Meu caro Érico,
nós dois sabemos que não encerraremos este debate que, de uma forma ou de outra, se repete há séculos. Iniciei, com "O que é est-É-tica", uma série de artigos em que tento aclarar meus parâmetros e princípios. Não tenho a menor intenção de convencer você ou qualquer outro. É minha noção de honestidade crítica, e creio segui-la nos últimos artigos: aclarar estes parâmetros e só então fazer meus juízos de valor. Não baseio meu trabalho em conceitos que são meramente
taken for granted por já estarem numa suposta tradição unívoca.
Quando você declarou que respondi de forma "cabal" à sua argumentação, após meu artigo em que trato de alguns sonetos, incluindo um dos seus textos, em momento nenhum compreendi sua reação como uma concordância total comigo ou que eu tivesse "vencido" o debate. O debate não é apenas com você e não terá vencedores. Cri que sua reação demonstrava simplesmente que você havia finalmente compreendido minha posição, com a qual não espero, nem por um segundo, que você concorde. No entanto, em seu último artigo, você se propõe o "resumo" de minha argumentação, levada a cabo em 4 longos artigos. Não me incomoda que você queira "resumir" meu trabalho, mas isso acabou gerando certa confusão e não creio que você o tenha feito de forma correta. Tentarei ser breve, o que sempre me resulta difícil:
Não defendo uma noção de contextualização histórica que transforme forma poética em mero espelho de seu contexto sócio-cultural. Acredito que poemas são estruturas altamente complexas, envolvendo o que se convenciona chamar de forma, mas também sua função dentro de um contexto específico. No entanto, é impossível saber a todo momento em que direção apontam as setas da influência entre forma poética e contexto histórico: a relação é complexa, de espelhamento mas também de transformação mútuas, de um sobre o outro. Acredito, porém, que a atitude neoclássica toma os aspectos mais superficiais de uma "forma poética" e, em seu anseio por eternidade e pavor dos efeitos do fluxo histórico sobre estas mesmas formas (com o gradual nível inevitável de abstração que isso impõe sobre sua linguagem poética), transforma-a em fórmula, mera teatralização visual e matemática do que era uma estrutura mais complexa, em minha opinião.
Se o conceito de forma fixa parte, porém, de um inventor, que estabelece um parâmetro de qualidade, é necessário analisar a estrutura completa de sua invenção e o uso subsequente da forma em outros contextos, já que esta forma, obviamente, será transformada pelo contexto de cada novo uso. Você tem toda razão ao dizer que cada contexto precisa ser analisado, apenas erra ao não perceber que o fiz em meu texto. Jamais defendi, porém, este tipo de contextualização arqueológica. Aqui entra minha defesa sincrônica de contextualização histórica: não quero apenas entender a época em que o poema foi composto, desculpando o poeta por qualquer falha, mas estabelecer um diálogo entre a época do poeta e a minha, buscando saber o que pode ser usado em nosso momento histórico e como, não apenas num recurso à autoridade da tradição, muito menos tratando-o como caixa de ferramentas da qual posso tomar qualquer forma histórica.
Você insinua exatamente aquilo que meu conceito de contextualização nega. Tentei deixar claro que não defendo um neodeterminismo, que não defendo algum tipo de teleologia sociológica entre contexto político-cultural e forma artística, como se uma fosse mero reflexo da outra, e é exatamente isso que você propõe em seu "resumo" de minha argumentação. O que analisei em meu texto é a estrutura completa da sextina de Arnaut Daniel em seu aspecto formal, funcional e contextual, como uma estrutura complexa, muito além da figura simplista de forma como mera contagem de palavras e versos. Argumentei que a sextina deixa de ser esta estrutura formal complexa para se transformar em fórmula, quanto mais se distancia da sua estrutura original, de sua forma/função/contexto, para transformar-se em contagem de caracteres. Você ignorou isso para transformar minha argumentação em alguma espécie de louvor vanguardista e romântico de uma originalidade qualquer. É interessante que no mesmo dia em que você publicava seu questionamento sobre meu último artigo, eu escrevia, na introdução ao ensaio de Rodrigo Damasceno sobre Raimbaut de Vaqueiras, na Modo de Usar & Co., "que nosso conceito de vanguarda poderia ser reavaliado, substituindo certa mentalidade de tendência romântica, que busca rupturas dentro de uma fictícia tradição unívoca, em suposta evolução linear, por uma visão da história da poesia como a recorrência de problemas est-É-ticos e suas soluções formais, mostrando sucessivas "modernidades" a exigirem "atualizações", com as religações simultâneas e paralelas a práticas negligenciadas por uma determinada narrativa crítica hegemônica. O trabalho dos trovadores ainda é uma das fontes mais frutíferas para uma renovação poética e busca de soluções formais novas/necessárias para os dias de hoje."
Não quero vedar o uso das tais de formas fixas, mas insisto que seu uso exige um conhecimento do contexto em que foram criadas e sua possível funcionalidade em nosso próprio contexto. Não se trata, insisto, de arqueologia histórico-sociológica, mas de discernimento crítido da estrutra completa e complexa de uma forma poética em seu contexto e SUA FUNCIONALIDADE EM NOSSO CONTEXTO.
Você erra ao afirmar que eu não compreendo o contexto de Camões. Minha compreensão está explícita em meu texto, ainda que minha discordância de certas escolhas sugira um tom negativo ao falar sobre os parâmetros hegemônicos na Renascença. Conheço o que você chama "padrões de composição, recepção e crítica de poesia" na Renascenca, suas diferenças em relação à poesia medieval, o desejo de "erudição, 'disciplina gramatical', e convenções retóricas que remetiam à Antigüidade greco-latina", sendo isso o "selo de qualidade, digamos, de um poema". Neste momento, assim como em sua insinuação de que eu não pareço compreender os períodos que você chama de clássicos (neoclássicos, na verdade), é você quem demonstra não parecer compreender que alguém possa simplesmente DISCORDAR destas escolhas. Há uma diferença entre desentender e discordar. Passei, portanto, a aclarar os motivos por que discordo delas.
Compreendo perfeitamente até mesmo a necessidade, por parte dos poetas neoclássicos, do uso de uma linguagem abstrata, sem marcações temporais, contextuais. É totalmente coerente com a est-É-tica neoclássica. Angustiados com o efeito que a passagem do tempo parece ter sobre os textos poéticos, eles buscam em um grau mais elevado de abstração a possível fuga deste efeito temporal. Daí o pavor de qualquer noção de contextualização, já que estes poetas almejam a eternidade. Não é uma característica exclusiva dos períodos neoclássicos. Vemos isso também entre certos simbolistas. Hugh Kenner escreveu que se tratava da busca de uma linguagem que estivesse imune ao envelhecimento histórico, ou que já tivesse, de certa forma, sofrido os efeitos possíveis do tempo.
É interessante que parece ocorrer uma inversão de papéis pois, de repente, você se põe a defender Camões apenas por seu "contexto". Minha argumentação partiu, em primeiro lugar, dos textos. O que você chama de engenhosidade, nos parâmetros renascentistas, entre os neoclássicos, fique claro, parece-me mera engenhosidade retórica, não poética. A engenhosidade de Camões, naquela sextina, que é uma de suas melhores, é fortemente retórica, ele transforma uma composição tão POETICAMENTE engenhosa como a sextina de Arnaut Daniel em veículo para a engenhosidade RETÓRICA de sua época. A diferença está nos textos, no trabalho formal dos dois poetas. Engenhosidade retórica contra engenhosidade poética não é "privilégio" dos neoclássicos renascentistas. Basta ler Alexander Pope ou William Wordsworth, poetas que você talvez aprecie. Ou, para citar um exemplo de poeta contemporâneo que frequentemente confunde engenhosidade retórica com engenhosidade poética, poderíamos aqui, mais uma vez, mencionar Bruno Tolentino, a quem você não perde a oportunidade de louvar. Engenhosidade retórica em versos não caracteriza, para mim, engenhosidade poética.
Veja bem, em meu texto, eu escrevo que "em Camões, já vemos a sextina transformar-se em veículo para a retórica renascentista, no uso que Camões faz de sua rede de repetições." O que talvez tenha incomodado você foi meu tom de sutil invectiva. Sim, porque a preponderância da retórica na poética hegemônica da época me parece um declínio da poética mais complexa do período medieval. Engenhosidade é questão de perspectiva.
Portanto, Érico, compreendo que poetas, em diversos momentos históricos, escolham crer que "a relevância de um texto está nas alusões eruditas, no manejo e correção do léxico e da sintaxe, no engenho retórico", períodos que você chama de "deliberadamente 'beletristas', em que a relação de um poeta com as demandas da experiência concreta, histórica ou biofísica que seja, é fortemente mediada por toda a sorte de convenções."
Permita-me, porém, discordar desta escolha e expressar minha discordância de forma clara, sem esperar que qualquer um que a adota venha a mudar sua posição apenas por minha causa. Apenas ouso afirmar o seguinte: que um período ESCOLHA produzir uma poesia beletrista, bacharelesca e retórica é, em minha humilde opinião, uma tristeza, e também acredito que não precisemos desta poesia hoje. Não estou insinuando que alguém deixe de ler os poetas neoclássicos de várias épocas, se isso os faz feliz. Pessoalmente, prefiro os que demonstram uma relação mais crítica com a tradição, dialogando com sua própria época, sabendo o que permanece funcional ou não, sem furtar-se ao debate histórico de seu tempo, simplesmente adotando parâmetros genéricos, com o recurso à "autoridade da tradição". Estando aqui a criticar parâmetros neoclássicos, é engraçado que você me sugira a leitura de Virgílio. Ler Virgílio, meu caro, apenas me convence ainda mais de minha "posição anti-neo". Posso ler as "Bucólicas" de Virgílio, mas não me esqueço de um certo poeta contemporâneo que, em 2008, publicou uma "Bucólica", mais tarde chamada de "Quatro estudos neoclássicos", em que, demonstrando consciência histórica e contextual de sua impossibilidade de imitar Virgílio hoje, escreve:
"Não há faias na
América do Sul.
As que eu
quero, nem no
Mediterrâneo mais.
Estão abstratas no
poema de
Virgílio,
são refúgio da
sombra,
desafio,
abismo."
Reconhece os versos? Foram escritos por Érico Nogueira, que demonstra em alguns momentos, digo com todo o respeito, mais consciência histórica em sua poesia do que em sua crítica. Mas eu não estava meramente querendo criar uma hierarquia, que a você não parece "cabível" ou pertinente. No entanto, numa das contradições de seu texto, você passa imediatamente a criar pares hierárquicos, segundo, obviamente, a sua própria ideologia da percepção, com a assertiva de que Virgílio é melhor que Teócrito, e fazendo a comparação, esta sim pouco cabível e pertinente, entre o Quixote e as novelas de cavalaria. Trata-se, obviamente, apenas de minha opinião, sem basear-se na autoridade da tradição ou querer atemporal. É, no entanto, coerente com as minhas escolhas est-É-ticas, que venho tentando deixar claras.
Portanto, minha idéia de contextualização não implica uma espécie de teleologia em que forma poética se torna mero espelho de um contexto cultural, nem prega o mero louvor da originalidade, do que você chamou sarcasticamente de "primazia da premiére". O que argumento é que há uma ligação intrínseca entre uma forma poética e seu contexto, tratando-se de uma relação (vou usar uma palavra perigosa) dialética, dialógica, com todas as contradições envolvidas. Não pretendo vedar o que se convenciona chamar de formas fixas, mas acredito que elas se engessam quanto mais se afastam desta estrutura complexa entre forma, função e contexto. Quem quiser escrever sextinas, que se dê ao trabalho, então, de escrevê-las com a mesma complexidade formal e funcional de Arnaut Daniel (de quem, lembremos, temos uma única sextina, sem podermos saber se mesmo ele algum dia a usou como "forma fixa"), com alta complexidade literária e musical. E que esteja preparado para cantá-la. O que melhor o fez foi outro trovador, Bertran de Born, que escreveu uma sextina com as mesmas seis palavras, num ato de emulação e diálogo possíveis, dentro da mesma forma, função e contexto.
O que me parece um tanto ingênuo é nutrir veleidades aristocráticas ao defender uma poesia de engenhosidade retórica e livresca, crendo que o público tem a obrigação de interessar-se por uma poética que, feita em tom acadêmico, acaba por ter, como leitores, apenas outros acadêmicos. O que não significa que eu defenda uma poesia fácil ou "democrática e popularesca". Meu trabalho poético já foi chamado de incompreensível em mais de um (lá venho com a palavra obsessiva) contexto.
Grande abraço,
Ricardo Domeneck
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6 comentários:
Ricardo Domeneck, Cuidado !
Com essa história de contexto você vai acabar chegando à formulação da "historicidade das formas literárias", que, como você sabe, é muito subversivo e coisa de quem não entende nada de literatura... rs
Melhor se fechar nas altas torres da retórica e das preceptivas clássicas!! Afinal, "não há mais poesia/mas há artes poéticas...".
Abraço,
Leandro
Ricardo,
Muitas vezes o Érico tem dificuldade de conviver com opiniões diferentes da dele. Escreve no calor do momento; esquecendo-se de medir as palavras.
Não serve como desculpa, mas ao menos explica.
Abçs
Adriana Invitti
Domeneck,
independente de qualquer coisa,
você está realizando um projeto extremamente generoso, que é esclarecer
não preciso mais me internar num quarto, no exílio, sob ventos da Sibéria para dar conta
Lerei seus ensaios.
e saqueá-los-ei
Adriana,
Meu debate com Érico data de 1998, quando estudávamos filosofia na USP. Sempre discordamos em nosso posicionamento est-É-tico. Tenho um respeito imenso por seu trabalho poético e também por seu trabalho crítico. Como exemplo, basta ler um texto brilhante como "Rilke e a maçã", publicado em seu blog.
Nós dois temos temperamentos combativos e sabemos que poemas "não são jornais nem deslizar de lancha entre camélias", como escreveu Drummond, completando: "É toda a minha vida que joguei."
O importante é que o debate siga entre os jovens poetas brasileiros, já que os poetas velhos estão ocupados demais com a manutenção de sua reputação.
Abraço,
Domeneck
Caro Carleto,
saquear-me é o melhor elogio que você poderia fazer.
Abraço,
Domeneck
Leandro,
difícil ser subversivo em tempo que decide ser pós-utópico. Neste caso, prefiro ser anacrônico.
Abraço,
Domeneck
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