Já escrevi inúmeros artigos neste espaço sobre o porquê de minha obsessão com o papel do contexto naquele processo chamado de charging language with meaning to its utmost degree, assim como minha ladainha meditante incansável sobre a necessidade de respeitarmos a inescapável historicidade do fazer poético. Volto a isso com uma frequência exasperante para muitos, seja em poemas, vídeos, ensaios. Não o farei hoje. O preâmbulo está aqui apenas para introduzir uma espécie de "coincidência".
A alemã Birgit Aka, doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade de Passau, enviou-me por email na semana passada sua tradução para o alemão do meu poema "Conversa com duas estranhas", publicado no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005). Fiquei surpreso e contente ao ler a tradução e perceber que ela havia seguido a ideia de contextualizar o poema, mais do que simplesmente traduzí-lo. O texto tem por ocasião uma experiência pessoal minha, um acontecimento verídico (coisa de filme televisivo talvez) do ano 2000, quando retirei na Biblioteca de Munique um exemplar do livro Perto do Coração Selvagem (1943) de Clarice Lispector, no qual encontrei pequenas anotações de uma estranha, anotações que me deixaram fascinado e ligeiramente obcecado. O poema é um resultado deste susto, desta tentativa de conexão quase mística ou telepático-psicótica com aquela estranha. Eu me sentia como que sugado para dentro de um conto da própria Clarice Lispector, com um certo pendor detetivesco que por sua vez me fazia sentir num conto de Julio Cortázar. Esta história é uma das minhas experiências míticas pessoais, tenho certeza que voltarei a ela um dia. Ela renderia mais poemas, um conto, quem sabe até um romance.
O poema relata de forma bastante plana e direta o acontecimento. Ele é a ocasião de sua ocasião. Surgiu primeiro em prosa, e depois, por seu caráter oral, fiz meu velho jogo de cortes de linhas para embaralhar a sintaxe. Seu prosaísmo seco, pelo menos naquela época, parecia-me a única maneira de fazer justiça à sensação estranhíssima que eu sentia ao acompanhar o romance de Lispector e ao mesmo tempo as anotações misteriosas da estranha. Não havia o que poetizar. É também um dos meus textos mais antigos, entre os que publiquei. Eu o escrevi no ano 2000.
Conversa com duas estranhas
prestes
a deixar o país retirei
na Biblioteca Municipal
de Munique Alemanha
o livro "Perto do Coração
Selvagem" de Clarice
Lispector numa edição
brasileira de 1984
em que encontrei pequenas
anotações em alemão a lápis
nos cantos de algumas
páginas numa caligrafia
que julguei feminina
delicada
algumas apenas traduções
para o alemão de palavras
que ela não entendia
como no alto
à página 34
em que ela não
conhecia a palavra “vergada”
e anotou sua tradução
para sua língua alguns pontos
de interrogação períodos
inteiros e vários “É ISTO!”
e “É
ISTO!” ou “ELA
ENTENDEU!”
todas em alemão
estou traduzindo
muitos pontos de exclamação
um “COMPREENSÍVEL”
é estranho
que as anotações cessam
de repente e só
voltam na página
168 um “ÓDIO” anotado
na página 201 às margens do
trecho “É verdade
que o silêncio entre eles
fora assim mais perfeito”
quando na página
202 as anotações explodem
em pontos
de exclamação interrogação
números 1-2-3 que não
compreendo
escrita ilegível
nervosa a última à página
203 diz “História da
Humanidade” precedida
pelos números 1-1-2-3-4-1
quando na página
seguinte já sem
anotações da
estranha Clarice Lispector
escreveu “... desde
que ela era mulher... A morte...
E de súbito a morte
era a cessação apenas... Não!
gritou-se assustada, não
a morte.”
Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)
Não sei se fui capaz de fazer jus àquela ocasião poética. Certamente voltarei a esta história em meio à minha História algum dia.
Isso foi há dez anos. Talvez esteja na hora de voltar a Munique e procurar aquele livro.
Em 2006 publiquei na revista Germina um ensaio intitulado "Tradução, contexto e migrações possíveis", no qual discuto a possibilidade de que uma só teoria de tradução não possa dar conta das múltiplas relações poéticas com a historicidade. No ensaio, proponho a possibilidade de que alguns poemas estejam tão ligados a seus contextos, que a única maneira de os traduzir não pode levar em conta apenas semântica, métrica, ritmo, mas também o contexto em que foi escrito, buscando uma espécie de transcontextualização (como a chamei no ensaio), ou quem sabe uma simples contextualização. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., o poeta Fabiano Calixto deu-nos alguns exemplos incríveis desta possibilidade tradutória com suas transcontextualizações para poemas de Allen Ginsberg.
Sem termos conversado a respeito, sem que Birgit Aka conhecesse meu ensaio ou soubesse destas minhas obsessões, ela escolheu contextualizar este meu poema para um leitor alemão, traduzindo Clarice Lispector por Christa Wolf, a importante escritora da antiga Alemanha Oriental, e usando seu romance Medea: Stimmen (1996) no lugar de Perto do Coração Selvagem. Da mesma maneira, quando menciono Munique em meu poema, ela menciona São Paulo, já que ela própria fora estudante estrangeira no Brasil, como eu era estudante estrangeiro aqui na Alemanha naquele ano 2000.
Voltando ao velho adágio traduttore, traditore, eu diria o seguinte: prefiro ser traído a ser exotizado. Deixo vocês com a contextualização de Birgit Aka.
Gespräch mit zwei Fremden
bereit
das Land zu verlassen entlieh
ich in der Bibliothek der Universität
São Paulo Brasilien das
Buch Medea.
Stimmen von Christa
Wolf eine deutsche
Ausgabe aus dem Jahr 2010 das
Buch in Deutsch in
dem ich kleine Bleistift-
notizen in Portugiesisch in
den Ecken einiger Seiten
entdeckte in einer
delikaten
femininen Schrift
einige sind lediglich Übersetzungen
ins Portugiesische von Wörtern
die sie nicht verstand wie
auf Seite 32 weit
oben, wo sie das Wort
„Augenblicksschwäche“ nicht verstand
und ihre
Übersetzung ins Deutsche
notierte
manche Fragezeichen
ganze Abschnitte einige „SO IST ES“
und „SO
IST ES“ ein anderes „SIE BEGREIFT‘S“
alle in Portugiesisch ich übersetze
viele Ausrufezeichen ein
„VERSTÄNDLICH“ es ist seltsam dass
die Notizen plötzlich aufhören
und erst
auf Seite 139 wieder einsetzen
ein „ARSCH“ notiert auf
Seite 160 neben dem
Abschnitt „Sie hat
es mir vorausgesagt.
Nicht auftrumpfend, nein,
eher traurig, oder mitleidig,
was unverschämt war. Sie hatte sich ja
selbst jedes Mitgefühl verscherzt. Das
sagte man mir im Rat, als ich versuchte,
für sie
um Milde zu bitten, wobei ich
nicht versäumte,
die Schwere ihrer Vergehen zu
betonen, sie hätten mich sonst
in der Luft zerrissen.“
auf Seite 167 explodieren
die Notizen in Ausrufe-
zeichen Fragezeichen
Nummerierungen 1-2-3 die ich
nicht verstehe unleserliche
Schrift nervös
die letzte ist auf Seite
173 und lautet „Geschichte der
Menschheit“ angekündigt durch die
Nummern 1-2-3-4-1
sechs Seiten später ohne
Notizen der Fremden
schrieb Christa Wolf: „Und wie?
fragt der Bursche mit Verschwörermiene.
Gesteinigt! brüllen viele.
Wie sie es verdienten. Die
Sonne geht auf. Wie die Türme
meiner Stadt im Morgenglanze
schimmern.“
(tradução de Birgit Aka)
.
.
.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
"A sensação de ser transcontextualizado", ou "Quando Clarice Lispector traduz-se Christa Wolf"
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2 comentários:
Só vou dizer esse tanto de coisa aqui:
Esse seu texto, basicamente a poesia, me fez escrever o texto que se segue no link, sobre quase algo parecido que me aconteceu.
http://infiernodeamar.blogspot.com/2010/12/as-impressoes-dos-rabiscos-dos-livros.html
Abraço.
Meu caro,
que legal ver que estas experiências se multiplicam em outras geografias, talvez apenas para quem esteja atento ao mundo.
Obrigado por seus comentários no blogue. Você vive em Cuiabá?
abraço
Ricardo
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