segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Uma notícia boa que trouxe consigo uma lembrança triste. Pensando sobre a poesia de Leonardo Martinelli dois anos depois de sua morte.

Recebi hoje por correio eletrônico o convite para o lançamento da coleção "Ciranda da Poesia", da EDUERJ, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com organização e direção de Ítalo Moriconi, Masé Lemos e Diana Klinger, o projeto busca fomentar o diálogo crítico sobre a poesia atual, convidando poetas e críticos ativos hoje a discutirem o trabalho de seus contemporâneos. Cada volume traz portanto um estudo crítico alentado sobre um único poeta, com uma antologia de seus poemas. Os primeiros volumes são dedicados aos seguintes poetas:

§ - Sebastião Uchoa Leite (estudo crítico e antologia a cargo de Franklin Alves Dassie)
§ - Leonardo Fróes (a cargo de Angela Melim)
§ - Chacal (a cargo de Fernanda Medeiros)
§ - Antonio Cicero (a cargo de Alberto Pucheu)
§ - Carlito Azevedo (a cargo de Susana Scramim)
§ - Claudia Roquette-Pinto (a cargo de Paulo Henriques Britto)
§ - Guilherme Zarvos (a cargo de Renato Rezende).

Também colaboraram com o projeto Viviana Bosi e Marcos Siscar. Espero poder ter alguns dos volumes em algum momento, para poder resenhá-los.

A notícia, que é bastante legal, trouxe-me à memória o querido poeta Leonardo Martinelli, que morreu há pouco mais de dois anos. Nos meses antes de sua morte, estávamos em contacto mais frequente, pois ele estava justamente preparando um estudo crítico sobre o meu trabalho e uma antologia de meus poemas para que fizéssemos parte desta primeira leva de livros da coleção, como a única dupla de poetas dos últimos poucos anos. Como vocês perceberam pela lista, foram escolhidos poetas das décadas de 60 (Uchoa Leite, Fróes), 70 (Chacal) e 90 (Cicero, Azevedo, Roquette-Pinto, Zarvos), mas Martinelli havia conseguido convencer o Moriconi a permitir que ele escrevesse sobre o meu trabalho.

No entanto, Martinelli não teria tempo sequer de preparar seu novo livro de poemas, cuidar de seu estudo crítico sobre Julio Cortázar, ou seguir com nossas conversas sobre Agamben e a poesia contemporânea: nosso companheiro morreu no Rio de Janeiro, em novembro de 2008. Alguns dias depois, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem com poemas dele para a Modo de Usar & Co.. Este ano, a convite de Fabiano Calixto, escrevi um pequeno artigo sobre a poesia de Leonardo Martinelli para acompanhar uma antologia de seus poemas, selecionados por mim e por Calixto e publicados na revista Almanaque Lobisomem (2010). Como a morte colheu tantos projetos em que poderíamos ter compartilhado, cooperado, comiserado, coexistido, publico aqui o meu artigo sobre a poesia de Leonardo Martinelli, como uma homenagem ao amigo morto, que escreveu um dos meus poemas favoritos nesta década que se encerra: aquelas receitas para engolir e curar o fracasso. Que a terra lhe seja leve, meu amigo.


Receitas para engolir e curar o fracasso
Leonardo Martinelli

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile



§
§
§



Pensando em Leonardo Martinelli



por Ricardo Domeneck



O poeta Leonardo Martinelli morreu aos 37 anos, no Rio de Janeiro onde nasceu, com um único livro publicado, Dedo no ventilador (2005), além de inúmeros ensaios, resenhas e poemas esparsos, espalhados por publicações impressas e digitais. Se a sua morte acaba por dar a sua obra o caráter inevitável de incompletude e interrupção, creio que poucas coisas o irritariam tanto quanto a ideia de ter seu trabalho enquadrado no discurso das carreiras promissoras, discurso que ele próprio combateu como poeta-crítico. Se a sua poesia pode hoje, infelizmente, integrar a triste lista dos poetas brasileiros de morte prematura, como Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry, Mario Faustino, Torquato Neto e a própria Ana Cristina Cesar que ele homenagearia com exasperação no poema “Elegia/ACC”, com os versos “Não, / Ana, nem / vem que não / tem: que / há para celebrar? / Teu salto / descalço na piscina / vazia? / As vinte e poucas / edições de tuas / obras / incompletas?”, chegando à asserção franca de “Foda-se, / Ana C., // você exaspera / qualquer um / com dúvidas, dívidas / filhos e culhões / com esses ares / de sereia pré-rafaelita / perdida / no Baixo Gávea”, seu trabalho merece, como o destes poetas, ser avaliado por suas contribuições e conquistas específicas, acima do discurso que Flora Süssekind já chamou de hagiográfico, dedicado com frequência e certo oportunismo crítico a jovens poetas mortos.

Conheci o trabalho de Leonardo Martinelli na revista carioca Inimigo Rumor, com a qual ele viria a colaborar regularmente, chegando a fazer parte de seu comitê editorial. Na revista ele estrearia com poemas, além de ensaios, como o texto importante que dedicou ainda muito jovem ao trabalho de Ferreira Gullar. Formado na década de 90, período em que vigorava, como parâmetro de qualidade, a poética construtivista que se depreendia da obra de João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) e Augusto de Campos (n. 1931), privilegiando uma composição minimalista e concisa em concretude, com um trabalho marcado pela consciência da materialidade substantiva e visual da linguagem (o que também marcou as traduções de maior influência no período, como as do norte-americano Robert Creeley), parte do trabalho de Leonardo Martinelli poderia ser agrupado à estética que comandou a atenção de muitos poetas jovens daquele momento, pelo menos ao sul e sudeste do país no fim do século passado, tal qual a vemos em livros tão diversos entre si quanto Solo (1996), de Ronald Polito; O marciano (1997), de Felipe Nepomuceno; Fábrica (2000), de Fabiano Calixto; Prosa (2001), de Eduardo Sterzi; Carbono (2002), de Tarso de Melo; Geografia íntima do deserto (2003), de Micheliny Verunshk; ou Crivo, de Danilo Bueno, e Primeiro as coisas morrem, de Diego Vinhas, ambos de 2004. Essa poética pode ser ainda ligada a Sebastião Uchoa Leite (1935 - 2003) e encontra raízes, no Brasil, em modernistas como Oswald de Andrade (1898 – 1954) e Joaquim Cardozo (1897 - 1978), sem mencionarmos poetas portugueses como João Apolinário (1924 – 1988), António Ramos Rosa (n. 1924) ou mesmo Ana Hatherly (n. 1929), com conexões variadas ao trabalho dos poetas brasileiros mencionados. Alguns destes poemas de Martinelli publicados na Inimigo Rumor, como “Anular” ou “Dorian”, viriam a integrar seu único volume editado.

Dorian

Então fitei
a tela - meus
olhos impressos
no espelho
(leitor-irmão
de sangue e tinta
ausente)
Cupins e traças
se encarreguem
da moldura:
quem sabe de mim
sou ele

Em seus poemas posteriores, Leonardo Martinelli parece introjetar a tática do conciso, para então transformá-la em uma espécie de estratégia do pontiagudo, passando a evitar o descritivo neutro de paisagens urbanas e máscaras mortuárias (cf. “Nietzsche: máscara mortuária”), assumindo também um desejo de intervenção histórico-textual, o que marca sua participação no afastamento que temos sentido, nos últimos tempos, da ideologia ligada a um conceito questionável como o de “trans-historicidade”. Como exemplos, poderíamos mencionar os poemas “Três torres, dois séculos, um dia” e “Dois fogos”, que integram esta seleção (refiro-me à antologia publicada no Almanaque Lobisomem).

Três torres, dois séculos, um dia
Leonardo Martinelli

A primeira tornou-se mito
ao servir de suporte à loucura
de um poeta farto dos homens
a não ser por certa Susette
falecida quatro anos antes
dele abrir seu prontuário
no manicômio de Tübingen
em 11 de setembro de 1806

As outras chamavam-se Gêmeas
cravadas no centro de Manhattan
bombeando usura aos quatro cantos
da Terra – ainda estariam lá
não fora um tresloucado
do Extremo Oriente Médio
explodir ambas de uma vez
em 11 de setembro de 2001

Creio que seus melhores textos estão entre aqueles que foram produzidos e divulgados nos últimos dois anos de sua vida, quando Martinelli elide a camuflagem do eu-ventríloquo que passou a se flagrar cada vez mais em alguns casos desta poética da objetividade, no fim do século XX e início do XXI, retornando, creio poder dizer, à lição de Ezra Pound, a que predicava o tratamento direto da coisa, seja objetiva ou subjetiva, além do importante conselho de que only emotion endures, entregando-nos alguns de seus poemas mais bonitos. Sua ligação no Rio de Janeiro à música popular viria a trazer ao seu trabalho uma aproximação escritural à mímica dos enunciados orais, sem no entanto recorrer a um discurso do espontâneo falsificado, outro aspecto que o aproxima à simplicidade da dicção do poeta português João Apolinário, injustamente esquecido.

Não compete ao crítico a veleidade futurológica. Poemas provam sua força, alguns diriam, por sua longevidade canônica; outros, por sua flexibilidade histórica, mostrando-se capazes de prover aquilo que necessitam as gerações sucessivas, adaptando-se aos novos parâmetros de qualidade e às novas funções históricas dos poetas, em cada um de seus contextos. Se pensarmos em poetas de morte prematura como Sylvia Plath, cuja obra tanto lucrou como foi prejudicada pelo discurso hagiográfico que a envolveu por muitos anos, encontraremos um exemplo de trabalho poético que, se se fragilizou com o tempo em suas manifestações iniciais, segue mostrando-se vigoroso em seus textos finais, escritos sob a pressão do terror que estreita (na estonteante etimologia da palavra angústia), como é o caso de uma das séries de poemas finais de Plath, conhecida como “poemas das abelhas”. Acima de quaisquer discursos de perfeição formal, são textos que perduram pelo choque intenso entre o veículo e o que veicula. Uma avaliação mais clara e completa sobre o trabalho poético e crítico de Leonardo Martinelli só será possível quando todos os textos dispersos forem reunidos em um volume futuro. Minha crença e aposta, por ora, torna-se aqui pública em favor de alguns dos seus poemas finais, como o bonito “Receita para curar e engolir o fracasso”, um dos poemas memoráveis (outro parâmetro crítico de Pound, o memorável) e também um de meus poemas favoritos nesta década que se encerra, entre alguns outros poemas do carioca. Textos que, eu creio, serão capazes de manter pontiagudas suas quinas, para perfurar cérebros e miocárdios futuros, em seus terrores privados e públicos, ou talvez ajudando-os a cavar, cavar até encontrar do estreito o escape.


Retrato Cubista (para cdcl)
Leonardo Martinelli

Não há remédio
para cólicas e abismos
afetivos:
você ali sentindo as
dores dentro e

o amor através -

além das
expectativas
mofadas ao
sol, eternas
cativas dos
malefícios fiscais
sem retorno -

do sorriso
infantil às margens
da Lagoa
após uma palavra
afiada
da última vez etc. -

então
o telefone
público
explode em cacos
oito meses
de idas sem volta -

esperas
tão banais
quanto um arco
e flecha
de brinquedo
um beijo sem retorno
ou dez mil pixels
de Picasso

(não esqueceremos
nada disso
querida,
e no entanto queremos
dormir em paz.)

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