A recepção e fortuna dos poemas de Vinícius de Moraes (1913 - 1981) talvez marquem uma das carreiras mais sinuosas da poesia brasileira. Ao mesmo tempo um dos mais populares e também mais subestimados poetas do século XX ativos no Brasil, já houve quem insinuasse que a relação entre sua popularidade com os leitores e seu subestimar entre poetas e críticos tenham uma relação causal. Mesmo assim, várias gerações de poetas e leitores formaram algo de sua sensibilidade com a leitura de seus poemas e a audição de suas canções, e ele talvez tenha sido um dos últimos brasileiros a assumir perante o público o papel difícil de poeta oficial, do poeta como figura pública.
Na segunda metade do século XX, quando a sensibilidade crítica hegemônica no Brasil pareceu valorizar os poetas que se autodenominavam antilíricos, houve uma espécie de declínio no prestígio dos poetas que construíram sua obra sobre os pilares da tradição lírica ibérica, como a também carioca Cecília Meireles ou a mineira Henriqueta Lisboa, representantes brasileiros da lírica pura modernista que teve em outros países um destino crítico também complicado e marcado por comoções políticas. Mas esta lírica pura floresceu, assumindo nomes distintos e sendo agregada a diferentes movimentos em outras línguas, criando um trabalho que sobreviveu a todas as imposturas críticas e ideológicas do entreguerras e pós-guerra, como foi o caso de Anna Akhmátova ou Joseph Brodsky em russo, Antonio Machado ou Juan Ramón Jiménez em espanhol, Else Lasker-Schüler ou Ingeborg Bachmann em alemão. Seu "Poema de Natal" é um texto de qualidades intrínsecas perceptíveis talvez apenas a quem se mostra sensível à tradição que conecta estes poetas, com sua claridade de pensamento ligada a uma sensibilidade direta e simples.
Vinicius de Moraes - Poema de Natal by Modo de Usar & Co.
Vinícius de Moraes oraliza seu "Poema de Natal", com acompanhamento de musical de Toquinho ao violão.
Poema de Natal
Vinícius de Moraes
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
in Poemas, sonetos e baladas (São Paulo: Gaveta, 1946)
Outro elemento a tornar Vinícius de Moraes uma figura criticamente complexa para a historiografia simplista do modernismo brasileiro foi seu uso das formas fixas, tornando-o ainda pouco exemplar para os grupos de vanguarda brasileiros do pós-guerra. Alguns de seus sonetos são no entanto exemplos de sua habilidade invejável de criar machines à émouvoir, para mencionar a expressão de Le Corbusier que o antilírico João Cabral de Melo Neto tanto admirava, e seu poema "A pera", por exemplo, ainda me parece um dos textos mais controlados, concisos e belos da poesia brasileira. Poucos poetas dos últimos trinta anos, tão afoitos em repetir os dogmas da objetividade, foram capazes de criar textos desta qualidade e precisão.
A pera
Vinícius de Moraes
Como de cera
E por acaso
Fria no vaso
A entardecer
A pera é um pomo
Em holocausto
À vida, como
Um seio exausto
Entre bananas
Supervenientes
E maçãs lhanas
Rubras, contentes
A pobre pera:
Quem manda ser a?
Mais tarde, o abandono da poesia escrita pela poesia cantada foi uma consequência simplesmente lógica da sensibilidade de poeta lírico que comandava o escritor Vinícius de Moraes.
Apresento aqui apenas o texto cantado, pois foi composto para isso. Ora, se nós não condenamos como inferiores os textos que só funcionam na página e para os olhos, por que seguiríamos condenando como inferiores os textos que só funcionam na garganta, para a voz?
Há um poema de Vinícius de Moraes que ainda me parece um dos mais belos e interessantes dentre os poemas mais longos da poesia brasileira no século XX, poema que poderia estar ao lado de "As Cismas do Destino", "Janela do Caos", "A Máquina do Mundo" ou "Uma Faca Só Lâmina", apesar de sua totalmente distinta sensibilidade quando comparada com estes outros poemas longos: refiro-me à "Última Elegia". Publicado no volume Cinco Elegias (1943), é o melhor poema do volume e o único que parece não envelhecer. Não há na poesia brasileira melhor estilização da alegria, da euforia. Além disso, há outros elementos experimentais no poema que, talvez pelo difícil status oficialesco de seu autor, tampouco encontraram acolhida nas listas de influências vanguardistas, mas que mesmo assim o distinguem de grande parte da poesia brasileira modernista: seu multilinguismo, seus neologismos e sua intertextualidade, experimentos que eram até então praticamente inéditos no modernismo brasileiro. Se a nossa poesia nasceu multilinguista e experimental com Gregório de Matos (1636 - 1696), desde Joaquim de Sousândrade (1833 - 1902) e o episódio conhecido como "O Inferno de Wall Street" no seu O Guesa (1884) um poeta brasileiro não experimentava desta forma com o multilinguismo. No caso de Vinícius de Moraes há um elemento biográfico e contextual importante: ele escreveu o poema em Londres, na Inglaterra; mas outros poetas compuseram poesia em suas excursões diplomáticas e nem por isso abandonaram uma visão purista e às vezes quase castiça da língua, fosse ela a portuguesa ou brasileira.
Os neologismos que usa têm maior respaldo na prática modernista, mas se o compararmos com um poeta como Raul Bopp, que tinha este pendor especialmente em Cobra Norato (1931), perceberemos as diferenças claras entre eles. Não há na "Última Elegia" qualquer desejo de ser acessível ou popular, mas de encontrar a melhor forma de expressar o pouco tradicionalmente poético sentimento da alegria, do estado eufórico. Até nisto o poema é singular. O único que tentara anteriormente compor neste diapasão foi Mário de Andrade, principalmente em alguns poemas de Paulicéia Desvairada (1922).
Sua intertextualidade parece ecoar versos de Shakespeare (1564 - 1616) e Keats (1795 - 1821), algo talvez marcado também pela situação biográfica de estar compondo na Inglaterra, apontando de certa forma para a futura influência hegemônica da poesia anglófona sobre a poesia brasileira de hoje. Além disso, o poema reinaugura na nossa poesia a pesquisa tipográfica e visual, anos antes da pesquisa do Grupo Noigandres. Por todas estas características, Vinícius de Moraes e sua "Última Elegia" seguem euforicamente vivos.
--- Ricardo Domeneck
§
POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES
A Última Elegia
Vinícius de Moraes
O | L | |||||||||||||
O | F | E | S | |||||||||||
R | S | H | E | |||||||||||
O | O | F | C | A |
Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora! ô joy for ever! |
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú |
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
"... it is, my soul, it is |
murmura adormecida |
sou eu, sou eu, Nabucodonosor! |
the wa t e r | |
Am I p | a Spider? |
i | |
Am I | p a Mirror? |
e | |
Am I s | an X Ray? |
No, I’m the Three Musketeers
rolled in a Romeo. |
Vírus |
Com que chegar ao coração da amiga.
Alas, celua |
The songs of Los; e agora
meus passos |
são gatos |
Em lúridas, muito lúridas
Aventuras do amor mediúnico e miaugente...
So I came
– from the dark bull-like tower |
fantomática |
Nos bem-bons da morte e ruge menstruosamente sádica
A sua sede de amor; so I came
De Menaipa para Forox, do rio ao mar – e onde
Um dia assassinei um cadáver aceso
Velado pelas seis bocas, pelos doze olhos, pelos centevinte dedos espalmados
Dos primeiros padres do mundo; so I came
For everlong that everlast – e deixa-me cantá-lo
A voz morna da retardosa rosa
Mornful and Beátrix
Obstétrix
Poésia.
Dost thou remember, dark love
Made in London, celua, celua nostra
Mais linda que mare nostrum?
quando early morn' |
Crepitante ainda nos aromas emolientes de Christ Church meadows
Frio como uma coluna dos cloisters de Magdalen
Queimar-me à luz translúcida de Chelsea?
Fear love...
ô brisa do Tâmisa, ô ponte de Waterloo, ô |
Symbols of my eagerness!
– terror no espaço! |
– silêncio nos graveyards! |
– fome dos braços teus! |
Só Deus me escuta andar...
– ando sobre o coração de Deus |
Along the High... "I don't fear anything
But the ghost of Oscar Wilde..." …ô darlingest
I feared... A ESTAÇÃO DE TRENS... I had to post-pone
All my souvenirs! there was always a bowler-hat
Or a POLICEMAN around, a stretched one, a mighty
Goya, looking sort of put upon, cuja passada de cautchu
Era para mim como o bater do coração do silêncio (I used
To eat all the chocolates from the one-penny-machine
Just to look natural; it seemed to me que não era eu
Any more, era Jack the Ripper being hunted) e suddenly
Tudo ficava restful and warm... – o sííííííííí
Lvo da Locomotiva – leitmotiv – locomovendo-se
Through the Ballad of READING Gaol até a vísão de
PADDINGTON (quem foste tu tão grande
Para alevantares aos amanhecentes céus de amor
Os nervos de aço de Vercingetórix?). Eu olharia risonho
A Rosa-dos-Ventos. S. W. Loeste! no dédalo
Se acalentaria uma loenda de amigo: "I wish, I wish
I were asleep". Quoth I: – Ô squire
Please, à Estrada do Rei, na Casa do Pequeno Cisne
Room twenty four! ô squire, quick, before
My heart turns to whatever whatsoever sore!
Há um grande aluamento de microerosíferos
Em mim! ô squire, art thou in love? dost thou
Believe in pregnancy, kindly tell me? ô
Squire, quick, before alva turns to electra
For ever, ever more! give thy horses
Gasoline galore, but to take me to my maid
Minha garota – Lenore!
Quoth the driver: – Right you are, sir.
*
O roofs of Chelsea!
Encantados roofs, multicolores, briques, bridges, brumas
Da aurora em Chelsea! ô melancholy!
"I wish, I wish I were asleep..." but the morning
Rises, o perfume da madrugada em Londres
Makes me fluid... darling, darling, acorda, escuta
Amanheceu, não durmas... o bálsamo do sono
Fechou-te as pálpebras de azul... Victoria & Albert resplende
Para o teu despertar; ô darling, vem amar
À luz de Chelsea! não ouves o rouxinol cantar em Central Park?
Não ouves resvalar no rio, sob os chorões, o leve batel
Que Bilac deitou à correnteza para eu te passear? não sentes
O vento brando e macio nos mahoganies? the leaves of brown
Came thumbling down, remember?
"Escrevi dez canções...
... escrevi um soneto... |
... escrevi uma elegia..." |
Para a Inglaterra?
"... escrevi um soneto... |
... escrevi uma carta..." |
..."que irão pensar |
"... escrevi uma ode..." |
Ô PAVEMENTS! |
Ô roofs of Chelsea! |
Crumpets, a glass of bitter, cap and gown... – don't cry, don't cry!
Nothing is lost, I'll come again, next week, I promise thee...
Be still, don't cry...
... don't cry |
... don't cry |
RESOUND |
– até que a morte nos separe |
ó brisas do Tâmisa, farfalhai! |
amanhecei! |
Londres, 1939
in Cinco elegias (Rio de Janeiro: Pongetti, 1943)
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