilen aber gleichzeitig auch harten und erbarmungslosen Textur verflechten.
Me ha gustado mucho el concepto de esta entrada, he disfrutado de tu paseo por una topografía tanto geográfica como poética y subjetiva-interior (tuya) y de los nexos que estableces entre estos textos.
Fand die Beschreibung deiner peça (im Blog des Events zu sehen) auch sehr interessant.
Muchas gracias.
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