segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
As holotúrias dos poetas
Em 2001, que geralmente chamo, com os lábios sobrevoando xícaras de café e copos de vinho tinto, de "um dos piores anos da minha vida", sofrendo como um camelo por uma daquelas hemostasias vagarosas de uma sangria desatada, quando ainda não sabia que (sim) se sobrevive a certa amputação de ilusões, houve alguns poemas que me acompanharam nas calçadas de São Paulo, como tubos de oxigênio ligados a um lugar-nenhum, cartografado sob um sol imaginário qualquer, provendo luz, ainda que artificial.
De poemas que nos mantêm vivos, a gente nunca esquece.
Há aquele início tenebroso do poema de Robert Creeley, que eu ainda repito em momentos de sufoco: "If night´s the darker / closer time, / days come", para culminar na luminosidade do trecho:
"let light
as air
be relief."
E, se a garganta se engarrafava e os lábios rachavam, era sempre possível recorrer àquele
"...e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita."
de Carlos Drummond de Andrade. Havia a lição de Bishop: "Lose something everyday. Accept the fluster...", nos ensinando a fingir, a fingir.
"Faz de conta, minha filha. Faz de conta." - JGR.
Um dos poemas que mais forneceram oxigênio à minha cabeça naquele ano foi "Autotomia", de Wislawa Szymborska, que eu lera no número 10 da revista Inimigo Rumor, e que me serviu algumas vezes de kit-sobrevivência para terminar o dia.
Autotomia
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10)
Poemas podem ter as causas, os efeitos mais diversos. Não é todo dia que se quer passar uma temporada no Inferno; ou em Duíno; ou mesmo em Pasárgada, ou no País das Maravilhas. De um lado o sertão, de outro o mar. Seja Lear (1812 - 1888) no absurdo em riso, ou Lear (1603 - 1606) no absurdo de todas as perdas, a cada instante seu malheur, seu bonheur. O do poema na gargalhada e o poema do franzir de todos os cenhos.
"Tempo de atirar pedras,
e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar,
e tempo de se separar."
Recentemente, lendo a antologia Revolution of the Word: A New Gathering of American Avant Garde Poetry 1914 - 1945, editada por Jerome Rothenberg, li um poema de Kenneth Rexroth em que ele também recorre à holotúria (ou pepino-do-mar), usando quase o mesmo fraseado de Szymborska, levando-me a perguntar se seria uma colagem ou fragmento de que Szymborska e Rexroth se apropriaram a partir de alguma enciclopédia. O poema de Rexroth chama-se "Fundamental disagreement with two contemporaries", um texto longo de cerca de 6 páginas e várias partes, no qual se encontra o seguinte fragmento em prosa e entre aspas:
"The sea cucumber when in danger of being eaten, eviscerates itself, shooting out its soft internal organs as a sop to the enemy while the body wall escapes and is able to regenerate a new set of viscera."
Pensando no texto de Szymborska, li outras páginas sobre estas holotúrias que já se enroscaram em minha mente, encontrando textos parecidos:
"When threatened, some sea cucumbers discharge sticky threads to ensnare their enemies. Others can mutilate their own bodies as a defense mechanism. They violently contract their muscles and jettison some of their internal organs out of their anus. The missing body parts are quickly regenerated.
ou
"A remarkable feature of these animals is the catch collagen that forms their body wall. This can be loosened and tightened at will and if the animal wants to squeeze through a small gap it can essentially liquefy its body and pout into the space. To keep itself safe in these crevices and cracks the sea cucumber hooks up all its collagen fibres to make its body firm again.[3]
Some species of coral-reef sea cucumbers within the order Aspidochirotida can defend themselves by expelling their sticky cuvierian tubules (enlargements of the respiratory tree that float freely in the coelom) to entangle potential predators. When startled, these cucumbers may expel some of them through a tear in the wall of the cloaca in an autotomic process known as evisceration."
§
Mutilar-se como sistema de defesa contra ilustríssimo predador. Expelir certos órgãos supérfluos em dissimulação, baile de máscaras de uma sexta-feira em filmes de medo, medo. Plano de fuga: ejetar-me as vísceras. Que holothuroidea formidável.
Pequenos pedaçoilos de moi-même em tupperwares ao honorável monsenhor predador, a tapar o ar que desperdiço do seu ambiente.
Meu Jack the ripper, com os cascos sobre o meu crânio, permaneça sempiterno no andar de cima da cadeia alimentar, enquanto a sustento com meus ombros e outras partes de minha anatomia renovável.
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