quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
Bas Jan Ader, figuras e o oceano
Descobri o trabalho de Bas Jan Ader em 2004. Havia acabado de fechar a coletânea que viria a ser publicada como Carta aos anfíbios, no ano seguinte, e havia composto apenas dois fragmentos de um trabalho que ainda não sabia que viria a ser o poema-em-série "Dedicatória dos joelhos", que abre meu segundo livro, a cadela sem Logos.
Num mesmo dia, creio que em março de 2004, leria numa livraria da Avenida Paulista a carta de Emily Dickinson na qual, após relatar pormenores cotidianos a uma sobrinha, ela a fecha com o seguinte pedido de desculpas: "Forgive me the personality."; e leria em um livro de arte contemporânea sobre o artista holandês Ban Jan Ader (1942 - 1975), que desaparecera no Oceano Atlântico durante a tentativa de atravessá-lo como parte de sua performance intitulada "In Search of the Miraculous."
Esse uso (modo de usar) da palavra personality, nesse contexto ("O significado de uma palavra é seu uso na língua", escreveu Wittgenstein nas Philosophische Untersuchungen), e o desaparecimento de Ader em pleno oceano durante uma performance com aquele nome ("em busca do miraculoso"!!!), tornar-se-iam duas das muitas figuras estruturais a guiarem a composição de todo o poema-em-série (figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados).
falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com "forgive
me the personality"
(a cadela sem Logos, SP: Cosac Naify, 2007)
Para mim, obcecado com a questão da historicidade do processo poético, lendo naquele momento a Mircea Eliade, Ernst Cassirer e Sören Kierkegaard, o conceito de figura parecia-me uma maneira de salvaguardar o poético, em que o metafórico, em proeminência nos últimos séculos, já não funcionava efetivamente pelo questionamento das representações miméticas e das transcendências na linguagem, por que passava a cultura no mundo ocidental. Como disse em um conversa com Carlito Azevedo em 2004: "Essa crença na Simpatia do Todo, na ligação cósmica entre as coisas, é o arcabouço cultural que gerou e fundamentou a metáfora ao longo dos séculos. O corpo entra não como personagem, mas como veículo da minha insistência na tentativa de quebrar o logocentrismo da poesia brasileira principal, além da rejeição de qualquer forma de transcendência que implique sublimação. Waldrop recarregada: `I love getting the body into my writing, especially to subvert ideas like pure thought.' E uma espécie de cristianismo inescapável (como minha contingência cultural) elevado a método. A descoberta da noção de FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento (a parúsia?) que revelaria seus significados, além da noção de intervenção do sagrado no profano (o verbo feito carne, a história feita mito), foram uma influência fundamental no desenvolvimento do livro."
Bas Jan Ader inCORPOrava tais questionamentos em sua obra, baseada no corporal e ao mesmo tempo no mítico, com suas "quedas" e "travessias":
Há outro aspecto da obra de Bas Jan Ader que, naquele momento, parecia-me pessoalmente muito importante e chamava a minha atenção: como eu estava decidido a questionar a noção de "objetividade" na poesia-crítica brasileira que, em minha opinião, mascarava uma poética extremamente "monolítico-subjetiva", mas inconsciente de suas próprias constrições ideológicas e condicionamentos individuais, o uso de Bas Jan Ader de seu próprio corpo e biografia, num aparente "narcisismo" (já fui admoestado em textos críticos sobre meu trabalho ou em diálogos com amigos sobre um possível "subjetivismo narcisista" em minha poesia, por usar meu próprio corpo em meus vídeos ou "autobiografia" em meus textos) mostrava o que para mim era e é uma est-É-tica que exige o uso apenas daquilo que o próprio corpo do artista ou poeta pode produzir e prover, como vejo também nas obras de Eva Hesse e José Leonilson: uma espécie de biominimalismo.
Na mesma conversa com Carlito Azevedo, eu tentei elaborar a idéia desta maneira: "Objetividade, mas sem a hipocrisia de crer-se e fingir-se neutro, invisível, como se a voz não saísse da minha garganta, como se eu próprio pudesse ouvi-la pura, como se ela não ressoasse dentro da minha caixa craniana e condicionasse minha audição. O problema da maioria dos poetas obcecados com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das dicotomias interno/externo, sujeito/objeto, e sua concentração no que crêem ser o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas descritivos) depende de uma espécie de unidade de percepção que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, que eles desonestamente camuflam."
(Bas Jan Ader, "I am too sad to tell you", 1971)
Em 1975, Bas Jan Ader decide encerrar seu trabalho conhecido como "In Search of the Miraculous" com a travessia ritual do Oceano Atlântico no menor barco que até então intentara tal viagem. O artista desapareceu em alto mar... seu barco foi encontrado na costa da Irlanda. Seu corpo jamais foi encontrado. Vale lembrar que nos escritos de Eliade e Cassirer, a "água" e o "oceano" sempre aparecem como símbolos do caos original, de onde tudo nasce... daí, por exemplo, a prática cristã do batismo como morte e renascimento.
Naquele momento de descoberta de sua história, eu já questionava a possibilidade de seguir trabalhando com imagens e metáforas na poesia, e decidira guiar minha escrita pela metonímia e sinédoque, por acreditar que estas eram mais flexíveis e adaptáveis à mentalidade de cada leitor, enquanto a metáfora, de certa forma, pressupõe o "transcendente", que está em descrédito no contemporâneo. Diante deste desaparecimento in search of the miraculous, que metáfora trans-histórica poderia competir com tal figura histórica? É inevitável ou mesmo real esta competição?
difícil convencer todas
as partes do meu corpo
do sentido
de uma ação e
assim pôr em
movimento as roldanas
da corpulência em
direção ao
abstrato cruzar
o oceano tantas
vezes umedece
os propósitos faz
querer uma cama
no fundo
não não
é irônico
que bas jan ader in search
of the miraculous afunde
desapareça em meio
oceano
(a cadela sem Logos, SP: Cosac Naify, 2007)
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