Não se trata de querer impor a própria visão sobre o mundo, mas da consciência de não poder escapar dela: o mundo pelos próprios olhos.
Lembro-me de ler, aos 20 anos, o livro Do Sentimento Trágico da Vida, de Miguel de Unamuno, que me causava redemoinhos na cachimónia mística, em que ele escreve que não são nossas idéias que nos tornam pessimistas ou otimistas, mas nosso otimismo ou pessimismo vem a definir que idéias teremos ou aceitaremos. Ignorando por ora o dualismo típico dos primeiros modernistas, esta afirmação ficou em algum canto do crânio. Nossa disposição estabelecendo a posição e ângulo de nosso monóculo? Mas Unamuno também escreveu: "Consciência, conscientia, é conhecimento partilhado, é consentimento, e con-sentir é con-padecer."
Como se os milhões de umbigos garantissem a descentralização do universo? Houve um tempo em que acreditava que os heterônimos de Fernando Pessoa eram sua estratégia para um realismo descentralizado. Talvez. É um ângulo, uma perspectiva. No entanto, mesmo o plural Murilo Mendes observou o caos por uma única janela. Proposição de forma convincente, em minha opinião, por Wittgenstein, ao escrever no Tractatus Logico-Philosophicus que “o eu entra na filosofia pela via de que o ‘mundo é meu mundo’.”
Enquanto muitos poetas buscam a tal da objetividade, seus sujeitos lavram atas de possessão do mundo, cartografando o universo por seus monóculos.
"& a cidade não é o
mapa mas o mapa
está correto
pois entre os sujeitos
que o
parto consagra estão
apenas os sujeitos com
corpo"
(a cadela sem Logos, 2007)
O inevitável. O inescapável. Colonialismo perceptivo dos alephianos. Portanto, expor o imposto.
"o mono-
lítico, falo: eu
sujeito a objeções"
(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)
Como um minimalismo que propusesse ao poeta a precariedade da sua visão, a unilateral. Aceitação da pele como parte da equação.
Fácil despencar em solipsismo, sim. Mas é a alegria difícil. “Aquele que conhece todo o resto sem ser ele mesmo conhecido é o sujeito", disse o volitivo Schopenhauer, mas nem mesmo TODO o resto conhece este sujeito limitadíssimo.
Não é narcisismo, pois não se trata de contemplarmos, em apologia, Narciso sobre as águas. Nesta fábula, as águas são a personagem principal. As águas, o limite, “o eu filosófico não é o homem, não é o corpo humano, ou a alma humana, de que trata a psicologia, mas o sujeito metafísico, o limite – não uma parte do mundo.”
Mundo como questão de temperamento?
Foi Lyotard que propôs o fim de nossa crença nas grandes narrativas, que unificavam a percepção discursiva de uma época, como característica de nosso tempo. Mas, os mais inteligentes perguntaram, isso não é também uma "grande narrativa"?
A falácia do Zeitgeist. Quando ouço esta palavra, sinto vontade de perguntar: "Sob que jurisdição?"
Mas os saudosos e nostálgicos da época em que a Terra
era o centro do Universo gritam: "relativismo! relativismo!"
Ah, e tudo isso apenas para dizer que a primavera está chegando em Berlim!
O berlimbo invernoso começa a se transformar, depois de 743 dias de neve, gelo e cinzânsias, os cafés põem novamente nas calçadas as mesas, alguns até ousam expor ao mundo o pescoço, a garganta. A ousadia, coragem de expor ao mundo a garganta.
Definição de poesia para os próximos 23 minutos: "Chacoalhar as águas para aborrecer Narciso."
O modernismo, afinal de contas, não passou de um conflito meteorológico.
Que perdas e ganhos pessoais levam T.S. Eliot a escrever The Waste Land no mesmo momento em que William Carlos Williams escrevia Spring and All? Note, note a diferença dos títulos. Eles viviam na mesma modernidade? Zeitgeist?
"APRIL is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers.
Summer surprised us..."
(T.S. Eliot, The Waste Land, 1922)
§
A última réstia de júbilo e primavera em Eliot é uma rima em gerúndios. Eu o perdôo tudo, por causa destes gerúndios,
que mostram que ele ainda respirava o mesmo oxigênio que Stein e Williams. O verão jamais nos poderia surpreender.
§
Lifeless in appearance, sluggish
dazed spring approaches—
They enter the new world naked,
cold, uncertain of all
save that they enter. All about them
the cold, familiar wind—
Now the grass, tomorrow
the stiff curl of wildcarrot leaf
One by one objects are defined—
It quickens: clarity, outline of leaf
But now the stark dignity of
entrance—Still, the profound change
has come upon them: rooted they
grip down and begin to awaken
(William Carlos Williams, Spring and All, 1923)
§
Café nas calçadas. Moços com pescoços. Rapazes com calcanhares.
"Ricardo, o copo está cheio pela metade ou vazio pela metade?"
Cheio. Cheio. Na expectativa do transbordar.
Ainda que pela metade. Água na cintura.
Eu suporto, se vier, uma nova decepção.
Traduzir errado é uma alegria, primavera é um talvez manual.
"Como a água modela o copo."
§
"There is coagulation in cold and there is none in prudence. Something is preserved and the evening is long and the colder spring has sudden shadows in a sun. All the stain is tender and lilacs really lilacs are disturbed. Why is the perfect reestablishment practiced and prized, why is it composed. The result the pure result is juice and size and baking and exhibition and nonchalance and sacrifice and volume and a section in division and the surrounding recognition and horticulture and no murmur. This is a result. There is no superposition and circumstance, there is hardness and a reason and the rest and remainder. There is no delight and no mathematics."
(Gertrude Stein, Tender Buttons, 1914)
§
A terra sobre a qual ajoelha-se Narciso e que este ignora enquanto contempla-se na água.
§
Ah, sim, não se esqueçam que, invariavelmente,
"O céu cai das pombas"
mas podemos, como escreveu Marília Garcia, "ficar no quarto medindo o / nível do mar para descobrir / onde pôr os peixes."
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3 comentários:
Esse é um dos textos + bonitos que li até agora nessa coisa chamada Literatura.
A única coisa que posso fazer após este comentário é agradecer a sua generosidade incrível.
Grande abraço,
RD
Prezado Ricardo,
eu li estas linhas que escreveu como um poema, muito embora fosse tentado a vê-las como espécies de proposições. Por fim, optei, sem mais lutar, em vê-las apenas como poemas, no que essa opção ajuda a ultrapassar os contornos enunciativos. Por que digo isso? Porque, como o primeiro comentador, gostei muitíssimo do que escreveu. No mais, gostaria de agradecer pela grande resposta que se deu o trabalho de formular para o meu incômodo, por falta de experiência com os eventos, com a leitura de poesias. A resposta que forneceu aqui e aquela que escreveu no outro sítio. Penso que concordei no ponto essencial, e no que não concordei estive bastante impactado com as teses, o que ainda me fará pensar durante um bom tempo, concordo que a voz prolongue o poema. Mas penso que voz prolonga a escritura e não outra coisa. Ainda discordo da recuperação da espontaneidade medieval, da logovivacidade, mas penso que é um motivo para outros assuntos. E, para terminar, aprendo bastante com as suas convicções, ainda que não sejam as minhas, o que permite insistir na compreensão dos seus argumentos e efeitos.
Um forte abraço,
Cesar Kiraly
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