sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Péter Forgács, contexto e outras febres

Descobri o trabalho de Péter Forgács ao acaso, mas em um contexto específico; e é o acaso e o contexto que parecem estar tão ligados à est-É-tica do cineasta e artista visual húngaro. Naquela noite, há alguns anos, eu estava na verdade investigando na Rede uma de minhas obsessões febris, Ludwig Wittgenstein: o filósofo, o arquiteto, o austríaco, o judeu, o homossexual. Naquele emaranhado de informações que tanto nos despistam como nos presenteiam nesta tal WWW, acabei pousando na página recém-criada para Péter Forgács no arquivo do Ubu (infelizmente foi apagada por questões de copyright), justamente por causa de seu vídeo Wittgenstein Tractatus (1992), com sete vinhetas em que cada uma das sete proposições centrais do Tractatus Logico-Philosophicus (1922) recebe uma oralização sóbria e tocante, assumindo uma carga explosiva de emotividade ao unir-se à técnica principal de Péter Forgács: a utilização de filmes caseiros da sociedade húngara da década de 30 e 40, logo antes da catástrofe da Segunda Guerra.



Excerto de Wittgenstein Tractatus (1992), de Péter Forgács.


Há autores que me dão febre. Certas páginas de Clarice Lispector em A maçã no escuro (1951) e A hora da estrela (1977); muitas páginas de Miguel de Unamuno em Do sentimento trágico da vida (1933); páginas de Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso (1979); tantas páginas de Hilda Hilst, especialmente em Qadós (1973); assim como praticamente todos os momentos em que toma a palavra Alyosha, n´Os irmãos Karamazov (1880). Eu poderia me estender e mencionar alguns outros, mas não era exatamente sobre os autores de minhas febres que eu queria escrever hoje: para o que vou comentar aqui, preciso acrescentar apenas mais um febril meu: certamente entram na lista páginas e mais páginas de Ludwig Wittgenstein, algumas no Tractatus Logico-Philosophicus (1922), muitas nas Investigações filosóficas (1951) e em vários outros livros do austríaco povoando meu quarto.

Pois bem, retomando o fio desta meada, queria dizer que o vídeo de Péter Forgács, de apenas 35 minutos, foi uma das experiências mais incríveis de transposição para uma tela de imagens do que eu antes chamava de minha febre, que reside geralmente em algum lugar entre o diafragma e a faringe deste meu corpo, quando está na presença dos autores da minha paixão, como alguns dos supracitados. O vídeo é lindo, uma coisa realmente linda em minha suspeita opinião. Usando imagens da felicidade particular alheia, de pessoas que não sabem que lhes está por sobrevir grande destruição, enquanto uma voz pacata recita as proposições cheias de implicações zen-aterrorizantes de Wittgenstein, é como se você, telespectador, se transformasse em uma espécie de Cassandra.

No ano passado, voltando de um festival de poesia na Eslovênia onde eu lera em Liubliana e Medana, decidi juntar as moedas e ir de busão a Veneza (onde quase fui comido por pulgas num albergue lazarento) para ver pela primeira vez a Bienal. Caminhando pelos pavilhões centrais após sentir-me bastante constrangido pela representação brasileira, entrei no Pavilhão da Hungria. Pois era justamente Péter Forgács quem representava (muito bem) seu país, apresentando mais um de seus trabalhos em que um arquivo de imagens históricas é usado para o recontextualizar-se, não no prefixo re que insinua transformação, mas intensificação.

Forgács nasceu em 1950 e vive em Budapeste. Desde 1978 já dirigiu mais de 30 filmes. Começou a se tornar notório com seu trabalho de garimpo de imagens com uma série chamada "Hungria privada", resgatando histórias pessoais em meio ao cataclismo coletivo por que passou o país, não apenas sob os nazistas como sob o domínio soviético.


Either-Or, da série "Private Hungary" (1989)


A técnica de Forgács, ao usar found footage, não é o readymade. Nem pode ser confundida com o uso que a Internacional Situacionista fez de found footage. O que Forgács faz parece-me o oposto do détournement situacionista (que eu, diga-se de passagem, sigo admirando imensamente). O que Forgács faz é mais um rétournement. Seu trabalho é uma fonte de meditação pessoal muito rica para mim, tão obcecado como sou pelo papel do contexto em nosso processo de significação. How does one really charge language with meaning to its utmost degree? Imagino que resida aí parte do meu, do seu, do nosso interesse por Wittgenstein?

A você, querido leitor, recomendo a visita à página pessoal de Péter Forgács, e que escreva uma carta ao seu representante constituinte cultural exigindo uma retrospectiva do húngaro no cinema mais próximo de sua casa, enquanto você ainda a tem. Se você já leu Wittgenstein ou assistiu a Forgács, saberá que o abismo se abre a cada passo, logo atrás dos seus calcanhares.



Excerto de Meanwhile Somewhere 1940-43 (1993).

Recontextualizing the W.W.II. time home movies, is juxtaposing the extremely different lives of Europeans. The patchwork images of the "Übermensch", the "Normal" and the "Untermensch" families in Meanwhile Somewhere offers visible evidence of the private aspects of the war. Hitler's plan was simple with most of the population of occupied East and Southern Europe, destroy or enslave them. In 1942 after the Wannsee Conference the European Jews deadly destiny was decided as the Final Solution. In Meanwhile Somewhere the intimate, the brutal, the happy, the rare or clandestine amateur shots of different European amateurs home movies and clandestine shots counter point a Nazi ritual's film, the miscegenation's racist punishment of the two young lovers, the eighteen year old German boy, Georg-Gerhard and the seventeen year old Polish girl, Marie in occupied Poland, Scinawa Nyska village, 1940. This public punishment film document is the rondo pulse through out the piece. Mosaics of suggestive different families images stories counter point the sadist shaving: a National Socialist performance lesson to the children of the German-Polish village. Meanwhile Somewhere's elegy accompanied by Tibor Szemzõ's visionary music.

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