Como combater o hábito ocidental, já tão enraizado, de compartimentar o plural até que este se torne dual, cavar uma trincheira que o divida e erigir o monolito de outra dicotomia? Não quero retornar ao velho debate brasileiro da letra-de-música X poema. Também não compartilho do fervoroso ativismo anti-literário de Zumthor, por exemplo. Nem pretendo fazer uma defesa da oralidade contra a escrita, tentando instituir a naturalidade de uma sobre a artificialidade da outra. Ora, natureza é discurso e artifício. Linguagem. Produtor de texto: poeta. Cristalizado em escrita, fluindo em oxigênio e gás carbônico, suor da mão, gotículas de saliva.
VERSUS
§
É claro que, muitas vezes, não se percebe que o trabalho com a oralidade requer o mesmo rigor e estudo que o trabalho com a escrita exige. Os poetas literários não têm, em geral, preparo vocal para a leitura de seus próprios poemas.
Há o medo da retórica, o medo do discursivo.
Há poetas literários, porém, com leituras excelentes de seus textos, como Giuseppe Ungaretti e Charles Olson. São exemplos de leituras que vivificam o texto.
(Giuseppe Ungaretti lê o poema "Inno alla morte")
(Charles Olson lê "Maximus to Gloucester, Letter 27 [withheld]", 1966)
Percebe-se claramente a filiação bárdica de Olson. Foi o homem, afinal, que defendeu a respiração do poeta como base rítmica para a escrita.
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É claro que muitas características do poema transformam-se no processo de oralização, assim como certas possibilidades poéticas intrínsecas do trabalho oral se perdem na página. Tomemos um exemplo extremo: um poema de Augusto de Campos:
O vídeo, aqui, oferece um suporte de união para o oral e o escrito.
É interessante notar que Augusto de Campos escreve que tudo está dito e, em seguida, que tudo está visto. Oralizado, o poema se transforma e perde toda a sua carga visual, é verdade. O difícil equilíbrio triplo do verbo, do vocal e do visual?
Já com um poema como "cidade/city/cité", uma vez ouvido, percebemos que sua existência na página é incompleta, trata-se de um texto que exige oralização:
(Augusto de Campos - "cidade/city/cité", texto de 1963, performance de 1985)
§
A voz a doar tantos ápices ao literário.
Como os poemas dos provençais? Ora, seguiremos olvidando
que os grandes textos literários de Arnaut Daniel eram letras-de-música?
Estou a blasfemar ou voltaremos a ouvi-los?
::: Arnaut Daniel :::: performance moderna para o poema "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel, ressuscitado por musicólogos especialistas na poesia-música medieval, aqui guiados pelo grande Thomas Binkley (1932 - 1995):::
Uma das primeiras sextinas.
Alta literatura e letra-de-música.
Poesia oral, poesia escrita.
Parâmetros para uma poesia verdadeiramente verbiVOCOvisual.
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Dois grandes exemplos modernos de harmonia de composição, reunindo escrita e oralidade: Gertrude Stein e Ghérasim Luca:
Gertrude Stein - "If I told him - a completed portrait of Picasso" from Revista Modo de Usar on Vimeo.
(Gertrude Stein - "If I told him: A completed portrait of Picasso")
(Ghérasim Luca - "Passioneément")
§
Medo do discursivo? Prefiro os que têm coragem de enfrentá-lo.
Uma das características mais interessantes dos poetas em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E é justamente a investigação que fazem sobre o "discurso", dissecando-o e minando-o por dentro: tática de guerrilha.
Discursivo ou anti-discursivo, o poema abaixo?:
Elegy
Lyn Hejinian
I am writing now in preconceptions
Those of sex and ropes
Many frantic cruelties occur to the flesh of the
.......imagination
And the imagination does have flesh to destroy
And the flesh has imagination to sever
The mouth is just a body filled with imagination
Can you imagine its contents
The dripping into a bucket
And its acts
The ellipses and chaining apart
The feather
The observer
The imagination, bare, has nothing to confirm it
There's just the singing of the birds
The sounds of the natural scream
A strange example
The imagination wishes to be embraced by freedom
It is laid bare in order to be desired
But the imagination must keep track of the flesh
.......responding--its increments of awareness--a
.......slow progression
It must be beautiful and it can't be free
§
Elegia
Eu agora escrevo em preconcepções
Aquelas de sexo e cordas
Muitos frêmitos violentos ocorrem à carne da
.......imaginação
E a imaginação tem em verdade carne a destruir
E a carne tem imaginação a lacerar
A boca é apenas um corpo preenchido de imaginação
Você pode imaginar seus conteúdos?
O gotejar a um balde
E seus atos
As elipses e encadeamento à parte
A pluma
O expectador
A imaginação, vazia, nada possui que a confirme
Há apenas o cantar dos pássaros
Os sons do grito original
Estranho exemplo
A imaginação deseja ser abraçada pela liberdade
É esvaziada para poder ser objeto de desejo
Mas a imaginação precisa da observância à carne
.......em resposta – seus incrementos de vigilância – uma
.......progressão vagarosa
Precisa ser bela e não consegue libertar-se
(tradução de Ricardo Domeneck,
publicada no número de estréia da revista
Modo de Usar & Co.)
§
__ Quem é sua cantora favorita?
__ Safo.
§
Mas é um equívoco associar, tão apressadamente, oralidade com discursividade, e esta com frouxidão da escrita. Exemplo drástico para possível ilustração do argumento: o poeta menos retórico que conheço é um poeta sonoro --- o francês Henri Chopin. Ouça o poema "L´énergie du sommeil":
(Henri Chopin, apresentando seu trabalho em Berlim, 2003)
§
Seria possível, no entanto, acusar alguém como Bernard Heidsieck de ser "demasiado discursivo"?
(Bernard Heidsieck, performance em Paris.)
§
Ora, isso acontece quando julgamos a poesia CORPoral sob parâmetros literários.
São trabalhos distintos e ambos são trabalhos poéticos... é o que Paul Zumthor chamava de "hegemonia da escrita" em nossa cultura que faz com que todos os outros trabalhos poéticos recebam rótulos
poesia "sonora"
poesia "em vídeo"
poesia "visual"
enquanto apenas a poesia "escrita" (ou poesia "literária") reserva-se o direito de não usar seu rótulo
e auto-proclamar-se POESIA simplesmente.
É uma questão de ênfase (ou, se quisermos politizar a discussão, de hegemonia).
§
Não há por que criar uma oposição entre trabalhos que investigam diferentes ângulos da poesia.
Veja/ouça bem:
por exemplo, quando se discute no Brasil se letra-de-música é poesia, o que se está perguntando, na verdade, é se um texto composto para a voz pode funcionar como Literatura. A pergunta parece-me simplesmente errada, desde o princípio. Um texto para a voz não tem a menor obrigação de também funcionar como Literatura. Se o faz, ao ser transplantado para a página, torna-se um texto literário e pode ser julgado como tal, mas a atividade me parece muitas vezes pueril.
Não consigo deixar de ter o mesmo respeito por poemas líricos (que nos acostumamos a chamar de cançoes) como os de Beth Gibbons, a poeta associada ao coletivo Portishead, quanto pela pesquisa de Edmond Jabès, a que ele chamava de "busca pela autoridade perdida do Livro".
(Beth Gibbons - "Cowboys", um dos grandes poemas dos anos 90, aqui acompanhada pelo Portishead.
A propósito: a tradição de poetas com acompanhamento musical é algo antiquíssimo.)
Edmond Jabès, em tradução de Caio Meira:
O livro seria, assim, apenas o espaço
circunscrito pela palavra aberta à palavra.
Não somos escritos onde ela se escreve,
mas inscritos onde ela se apaga.
Há uma linguagem própria que a inscrição
tumular nos impõe e nos força ao silêncio.
Pesado silêncio em busca de um signo.
Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós
mesmos do que poderíamos sê-lo no
segredo de nossas confissões; palavra
de uma palavra à qual não ousamos
ligar nosso nome; pois se somos
tributários dela, ela, contrariamente,
mais nos escapa do que nos pertence.
Brancura, brancura de sangue.
Séculos de orgulho e de derrotas
jazem no vocábulo. Você
os desperta ao revelá-lo.
Um livro se entreabre
quando nos abandonamos.
§
A voz pode muitas coisas que a escrita não pode, e vice-versa.
Há textos que foram criados, pensados para a página, e adquirem ali seu potencial (quase) completo. Já cheguei a chamar o "Coup de dès" de Mallarmé de coroamento da poesia como escrita, poesia literária, talvez um poema para os olhos, mais que para os ouvidos. Daí a fascinação do grupo Noigandres? Há poetas, no entanto, em que a voz parece estar implícita no texto, recuperando os volteios do oral. Algo como os poemas, por exemplo, de Frank O´Hara, ainda que o próprio O´Hara não me pareça um grande leitor de seus próprios poemas:
Having a coke with you
Frank O´Hara
is even more fun than going to San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne
or being sick to my stomach on the Travesera de Gracia in Barcelona
partly because in your orange shirt you look like a better happier St. Sebastian
partly because of my love for you, partly because of your love for yoghurt
partly because of the fluorescent orange tulips around the birches
partly because of the secrecy our smiles take on before people and statuary
it is hard to believe when I’m with you that there can be anything as still
as solemn as unpleasantly definitive as statuary when right in front of it
in the warm New York 4 o’clock light we are drifting back and forth
between each other like a tree breathing through its spectacles
and the portrait show seems to have no faces in it at all, just paint
you suddenly wonder why in the world anyone ever did them
.................................................................................I look
at you and I would rather look at you than all the portraits in the world
except possibly for the Polish Rider occasionally and anyway it’s in the Frick
which thank heavens you haven’t gone to yet so we can go together the first time
and the fact that you move so beautifully more or less takes care of Futurism
just as at home I never think of the Nude Descending a Staircase or
at a rehearsal a single drawing of Leonardo or Michelangelo that used to wow me
and what good does all the research of the Impressionists do them
when they never got the right person to stand near the tree when the sun sank
or for that matter Marino Marini when he didn’t pick the rider as carefully
.................................................................................as the horse
it seems they were all cheated of some marvellous experience
which is not going to go wasted on me which is why I’m telling you about it
Tomar coca-cola com você (transcontextualização de Ricardo Domeneck)
é ainda mais divertido que ir a São Francisco, La Jolla, Tijuana, Tecate, Ensenada
ou ter o estômago revirado de enjôo na Madison Avenue em Nova Iorque
em parte porque nesta camisa laranja você me parece um São Francisco melhor mais feliz
em parte por causa do meu amor por você, em parte por causa do seu amor por vodca
em parte por causa das margaridas laranjas fluorescentes cercando os ipês
em parte por causa do mistério que nossos sorrisos vestem diante de gente e estatuaria
é difícil de acreditar quando estou com você que pode haver algo tão imóvel
tão solene tão desagradavelmente definitivo quanto estatuaria quando bem em frente
no ar quente das quatro da tarde em São Paulo nós vagamos em círculos um entre o outro
sem parar como uma árvore respirando por suas oftálmicas
e a exposição de retratos parece não ter qualquer rosto, só tinta
você de repente pergunta-se por que diabos alguém deu-se ao trabalho de fazê-los
.................................................................................eu olho
você e preferiria olhar você a todos os retratos do planeta com exceção
talvez do Auto-Retrato com corrente de ouro de vez em quando que está no MASP
a que graças aos céus você ainda não foi então podemos ir juntos pela primeira vez
e o fato de que você se move tão lindo resolve mais ou menos o Futurismo
assim como em casa eu nunca penso no Nu Descendo uma Escada ou
num ensaio um único desenho de Da Vinci ou Michelangelo que antes me boquiabria
e de que adianta aos Impressionistas toda a sua pesquisa
quando eles nunca conseguiam a pessoa certa para encostar-se à árvore ao pôr-do-sol
ou a propósito Marino Marini se ele não escolheu o cavaleiro com o mesmo cuidado
.................................................................................que o cavalo
é como se eles tivessem sido fraudados em alguma experiência maravilhosa
que eu não pretendo desperdiçar o motivo pelo qual estou aqui falando tudo isso para você
§
§
É legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a escrita,
é legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a oralidade.
Em minha busca pelo borrar de fronteiras e delir de dicotomias, interesso-me pelos que vivem em guerra com a alfândega entre as duas. Há, no Brasil de hoje, bons exemplos destes poetas, como Arnaldo Antunes, Ricardo Aleixo e Marcelo Sahea.
(Arnaldo Antunes - "O mar")
§
Real irreal from ricardo aleixo on Vimeo.
(Ricardo Aleixo - "Real irreal")
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(Marcelo Sahea - "2415")
§
§
Ao mesmo tempo, fascina-me a pesquisa daqueles poetas que seguem trabalhando com o TEXTUAL sobre a página, investigando as falhas nas malhas do discurso:
Classificação da secura
Marília Garcia
I
agora já é quase amanhã mas queria
dizer apenas que é muito
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio
indica que já é depois. lá é sempre
depois. parecia um nome
italiano com aquele som ecoando e a
resposta em outra língua mostrava
a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para
não dizer algo preciso
para não terminar: com ela
saio cedo todos os dias. fico de
vez em quando escondido
no porto. tomarei
o transmediterrâneo e comerei
calçots,
.....................................até chegar o instante antes
do instante, momento em que olha para o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
.....................................para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)
II.
alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
se acostumar aos movimentos em câmera
lenta, à descida pela escada em
espiral:
................recorta os sons
de cada quarto e apaga as
perguntas que mais detesta
responder. como aquela noite
no ônibus, ruídos do rádio e
pedaços de frases atiradas,
sempre girando as horas.
........................................ver a paisagem
sem ela e precisar o tamanho da ausência
com poucos dados. sabe que as baleares ficam
do outro lado do mar, e custa muito chegar
anos depois e dizer. ergue os olhos para
fixar o que tem ali e não perder
de vista a secura.
§
E por que impediríamos o estritamente sonoro?
(Philadelpho Menezes - "Poema não música")
O estritamente visual?
(Joan Brossa - "Eclipse")
Os títulos contam?
Existe o estritamente textual? Ou todo texto implica voz e olho?
§
Pluralidade de pesquisa segue sendo o caminho para uma poesia que se orgulha de cada um dos seus cinco sentidos.
6 comentários:
Que ótimo este post, Ricardo. Pretendo voltar aqui várias vezes.
bjs
Andréa
Ricardo,
Que lindo este poema de Marília. Você sabe quando foi escrito?
bjs
Andréa,
ótimo ter a visita de uma poeta crítica como você.
§
Nora,
este poema é um dos meus favoritos no livro "20 poemas para o seu walkman" (SP: Cosac Naify, 2007). Não conheço a data de sua composição, mas creio que o li pela primeira vez, em manuscrito, em 2004. Imagino que seja dos primeiros anos do século.
Beijos
Domeneck
ricardo, toda vez q vejo esse tipo de conversa, penso: mcluhan explica :^)
é, tb não gosto das expressões poesia visual, poesia sonora etc.
qdo me chamam de poeta visual, fico meio incomodado.
um poeta é um poeta. pra mim, o básico da poesia é trabalhar com signos simbólicos (na definição de peirce).
adoto a seguinte definição de poesia: ARTE DE TRANSFORMAR SIGNOS SIMBÓLICOS EM SIGNOS ICÔNICOS.
e, pra fazer essa arte, não importa se o poeta se utiliza de sons, de palavras impressas no papel, de palavras em movimento na tela do micro ou de outro medium qquer. (obviamente, dependendo do medium, o efeito da obra sobre o fruidor acaba sendo diferente. o meio é a mensagem, como já estamos carecas de saber.)
o q se deve considerar é q, com a invenção gutenberguiana, os poetas trocaram os ouvidos pelos olhos. e isso é algo muito difícil de ser modificado depois de centenas de anos de tradição de poesia escrita/impressa.
enfim, esse papo dá pano pra muitas mangas.
abrações,
paulo
Olá, Ricardo. O título da postagem, alguns argumentos e as imagens do aparelho fonador e da mão me lembram do livro André Leroi-Gourhan, "O Gesto e a palavra". Abraço.
Caros Paulo e Sandro,
muito bem lembradas, estas referências, tanto Macluhan como Leroi-Gourhan. Tantos escreveram sobre a poesia oral. Como nao mencionar Paul Zumthor? Ou Mladen Dolar? Ou tantos outros poetas do século XX, como Hugo Ball ou Gil J. Wolman? Se voltarmos no tempo, muito se escreveu a respeito. Tentei apenas algumas referências, aquelas que uso em minha pesquisa.
Grande abraco,
Domeneck
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