quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Heine para punks

Florian Pühs, ex-vocalista da banda Surf Nazis Must Die, atual vocalista da banda Herpes, disse-me uma vez na sala de seu apartamento em Berlim: "Se você quer ler alemães, leia Heine... só Heine."

Quando ele disse isso, não me surpreendi muito. Lembrei-me imediatamente de uma outra situação, em que outro amigo aqui em Berlim disse, quando a conversa descarrilhou para literatura, e então poesia, sem o menor pudor: "Detesto poesia... com Heine como única exceção." Em seu ABC of Reading, se não me engano, Heinrich Heine é um dos poucos alemães a quem Pound menciona com certo apreço.

Não me supreende que Florian Pühs, vocalista e letrista punk, se interesse por Heine e o considere o único poeta alemão legível. Seu exagero tem, obviamente, motivações políticas. Heine foi um dos poetas mais politicamente ativos no século XIX, tornando necessário seu exílio. Foi Heine quem exalou a profética: "Quem queima livros, logo queimará gente", 150 anos antes da Shoah. Além disso, como cantor, Florian Pühs privilegia um poeta-cantor. O "livro das canções" (Buch der Lieder) de Heine ainda é um dos trabalhos poéticos mais lidos na Alemanha.

É interessante que, em outros países, os poetas alemães "privilegiados" sejam os de outra linhagem. Pois, talvez em um mundo de hegemonia literária sobre o poético, unida à busca do que João Cabral de Melo Neto chamava de meditabúndio da poesia profunda, "poeta que canta" tenha se tornado metáfora para o vate apenas, daquele que parece estar sempre a um passo do órfico. E o órfico, em nossa cultura, passou a ser associado a um único ato: a descida ao Hades. Ou seja, na língua alemã, a linhagem de Novalis, Hölderlin, Rilke, Celan.

É como se o mundo esperasse de germânicos que eles se entregassem tão-somente ao metafísico, ao abstrato, ao eixo da transcendência, nunca ao plano da carnalidade.

No entanto, existe toda uma linhagem da poesia germânica que é extremamente telúrica, corporal, do poeta que canta com a garganta de carne e sangue, sobre um mundo terrestre, terreno, terráqueo (e nem por isso menos terrível). É a linhagem, confesso, que eu mais amo neste país, a dos minnesänger (a versão germânica do trovador), como Walther von der Vogelweide (c. 1170 - c. 1230), assim como algo desta tradição se manteve viva em Heinrich Heine, poeta telúrico, como eram telúricos Christian Morgenstern, Hans Arp, Bertolt Brecht (sem mencionar seu trabalho com Kurt Weill), H.C. Artmann ou Rolf Dieter Brinkmann.

Florian Pühs apresenta-se hoje em nossa intervenção semanal Berlin Hilton, com sua banda Herpes. Uma das minhas canções favoritas de sua banda chama-se "Neue Dresdener Schule", em que Puehs toma os primeiros versos do poema "Nachtgedanken", de Heine: "Denk ich an Deutschland in der Nacht / Dann bin ich um den Schlaf gebracht", versos tristes e ambíguos de Heine, em que a idéia de "pensar na Alemanha à noite" traz tanto o sonho, quanto o pesadelo, com "todos os que afundam às covas", como escreve Heine adiante, no poema. O contexto político da escrita de Heine desapareceu, mas repetir-se-ia de forma constante nas décadas e décadas que se seguiram na Alemanha.

Florian Pühs reatualiza o contexto político, retirando do poema, no entanto, toda nostalgia de exilado, fazendo da canção algo de resistência interna, daquele que fica para resistir à "Vaterland", dando à canção, com sarcasmo, o nome de "Neue Dresdener Schule", como é conhecida certa associação alemã em que resistem ideais fascistas.



(HERPES - "Neue Dresdener Schule",
gravado em Leipzig, janeiro de 2009)

Hoje à noite, na Berlin Hilton:

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