domingo, 1 de fevereiro de 2009
Os fashionistas da resistência
Berlin Fashion Week. Saltos altos picotando o gelo endurecido das neves acumuladas na calçadas sujas de Berlim. Hotéis abarrotados, restaurantes cheios de senhores e senhoras em Dior Gucci Prada, sonhando-se membros do senhorio. Como olhar em seus olhos e emitir a opinião sensata sobre a moda, sobre o design, sobre a publicidade, atividades tão ligadas à maquinaria do status quo? Discorrer sobre elas, de forma crítica, exige imediatamente um posicionamento político. Ou exagero?
Minha relação com estas atividades e as implicações destas, assim como com as pessoas que "mexem com moda", como se diz em São Paulo, ou o design e as criaturas inteligentes da publicidade, dentre as quais conto vários amigos muito próximos, tanto em São Paulo como em Berlim, sempre foi complicada e creio que só possa ser realmente complicada. Especialmente para um poeta? Por que especialmente para um poeta? Aí é que entra a questão velha, velhíssima (será mesmo velha) da participação política do poeta? Ou de qualquer cidadão?
A relação do grupo Noigandres, por exemplo, com a publicidade sempre coçou-me em mil pulgas detrás dos lóbulos e outras extremidades arredondadas, assim como a idéia do poema como "objeto útil"... mas, alguém poderia perguntar-me, qual a diferença então entre o "objeto útil" noigândrico e o seu "make it necessary", sr. Domeneck?
Não creio que seja realmente eficiente (e totalmente honesto) bancar o poeta-juiz que se posiciona acima destas práticas e se crê acima de qualquer suspeita, elegendo modelos (Kate Moss, por exemplo, a exquisite esquisita) como bodes-expiatórios do ssiisstteemmaa. O perigo da resistência que se crê fora do sistema e assim busca sitiar a cidadela é a de acordar entre os colaboracionistas. Sim?
Eu gostaria muito de encontrar uma forma de resistência interna, algo como uma guerrilha, já que estamos dentro do Império e este já venceu. Só nos resta a sabotagem deslumbrada? Sujando as mãos lambuzadas? O poeta como espião ou como agente duplo? Tento buscar a ironia nesta relação, ainda que ela possa facilmente ser vista, por críticos, como a tentativa de "jogar dos dois lados", aproveitar-se das vantagens do Império e da Resistência.
Mas hei-de confessar que a base desta ironia é o conflito pessoal de atração & repulsa pelo ssiisstteemmaa do qual a moda parece ser a capa brilhante, o embrulho melodioso. Ah! Como é tentador fazer odes à BBBeleza!
Busco "expor o imposto" desta relação de atração e repulsa em alguns poemas, como este, que não é um portrait of Miss Moss, devo avisar:
Kate Moss
Pergunto-me
se confortável
o centro
da margem.
Irrita-se com freqüência
ao descobrir na rua
mais familiar e conhecida
o prédio novo
que sempre
estivera ali na
desatenção da realidade.
Hesito no silêncio do respiro e
não respiro.
Desejo, processo
de aquisição, pequenos
jogos
de poder, deliciosos
e alheios, atentos.
Você me leva à mão
no fogo de novo
e de novo;
e o grito substitui a
palavra fogo,
mas não explica
as bolhas ao redor
do pus.
Epiderme contínua.
Se eu sangrasse, o que
das regiões do abdômen
responderia, não
adianta que
a mão arrisque-se
a cada toque
no papel
"j´y suis! j´y suis
toujours."
Contribuição das circunstâncias.
Talvez a velocidade ao
limite traga a
fadiga e
anestesia às
pernas para
a trilha menos
consciente. Não
vejo você
em meio à
sintaxe e me pergunto
sobre os seus
meios de
produção, meu
querido, digo:
estimativa, presença.
(escrito em 2005, publicado originalmente no número de estréia da Modo de Usar & Co. (2007), incluído no livro Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)
Iconizo com isso a criatura? Mas, ora, por que deveria estapeá-la em iconoclastia?
Foi numa tentativa de honestidade-em-ato que, no meu ensaio "Ideologia da percepção", publicado na revista Inimigo Rumor em 2006, tentei abordar o problema também com algumas propostas de resistência política através da escrita, sem querer ser taxativo (ainda que possa acabar tendo sido, algo em que meu entusiasmo muitas vezes incorre) e sem querer ser apenas uma das sereias da catástrofe sem saída, sugerindo, entre outras propostas:
"* instaurar uma resistência interna no sistema que parece querer desumanizar-nos, guerrilha cultural de sabotagem de discursos, apropriando-se da própria linguagem econômica, da moda, da ciência, para explorá-las, investigá-las e desarticulá-las por dentro, cautelosos, no entanto, à admoestação proposta por Umberto Eco, em seu Opera Aperta, do perigo de, ao mimetizar na arte as transformações contextuais do mundo, para resistir-lhes, o artista acabe por instituí-las, justificá-las e concretizá-las, tendo que escolher entre este perigo e o que creio ser a ineficiência da resistência externa (com o perigo de também acordar entre os colaboracionistas); propor a possibilidade de, num borrar último das separações entre arte e vida, sublime e grotesco, objetivo e subjetivo, levar o homem a uma nova unidade realmente libertária de inclusão total (ou pelo menos mais eficiente) de diferenças;"
§
Atração e repulsa?
Como, se diante de um vídeo/canção como este, fico sem saber em qual dos dois, Moss ou Gillespie, primeiro introduzir partes de minha anatomia, eriçada em reações e outros anagramas?
Canção do Primal Scream, liderado por Bobby Gillespie, antigo bateirista da banda The Jesus and Mary Chain, autor de alguns dos meus favoritos hinos contra o ssiisstteemmaa nos últimos anos, como o ótimo "Swastika Eyes"... aqui, Bobby Gillespie e Kate Moss "cobrem" a incrível "Some Velvet Morning", de Lee Hazlewood e Nancy Sinatra, sobre a qual quero escrever mais, mais tarde.
§
"Pois há outras formas de resistência além da negação, como propôe Theodor Adorno no ensaio "Lírica e Sociedade", ou Alfredo Bosi no ensaio "Poesia Resistência": nem só o refúgio na Idade de Ouro, nem apenas a invocação da parúsia, mas também a inserção de resistência dentro do próprio sistema. E exilar-se numa linguagem pura, não contaminada pelo mercado, pela nova configuração tecnológica do mundo, tem gerado meros ouvidos moucos por parte do público. Marjorie Perloff expôs da seguinte maneira as opções de resistência:
One may, as do the bulk of 'creative writing' teachers and students in workshops across the country, turn one's back on contemporary technology and write 'personal' poems in which an individual 'I' responds to sunsets and spiders and moths flickering on windowpanes or remembers a magical incident that occurred on a fishing trip with Father. Or one can take on the very public discourses that seem so threatening and explore their poetic potential. (grifo meu)
Precisamos rever nossas estratégias."
"Ideologia da percepção" in Inimigo Rumor n. 17 (SP/RJ: Cosac Naify/7 Letras, 2006)
Marcadores:
fashion,
música para os meus ouvidos,
poemas,
politics
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Mais ou menos de mim
Projetos Paralelos
Leituras de companheiros
- Adelaide Ivánova
- Adriana Lisboa
- Alejandro Albarrán
- Alexandra Lucas Coelho
- Amalia Gieschen
- Amina Arraf (Gay Girl in Damascus)
- Ana Porrúa
- Analogue Magazine
- André Costa
- André Simões (traduções de poetas árabes)
- Angaangaq Angakkorsuaq
- Angélica Freitas
- Ann Cotten
- Anna Hjalmarsson
- Antoine Wauters
- António Gregório (Café Centralíssimo)
- Antônio Xerxenesky
- Aníbal Cristobo
- Arkitip Magazine
- Art In America Magazine
- Baga Defente
- Boris Crack
- Breno Rotatori
- Brian Kenny (blog)
- Brian Kenny (website)
- Bruno Brum
- Bruno de Abreu
- Caco Ishak
- Carlito Azevedo
- Carlos Andrea
- Cecilia Cavalieri
- Cory Arcangel
- Craig Brown (Common Dreams)
- Cristian De Nápoli
- Cultura e barbárie
- Cus de Judas (Nuno Monteiro)
- Damien Spleeters
- Daniel Saldaña París
- Daniel von Schubhausen
- Dennis Cooper
- Dimitri Rebello
- Dirceu Villa
- Djoh Wakabara
- Dorothee Lang
- Douglas Diegues
- Douglas Messerli
- Dummy Magazine
- Eduard Escoffet
- Erico Nogueira
- Eugen Braeunig
- Ezequiel Zaidenwerg
- Fabiano Calixto
- Felipe Gutierrez
- Florian Puehs
- Flávia Cera
- Franklin Alves Dassie
- Freunde von Freunden
- Gabriel Pardal
- Girl Friday
- Gláucia Machado
- Gorilla vs. Bear
- Guilherme Semionato
- Heinz Peter Knes
- Hilda Magazine
- Homopunk
- Hugo Albuquerque
- Hugo Milhanas Machado
- Héctor Hernández Montecinos
- Idelber Avelar
- Isabel Löfgren
- Ismar Tirelli Neto
- Jan Wanggaard
- Jana Rosa
- Janaina Tschäpe
- Janine Rostron aka Planningtorock
- Jay Bernard
- Jeremy Kost
- Jerome Rothenberg
- Jill Magi
- Joca Reiners Terron
- John Perreault
- Jonas Lieder
- Jonathan William Anderson
- Joseph Ashworth
- Joseph Massey
- José Geraldo (Paranax)
- João Filho
- Juliana Amato
- Juliana Bratfisch
- Juliana Krapp
- Julián Axat
- Jörg Piringer
- K. Silem Mohammad
- Katja Hentschel
- Kenneth Goldsmith
- Kátia Borges
- Leila Peacock
- Lenka Clayton
- Leo Gonçalves
- Leonardo Martinelli
- Lucía Bianco
- Luiz Coelho
- Lúcia Delorme
- Made in Brazil
- Maicknuclear de los Santos Angeles
- Mairéad Byrne
- Marcelo Krasilcic
- Marcelo Noah
- Marcelo Sahea
- Marcos Tamamati
- Marcus Fabiano Gonçalves
- Mariana Botelho
- Marius Funk
- Marjorie Perloff
- Marley Kate
- Marília Garcia
- Matt Coupe
- Miguel Angel Petrecca
- Monika Rinck
- Mário Sagayama
- Más Poesía Menos Policía
- N + 1 Magazine
- New Wave Vomit
- Niklas Goldbach
- Nikolai Szymanski
- Nora Fortunato
- Nora Gomringer
- Odile Kennel
- Ofir Feldman
- Oliver Krueger
- Ondas Literárias - Andréa Catrópa
- Pablo Gonçalo
- Pablo León de la Barra
- Paper Cities
- Patrícia Lino
- Paul Legault
- Paula Ilabaca
- Paulo Raviere
- Pitchfork Media
- Platform Magazine
- Priscila Lopes
- Priscila Manhães
- Pádua Fernandes
- Rafael Mantovani
- Raymond Federman
- Reuben da Cunha Rocha
- Ricardo Aleixo
- Ricardo Silveira
- Rodrigo Damasceno
- Rodrigo Pinheiro
- Ron Silliman
- Ronaldo Bressane
- Ronaldo Robson
- Roxana Crisólogo
- Rui Manuel Amaral
- Ryan Kwanten
- Sandra Santana
- Sandro Ornellas
- Sascha Ring aka Apparat
- Sergio Ernesto Rios
- Sil (Exausta)
- Slava Mogutin
- Steve Roggenbuck
- Sylvia Beirute
- Synthetic Aesthetics
- Tazio Zambi
- Tetine
- The L Magazine
- The New York Review of Books
- Thiago Cestari
- This Long Century
- Thurston Moore
- Timo Berger
- Tom Beckett
- Tom Sutpen (If Charlie Parker Was a Gunslinger, There'd Be a Whole Lot of Dead Copycats)
- Trabalhar Cansa - Blogue de Poesia
- Tracie Morris
- Tô gato?
- Uma Música Por Dia (Guilherme Semionato)
- Urbano Erbiste
- Victor Heringer
- Victor Oliveira Mateus
- Walter Gam
- We Live Young, by Nirrimi Hakanson
- Whisper
- Wir Caetano
- Wladimir Cazé
- Yang Shaobin
- Yanko González
- You Are An Object
- Zane Lowe
Arquivo do blog
-
▼
2009
(149)
-
▼
fevereiro
(21)
- Lennon/Rist
- Orgulho dos amigos: Niklas Goldbach
- Programa da noite com O Moço, quinta-feira pós-ber...
- Uma pergunta, uma resposta
- Jovens poetas europeus: Damien Spleeters
- Florian Pühs & Herpes @ NBI, quarta passada
- "Subjetividades em devir"
- Orfeu de múltiplas personalidades de Orfeu
- Heine para punks
- As holotúrias dos poetas
- Imagem para as 4:48
- Entretenimento para as próprias entranhas
- Bilhete para Marília Garcia num sábado à tarde
- O que é o que é um cânone?
- As medidas de distância de Mona Hatoum
- Os ícones da minha sexualidade adolescente
- Max Martins (1926 - 2009)
- Antologias, cânones, neglectorinos & celebrities
- Dormitando na banheira quente ou meditação com chá...
- O envolvimento de Miss Moss em outra de minhas fig...
- Os fashionistas da resistência
-
▼
fevereiro
(21)
3 comentários:
Olá, Ricardo. Vejo que há poetas que usam Kate Moss como bode expiatório e acham que isso é um grande posicionamento político... Será que isso tem relação com algum autor sobre que Fabio Weintraub escreveu?...
Abraços!
Pádua,
há, na verdade, vários self-righteous poetas-juízes com esta mentalidade política simplista e dualista de teenager-revoltado-com-o-sistema, mas com certeza existe um poeta-juiz específico que andou estapeando Miss Moss com odes requentadas ao mac-burguês.
beijos
Domeneck
Ricardo,
Esta citação da M. Perloff me chamou muito a atenção quando li pela primeira vez o seu Ideologia da Percepção.
Acho que realmente não há mais sentido, aos poetas, a impregnação de um saudosismo de um tempo que nem mesmo eles viram. Porém, acredito que cada caso deva ser analisado de uma forma específica. Talvez a tentativa de contemporaneização de Graça Aranha (como persona) ou de Blaise Cendrars (com Poésie=Publicité) não seja válida. É claro que há vários poetas que compreendem a forma de uso do sistema em seu jogo de linguagem. Mas, mesmo no séc. XXI, parece que continua mais fácil ser descompassado e não tomar o risco de usar Brigitte Bardot (como fez Caetano) ou Kate Moss (como você fez). Deitam-se enfermos e dizem como um último suspiro: Oh! Que tristeza para a poesia, esta arte da Alta Cultura.
Postar um comentário