terça-feira, 12 de abril de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp

Sigo aqui com minha série de artigos sobre alguns poemas publicados na década passada, aqueles que me pareceram mais memoráveis dentre os que tive a sorte e alegria de ler. Após escrever sobre os poemas "sereia a sério", de Angélica Freitas (Pelotas, 1973), e "Miscasting", de Hilda Machado (1952 - 2007), dedico a postagem de hoje ao poema "Limite", de Juliana Krapp (Rio de Janeiro, 1980), seguido de alguns outros de sua autoria.


Alguns poemas memoráveis da última década: "Limite", de Juliana Krapp
ou Fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e língua


Dentre os poetas surgidos na década passada, a carioca Juliana Krapp sem dúvida produziu alguns dos textos que mais permaneceram em minha memória, gerando prazer e tensões. O que mais se pode pedir de um contemporâneo? Seus poemas, além do simples contentamento feliz da beleza que possuem, parecem-me textos tesos e cheios de implicações frutíferas. Vale dizer também que, especialmente dentre nós poetas sempre tão apressados em lançar ao mundo nossas palavras, a discrição da poeta carioca tem sido algo com que aprender. Nascida em 1980, Juliana Krapp publicou até o momento pouco mais de uma dezena de poemas, espalhados em revistas como Inimigo Rumor (a primeira a presentear-nos com eles) e Poesia Sempre. Em 2007, tivemos o prazer de contar com alguns inéditos seus no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co. e, em 2008, alguns destes poemas foram traduzidos para o castelhano por Cristian De Nápoli e publicados no dossiê de poesia contemporânea brasileira do importante Diário de Poesía, editado em Buenos Aires e Rosário, Argentina. Em 2009, muitos deles foram mais uma vez traduzidos ao castelhano, desta vez por Teresa Arijón, e incluídos na antologia espanhola Otra línea de fuego. Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas, com organização de Heloísa Buarque de Hollanda, reunindo quatorze autoras produzindo hoje no País, além da decisão, que a mim parece estranhíssima ainda que previsível, de incluir na antologia textos de Ana Cristina Cesar.

No Brasil, seu trabalho ainda não foi reunido em livro, para ansiedade de alguns de seus leitores, dos quais estou certo de não ser o único. Imagino ser uma decisão por sua já mencionada discrição, sei que há editores entre seus leitores, também de olhos arregalados como nós. Talvez seja o respeito a algum prazo ditado por sua integridade artística, falta de pressa, pressa, afinal de contas, para chegar aonde? Enquanto esperamos que seu livro de estreia saia, contamos na Rede com alguns de seus textos bonitos, dentre eles este com o qual gostaria de começar este artigo dedicado a seu trabalho.

O poema foi publicado pela primeira vez em 2006, texto com que Carlito Azevedo abriu a seção dedicada a Juliana Krapp em seu "Dossiê: 15 Novos Poetas", do número 18 da revista Inimigo Rumor.


Limite
Juliana Krapp

Sebe é um acúmulo de varas entretecidas
cerceando
por vezes sim por vezes não

eu sei
do esforço para persuadir
naturezas terríveis

simultaneamente
à graça dos perímetros
que permanecem estanques

(a dor de coabitar
tanto as frinchas quanto os
confinamentos)

Quando rarefeitos, os movimentos
aguardam mais do que a conclusão, preferem
o desdém e o resguardo
ou mesmo esse estalido
(um arquejo)
embalado
pelo embaraço hipnótico
das pequenas sombras

Somente as ventanias são de fato enamoradas
e apenas nelas alijam-se
as imundícias mais profundas

como somente os ramos
estraçalham-se e engravidam-se
num único carretel de músculos em escombros

(um aparelho de tensões
alimentado pelo ritmo
dos sumidouros)




Não é trabalho de fácil entrega, aproximar-se de um texto como este de Juliana Krapp requer toda a atenção est-É-tica que possuímos, não por qualquer hermetismo, mas porque sua poesia parece tão clara naquilo que Jacques Roubaud definiria como o "não-parafraseável". Minha primeira vontade de exegese para um poema como este é simplesmente relê-lo, repeti-lo, reproduzi-lo, uma vez mais e outra, dizer: "caro leitor, a exegese deste poema é o próprio poema". Parece-me bastante preciso em sua textualidade, mas aqui não compete falar tanto em concretude ou materialidade, pois não há qualquer mera teatralização visual da linguagem. O que há é uma clareza textual lúcida em sua opacidade, equilibrada entre transparência e não-transparência do signo - não creio que encontraria descrição mais concisa para o que tento chamar aqui de textualidade.

Não temos como saber em que momento Juliana Krapp escolheu o título do poema: se com ele começou, ou se ele pareceu-lhe o mais apropriado ao terminar sua escrita. Não importa muito: como leitores, ao iniciarmos nossa experiência do poema, é como se o texto a seguir fosse uma espécie de desdobramento semântico do seu título, limite, que passa a ser muito menos rótulo ou bula que embrião. Após terminar a leitura do poema, não se consegue imaginá-lo com outro título, uma instância de sua precisão.

A poeta passa então a uma definição própria de "sebe". Em alguns dicionários nos quais busquei a palavra, encontrei entradas muito parecidas: "1. Tapume vegetal para impedir a entrada em terras cultivadas. 2. Tabique; taipa. 3. Tapume de varas delgadas com que se cerca o tabuleiro do carro e se ampara a carga". A elas, Juliana Krapp introduz desde o princípio uma incerteza deste cercear, uma indeterminação: "Sebe é um acúmulo de varas entretecidas / cerceando / por vezes sim por vezes não". Alguém com a mentalidade crítico-poética presa no tempo, lá pelos idos de 1922, poderia protestar e dizer: "mas sebe não é o mesmo que cerca? Por que usar então sebe?". Ora, meu caro, a única resposta educada seria: porque não são exatamente a mesma coisa. Trata-se de um detalhe de precisão. Não é o preciosismo que se vê por aí, nem exotismo. É precisão que vê elementos importantes na palavra "sebe", ligados intrinsecamente ao campo semântico do poema: seu entretecer-se e entrelaçar-se são essenciais aqui. Além disso e talvez mais importante, um dos dicionários nos lembra que sebe é uma cerca viva, que pode ser um "renque cerrado de árvores ou arbustos". Esse aspecto é importante para todo o poema, que poderia mostrar-se como uma fenomenologia das transações entre indivíduo e mundo através da pele e através da língua. Um processo de individuação como experiência do limite.

Em seu estudo Eros The Bittersweet (1986), a poeta canadense Anne Carson (n. 1950) descreve como esta experiência do limite é essencial para a compreensão da experiência lírica, ligada a Eros: a experiência do limite que individualiza uma palavra em meio ao fluxo sonoro da fala, que individualiza o ser humano em meio ao contato com os outros, que individualiza, até mesmo, a vogal de sua consoante, naquilo que Carson argumenta ser o gênio da revolução cultural representada pelo alfabeto grego. Limites sonoros e visuais que nos dão as letras do alfabeto, as palavras específicas em uma sentença. Também a nossa pele mostrando-nos onde começamos e nos encerramos, nossa fronteira que é contacto com o mundo. É como se o poema "Limite", de Juliana Krapp, reencenasse este drama da experiência dos limites e fronteiras, e, assim, também do que separa o eu do outro, o que faz de nossa consciência algo a não se esparramar pelo ar do mundo, experiência pessoal contida pela própria pele. O poema de Krapp é, em minha opinião, tanto erotizado quanto angustiante, neste sentido, em suas atas de sedução. Ao escrever "eu sei / do esforço para persuadir / naturezas terríveis", não sabemos se a poeta refere-se à experiência da aprendizagem pessoal ou da sedução do outro. Se a poeta aqui fala de si ou de outrem. Há um fluxo entre concreção e abstração admirável no poema, como na sequência "simultaneamente / à graça dos perímetros / que permanecem estanques", que é então justaposta a "(a dor de coabitar / tanto as frinchas quanto os / confinamentos)". Nada é acidental aqui: a escolha de um advérbio como "simultaneamente" está ligada a toda esta experiência do ser como uma cidade sitiada, de ser, ao mesmo tempo, o que protege e o que constringe. Frinchas para o escape do confinamento e para a própria formação do confinamento, frincha pela qual se escapa, frincha que aperta - na qual se coabita. Aqui, mais uma vez, a precisão, a lucidez da poeta na escolha do prefixo.

A imagem do vento como uma moção erotizada é muito feliz, sendo uma das poucas manifestações do não-estanque no poema, dando-nos o que cobre distâncias, une separações, atravessa limites: "Somente as ventanias são de fato enamoradas", pois realizam o movimento de suprir faltas entre espaços abertos. "Limite" reencena, parece-me, o que Carlos Drummond de Andrade chamou de "a falta que ama".

As justaposições são importantes, pois há um trabalho sintático intrigante no poema. Sem ser exatamente (ou talvez devesse dizer "sem ser exageradamente") paratática, na sintaxe dos textos de Juliana Krapp há um fluxo de interrupções, de silêncios e espaços, sem no entanto destruir a organicidade do texto. São elipses que não rendem desconjuntado o poema, pois há na autora clareza de pensamento e apresentação. O uso da elipse não se faz presente apenas pelo carnaval bobo do antidiscursivo que mal consegue terminar um pensamento.

A sonoridade do texto é também interessante: Juliana Krapp não usa qualquer técnica obviamente cantável - não há rima, não há assonância ou aliteração marcadas. Mas isso não é descuido com este aspecto da composição. O leitor (pelo menos é o meu caso) sente o texto mesmo assim como composição tesa. Isso me intrigou, e, ao pensar sobre este aspecto do poema, pareceu-me como se a poeta praticasse uma espécie de atonalidade em escrita. Como se o equilíbrio e harmonia se dessem justamente pela não-repetição, por uma variegação de sons.

O texto recorre basicamente à metonímia e haveria quase uma desmetaforização se não fosse por um verso como "num único carretel de músculos em escombros", que mesmo assim parece equilibrar-se na corda bamba mas tesa entre metafórico e metonímico. No entanto, nada há de prosaísmo no texto.

Também não são como os "sintagmas que se escandem completos" de Murilo Mendes nas palavras de Haroldo de Campos, mas não apenas pelo uso inteligente que Juliana Krapp faz do enjambement. A surpresa que ela doa ao leitor que segue seu pensamento vem pela clareza, ainda que elíptica, de suas observações, de seu pensamento. Em minha opinião, ainda que se possa reclamar o texto para a estirpe dos poetas que dançam entre pensamentos, os da logopeia, parece-me haver um equilíbrio entre imagem, som e pensamento.

Sua poesia também me parece admirável na maneira como objetividade e subjetividade se entrelaçam. Mas, para comentar isso, gostaria de chamar a atenção do leitor para outro poema de Juliana Krapp, intitulado "Av. Brasil" e publicado originalmente no número 20 da revista Poesia Sempre.


av. brasil

o que se salva aqui são apenas
os elementos construtivos:
condutores singelos
traço um para três
cornija

uma secura de mão doente
essa carne nunca sabe
o que é degradado e o que é
desterro
mas impenitentes as platibandas
arregaçam
o que reluz: intempéries
tomadas de assalto
pela ferocidade branca
de um clique




Em outros poetas dos últimos 25 anos, ligados à busca da objetividade apregoada por ótimos poetas como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, teríamos uma descrição desapaixonada do ambiente urbano da Avenida Brasil no Rio de Janeiro, feita por um eu escondido. Mas em poemas de Juliana Krapp é difícil falar sobre objetividade ou subjetividade, porque nos poemas dela eles se confundem. Há uma espécie de mundeulinguagem, se me permitem o neologismo para expressar como sinto sua junção expressiva do indivíduo apreendendo a urbe por sua língua. Um poema como "av. brasil" não é mera descrição da paisagem. Ali, a paisagem, a linguagem e a percepção da poeta são uma coisa só. Gosto de observar como seus poemas poderiam dar-nos bons exemplos para a investigação sobre o que acontece entre as palavras, desposando para isso tanto semântica como sintaxe.

Outro poema seu que parte de um topônimo:


ladeira da glória
Juliana Krapp


ele se erige como um pergaminho
em aliciante embaçamento
fazendo supor
que toda água já nasce escaldante
e, ainda assim, vibra,
a marteladas

hoje acordei
embalada por imperativos. mas foi ele quem inventou
esse cansaço labiríntico

e me trouxe aqui, com
a boca inflamada pela pressa
nos dentes, uma certa apreensão
— não por mordidas, mas por hálitos
categóricos

nele a ossatura se escancara a ponto de romper
com um estrondo a própria voz
e seu olhar apenas lembra
dobradiças, rosetas
cremones
e toda a sorte
de ferragens maliciosas

mas
entre nós estariam encerrados os dilemas
e as alíquotas
caso não houvesse
no trajeto do plano-
elevado que leva a essa igreja
imaculada de tão breve (pavimentos tristes,
vidros urgentes)
um esgotamento
ávido por pontas
desenraizado de cálculos
fortuitamente lançado sobre a baía



O vocabulário da poeta é sofisticado e foge com frequência do prosaico, mas nada tem a ver com o decadentismo exotizante típico de fim-de-século de certos poetas que se entregam a preciosismos ou uma poética randômica, misturando polissílabos exóticos caçados ao dicionário para soarem "poéticos", ou para insistir em exilar as funções poética e referencial da linguagem, como se estas fossem estanques e inconciliáveis. A diferença aqui reside entre o preciso e o precioso. O vocabulário de Juliana Krapp parece-me ditado simplesmente pela precisão de sua observação. Mimetiza e transfigura, como a poesia fez desde Safo, sem temer a realidade ou criar uma oposição entre esta e sua linguagem. Mas a precisão de linguagem, quando falamos sobre o trabalho poético, obviamente não é a que esperamos de um manual de instruções. Na poesia, a precisão da linguagem é algo inquinada.

Sim, sua poesia me parece sofisticada, mas não se trata de qualquer linguagem hermética ou aristocrática. Sua poesia requer atenção, sua leveza é tesa, densa. A alguns poderá parecer tentador ligá-la à poética pura dos neosimbolistas brasileiros. Se este for o caso, sua linguagem a conecta com poetas como Henriqueta Lisboa, mas não a mística dos livros da década de 40 e sim a autora que se agitava entre símbolo e signo num livro como Além da imagem (1963), ou a Orides Fontela dos eucaliptos "elásticos e elípticos", simbólicos e semióticos.

Em minha leitura muito pessoal da poesia contemporânea, que a alguns parecerá demasiado idiossincrática, sua poesia é uma instância do que venho chamando de "lírica analítica", de um eu extremamente desperto e consciente, com uma linguagem que não confia mais na mera naturalidade da voz própria, mas que se mostra sábia de seus artifícios. Creio reconhecer isso em poetas como Marcos Siscar (n. 1964), em Marília Garcia (n. 1979), em alguns outros.

Sobre o natural, eis o que a poeta pareceria ter a dizer:


in natura
Juliana Krapp


chegou a hora da prestação de contas:
às apalpadelas, de cor, ligeiro
gomo de amianto um tigre
dentro de um quadrado

à discreta contração de lábios não temos
sequer lastro de linguagem sequer
réplica e sua pouca carniça
— ao fundo só o desejo de orquidários
e uma perturbação de pernas

traiçoeira: uma única versão
que não fareje em seu reverso um último
recurso para a assepsia
mortal — rente aos pés a fabriqueta
formula estilhaços de atalhos presa
escandinava os olhos torpes e somente
o veludo cinza adentro do rasgo
do nome — esse




Com Juliana Krapp, aprendo sobre a discrição do que se constrói em silêncio e calma. Sobre como não parece ser saudável querer separar mundo e linguagem dentro de nós mesmos. Autora de poemas memoráveis, é minha sorte e alegria ser seu contemporâneo, como de alguns outros poetas hoje em atividade no país, sobre os quais em breve seguirei escrevendo. Espero que alguns de vocês assim o vejam também.



POEMAS DE JULIANA KRAPP

a estrutura íntima das horas


Acontece apenas no mar
de concreto protendido à beira
da estrada e apenas quando a estrada
tem algo de fogo
ensurdecedor:

um lagarto, osso
de candura, rompe
a respiração da tarde, penetra
em todas as substâncias — as rochosas
e as celestes, os líquidos escuros e
sua pantomima de espelhos

Enquanto tudo ao seu redor é ênfase
(profusão de tecidos
lancinantes),
o seu avesso
é puro vidro
ardoroso: quer partir
entreabrir-se em sulcos
lentos, desdobráveis

Você, ao volante, não percebe
mas isso tudo é como nós dois,
na Cinelândia, às cinco horas
de uma tarde de verão, com uma
caixa de alfajores e vontade de café, quando
há no ar algo de concha,
estiramento, zona cega: a experiência
do precipício


§

enseada

o ipê é como um ferro ele disse
as unhas pensas
no ardume da anunciação

sobre o rochedo
as têmporas afogueadas e o flagrante
da mandíbula irreparável do fim
da tarde (hóstia
em terracota)

nessa praia
as ondas enevoadas arrebentam o branco
........................os barcos
desabotoam a precisão das linhas
............e as ilhotas, desgrenhadas
............atracam visgos de luz

.......aqui, onde

a barbárie já nasce seca
................em seus olhos



§


Pretexto

o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores

de tudo resta sempre o seu mistério virgem
a beleza de íris os ares encardidos a córnea
tal qual um diadema espavorido
sobre nossas cabeças

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia
e travou o zíper sobre a pele



§


Punção

campanários. isso sim é uma casa
não aqui
onde os objetos sequer conspiram
onde a pele não se reconhece pele
e não se engendra cápsula de outra cápsula
posse de um único mistério
com seu agravo inabalável. uma casa

requer formas como dormideiras
que se recolham à carícia quando todas as carícias
são íntimas é tão surrado reconhecer
nas paredes que a única propriedade possível
é a fuga e mais ainda o sono profundo e
que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva
não passam de sentinelas
resfolegando seu passo de partida

esta casa
não é minha: não se alcança daqui o brejo
afetuoso ao fundo de todas as coisas
não se vê o fosso
translúcido extorquindo das frestas
as esquadrias

tampouco há cantigas
emudecedoras
quando as horas se constrangem ao toque
ou ao contato do antebraço
com o repuxo invisível do acrílico

nesta casa
(assim como em todas as outras)
só resiste a ânsia de um veneno
afogado
em seu desleixo por lãs e puxadores
um veneno tão debilitado e circunstante
inabitável
quanto a certeza de que há ainda
no mundo tanto tremor
por tão pouca terra



§


propriedade

como artifícios temos apenas as asperezas
a corpulência cabível em pavios desfigurados
ou os 28 dias necessários
para que se cure
o concreto

carregamos
nas extremidades fissuras
irreparáveis
e, nos olhos,
a cor mirabolante dos abatedouros

mesmo assim

as corredeiras
as sirenes os personagens
estão ao seu dispor

e ainda esse aguaceiro

onde o entreaberto é uma doçura
de tão fundo



§


reta

um carro de praça como uma jaula
água
da qual preciso
para partir. vê-lo — homem
........................embalsamável —
.......encouraçado pelas grades em flor
faro
na alameda escura
a dizer: aqui jaz
um coração abominável um
álibi amantíssimo
para essas dores
do desejo
........................partir
.....exige animais vivos (o sangue
................secreto
.........de uma ave noturna)
enquanto o ar reclama
as singraduras
de uma música
meramente informativa



§


armazéns


seria apenas a ausência impertinente de arredores
ou sua respiração de treva que oscila e foge
por debaixo da porta (a beleza
inteiramente desamparada)? mas este
cais de porto
é, de fato, uma chave.
suas nervuras e estalos
como fábulas
úmidas. (os agentes narrativos são incapazes
de identificar a estiagem
e o sinal dos tempos
nas amuradas). e ainda esta dor
selvagem ancorada às turbinas e granéis
ao maquinário rasgado em itinerários
de vapores e conspirações. a meticulosa
delicadeza da noite entregue
toda ao gesto de içar: originalíssimo
e escravo das circunstâncias.
(neste instante você segura a minha mão
e a põe contra o peito, temendo
a face invisível das embarcações) a água
que cresce como um germe negro ao redor, como
um calafrio inédito um
verbo inédito uma
presença quebradiça.
(mas o que é quebradiço
está morto? ou reverbera apenas
as manchas quentes de sangue no carpete?) você me diz
que sobre toda música incide uma renúncia
e mesmo este apito e enquanto diz
o horizonte reconhecível
assola de frios a linguagem
(é preciso, no entanto, reconhecê-lo em surdina
como se reconhecem nos álcoois
as rajadas de acalanto)



§


poética

o que é ferruginoso nunca será
corrosivo. quantas ideias
podem perturbar
esse lago sem vento? frutas
.............na superfície
em desacato
à delicadeza vamos
embora daqui você disse
....não
ainda há reparos a fazer, ainda
o lobo
que habita o fosso do poema
..................veja:
se contraio os joelhos
contra o coração
crio uma ponte
imprescindível — uma emboscada
para feras de graus variados, por isso
.............insisto
.............o ineditismo só cabe
...................no factual, este alagadiço
ter em casa um corpo
tão sentimental a ruir
.........dificulta amplamente
.....a execução das tarefas
..................respire:
....ar pródigo de terror
.............agora sim
.........vamos
deixar escancarada
.......a cena do crime
— sulco escarlate
...entre as pedrarias



§


fevereiro


Não seria mais possível o requinte do aço
escovado a tristeza mais ordinária a espessura
de um fôlego o atrito
.....¾ borracha irreversível ¾
.....Mas seria possível que
.....tendendo ao imagético manchado de
.....ruiva contemplação a manhã
ainda crispada de brechas

(uma oratória
imediatamente predisposta
ao rigor dos acontecimentos)

trouxesse as mãos em concha o sal
entredentes e uma vertigem
à qual se pressentisse a lógica desmesurada a tênue
miopia pousada no ombro tal qual uma fera
aspergindo o soro primeiro a fruta infindável a sede
que não tem mais para onde ir




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Um comentário:

Bruno de Abreu disse...

juliana krapp não podia faltar, hem... toda vez que leio gosto mais. e adorei, também, seus comentários acerca da poética dela, foram uma espécie de "iluminação" para a minha. OBRIGADO!

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