quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
O prosador mais memorável que li neste 2010: Vasily Grossman (1905 - 1964)
Meus hábitos de leitor de prosa são caóticos. Há épocas em que devoro romances, um atrás do outro, mas há também outras épocas em que a simples visão de uma página repleta de signos da esquerda à direita já me faz bocejar. Isso acontece geralmente em relação à ficção. Livros de prosa crítica e filosofia nunca me entendiam, e estou sempre a ler algum crítico ou filósofo. Mas romancistas podem ser tão tediosos, especialmente para poetas viciados na tal materialidade sígnica e tal. A prosa contemporânea no Brasil é, com exceções, um sonífero.
Em 2010, li pouca ficção. Minha mochila ou meu bornal continham sempre um ou dois livros de poesia, acompanhados de um livro de crítica literária, poética, ou política. Li neste ano de 2010 muita coisa dos críticos que amo, como Hugh Kenner e Walter Benjamin, li outros que não amo e dos quais discordo com frequência mas que são estimulantes, como Fredric Jameson e Terry Eagleton, descobri o trabalho inteligentíssimo de Alfonso Berardinelli, emocionei-me com o lindo memoir de Jakobson sobre Maiakóvski, A Geração Que Esbanjou Seus Poetas (publicado em uma linda edição pela Cosac Naify), mas pouca prosa de ficção.
Arrastei, entre outras, a leitura do famoso romance satírico de Witold Gombrowicz, Ferdydurke (1937), por exemplo. Mas foi, há um par de meses, uma coletânea de contos e artigos do soviético/ucraniano/russo Vasily Grossman que acordou novamente meu paladar para a prosa e me deixou faminto por boa ficção.
Grossman esteve nas notícias culturais aqui da Alemanha há pouco tempo e com grande estrondo, pois foi traduzido para o alemão seu grande romance proibido pelo Kremlin, intitulado Vida e Destino. Houve resenhas e artigos sobre o "soviético" em todos os grandes jornais.
O volume que li, no entanto, chama-se The Road, traduzido para o inglês por Robert Chandler e publicado pelo New York Review of Books, trazendo contos como "Na cidade de Berdichev", o primeiro que Grossman publicou, e artigos como "No Inferno de Treblinka", um dos primeiros sobre a Shoah. Correspondente de Guerra genial, Grossman foi um dos primeiros jornalistas e escritores a entrarem em um campo de concentração. Sua descrição é uma das coisas mais assustadoras que já li, indo onde mesmo muitos filmes não poderiam ter ido.
Grossman é o tipo de escritor que me pega pela garganta. Não é um estilista frio e calculado, obcecado pela frase perfeita. É extremamente próximo, caloroso. Talvez vá parecer absurdo para alguns, já que seus contextos biográficos são tão diferentes, mas durante a leitura de Grossman havia algo que constantemente fazia-me pensar em Clarice Lispector. Não conseguia evitar a impressão e ficava me perguntando o porquê.
Há certos pontos de contato. Grossman nasceu em Berdichev, antigamente parte do Império Russo, hoje parte da Ucrânia. Lispector também nasceu na Ucrânia, e também em uma família judia. Obviamente, este fator biográfico teve maior importância na vida de Grossman que na vida de Lispector, mas há que se pensar na influência dos pais de Lispector sobre sua formação e criação. Contudo, a ligação, eu creio, talvez seja literária e só vim a descobrir depois. Ao fim do volume, há um memoir de Fiodor Guber, filho adotivo de Vasily Grossman, relatando suas lembranças sobre o escritor, e falando sobre a paixão deste por Anton Tchekhov. É aí, eu diria, que talvez resida uma conexão entre os dois, pelo menos para explicar esta minha impressão de semelhança estética, pois também Clarice Lispector me parece uma escritora tchekhoviana, ainda que os críticos sempre se refiram a James Joyce e Virgina Woolf como modelos para a brasileira. Não estou falando tanto sobre influência direta quanto em linhagem, espírito.
Em algum momento de 2011 quero começar a ler o grande Vida e Destino de Grossman, que alguns dizem ser o Guerra e Paz do século XX. Mas entrei numa onda russa graças a ele e agora estou lendo Um Dia Na Vida de Ivan Denisovich (1962), de Alexander Soljenítsin (ou Aleksandr Solzhenitsyn, como se diz na língua do Império). Queria ler O Arquipélago Gulag (1973), mas não o encontrei no sebo.
Estes russos e seus épicos, que parecem cobrir o continente geográfico e físico, e o continente moral e psicológico. Chega a ser assustador.
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3 comentários:
ric, eu ouso, mesmo ciente da minha ignorância literária, dizer que clarice lispector foi tao influenciada pelo judaísmo quanto kafka e spinoza... nao percebi isso à primeira leitura dos livros dela, mas à medida que fui lendo a torá foi que comecei a notar essa coisa do "escritor judeu" na escrita de clarice.
beijo doismileônzico!
Concordo com você, Ivi. Em alguns livros isso é muito claro, como em "A Paixão Segundo GH", em outros mais difuso, como em "A Maçã no Escuro". É que a Clarice nunca pareceu salientar isso de forma muito óbvia em entrevistas ou ensaios. Grossman, porém, tinha sua identidade judaica como definidora.
Acho curioso que se fale tão pouco no judaísmo da Clarice no Brasil. Na biografia do Moser isso é discutido com clareza?
beijo
Ricardo
ele aponta sim!, conexoes e referencias. mas é verdade que tem que ficar bem atento às sutilezas na escrita dela, em relacao à essa "judeuzice" dos seus livros, pra perceber.
mas na vida real é verdade, ela citava quase nunca isso, o fato de ser judia e a história dos judeus...
te empresto a bio quando chegar, é mais um perfil psicológico que cronológico, acho que tu vais gostar!
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