José Leonilson - "Ninguém" (1992)
Os elogios que podia tecer a Belchior o fiz na revista. É difícil fazer entender por vezes a importância que estes trovadores brasileiros, tão hábeis em sua escrita, tiveram e têm para a formação de tantos poetas nos seus anos de verdura. Gente como Belchior (ou Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Cartola, Tom Jobim, Dolores Duran, Caetano Veloso, Maysa Matarazzo, Chico Buarque, Gilberto Gil, e longo etc.) é quem primeiro nos apresenta à arte da palavra. Enquanto ainda estamos distraídos. Nada mais do que crianças, antes de sermos leitores, ouvindo versos soarem pelo rádio e na voz da mãe ao tanque, melancólica versejando em performance própria coisas como: "Por isso cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós / Que somos jovens"... e o susto que isso gerava numa criança um tiquinho hiper-sensível demais. A coisa de surpresa que era ouvir "Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro", pensando: "então se pode fazer isso com a língua?". Poderia citar aqui sustos de língua na língua semelhantes em canções de Ismael Silva, Ana Terra, Tonico e Tinoco, Angela Rô Rô, ou Antônio Candeia.
Signos primevos do país no Cânion do Rio Poti, entre o Ceará e o Piauí
Ao mesmo tempo, hoje, 1° de Maio - Dia do Trabalho, enquanto o fantasma de Belchior cantava pela casa, li o relato do poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves que se encontra neste momento na terra de Belchior, o Ceará, e onde viajou ao sítio histórico do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato. Este ano, entre 10 de maio e 12 de novembro, relembramos os 80 anos do início e fim do que seria o massacre perpetrado por Getúlio Vargas, com seu Ministro da Guerra de então - Gaspar Dutra, mais tarde presidente - e pelos coronéis da terra, quando a Força Aérea Brasileira pela primeira vez bombardeou civis - cidadãos brasileiros – em seu próprio solo. É importante, neste ano de comemorações de experiências comunais fora do país, que conheçamos o que foi a comunidade liderada pelo beato José Lourenço. E mais, neste ano de assalto aos direitos dos trabalhadores brasileiros pelo (des)governo de Michel Temer, é importante lembrarmo-nos de experiências alternativas de organização do trabalho em solo brasileiro, e do que os governos do país já foram capazes de fazer contra aqueles que deveriam representar, sendo pagos para servi-los.
Sobreviventes do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Ceará (1937)
"Nós falamos, eles não vêem. Nós sentimos, eles cobram" [1991]
do cearense José Leonilson (1957-1993)
E, nos últimos dois anos, a importância que a cearense Érica Zíngano teve em minha vida em Berlim, nossa amizade, o respeito que tenho por seu trabalho. É uma de minhas interlocutoras favoritas, e como é bom papear com ela, que já me disse: "Não se esqueça, Ricardo, que eu sou o teu canal com o maravilhoso!", e é. Ainda que seu conterrâneo Belchior tenha ironizado o grande baiano, dizendo que "nada é divino, nada é maravilhoso"?
Texto de Érica Zíngano em homenagem a Dora Barcelos (1945–1976) no quadragésimo aniversário
de seu suicídio em Berlim. "histórico / para solicitar uma placa / ontem / terça-feira, 31 de maio de 2016",
com Luísa Nóbrega e Rafael Mantovani.
Pois eu passei o dia todo com cearenses. Pensando em Belchior e nos 80 anos do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Pensando em minha amiga Érica Zíngano e no companheiro Eduardo Jorge, com quem estive em Zurique há apenas 3 dias. No companheiro Diego Vinhas, que hoje mesmo me ajudava a corrigir a diagramação de um poema de Orides Fontela para a Modo de Usar & Co. Foi aí que me veio essa oração aqui:
Ao som de uma canção de Belchior,
ora faço essa oração:
que eu não morra sem ver o Cariri,
concidadão Vinhas,
toque pé um dia o chão do Crato,
concidadã Zíngano,
respire vento em Juazeiro do Norte,
concidadão Jorge,
e ouça em Caucaia em suas vozes
a canção de Belchior.
O que segue, abaixo, é uma lista das leituras que fiz hoje, em homenagem aos cearenses que conheço e não conheço. Poetas e trovadores do estado que ainda não conheci, mas de onde saiu muita gente que respeito. Não há ordem de importância, nem cronológica. São poemas e canções nascidos em corpos nascidos no Ceará, que entraram pelo meu corpo hoje.
CEARÁ NOS MEUS OLHOS E OUVIDOS
Ednardo - "Longarinas", do álbum Berro (1976)
§
Eduardo Jorge (Fortaleza, 1978)
Primeiro de maio
Moro na cidade explicada
em várias línguas,
muitas delas não-latinas:
não entendo a cidade na qual vivo,
todavia enquanto me banho
ou quando os vizinhos têm sexo,
as explicações da cidade,
palavra por palavra, entram por
um ouvido e saem pelo outro,
o letreiro Roma 24 horas
anuncia falanges à dúzia:
Rômulo, Remo, por exemplo,
gritam "leite de loba" ou "hora da sopa"
E, assim, desço banhado
com uma colher de prata no bolso
do roupão roubado bordado
Immer der Sonne entgegen.
Enquanto a sopa some
se traduzem no interior decorado
e burguês do crânio-quarto
os meses, as horas e os instantes
dos uivos misturados às
piadas para acordar
o homúnculo que tenta dormir
dentro da cabeça.
Minha corcova aumenta enquanto ouço
incompreensíveis, as repetidas explicações.
*
Homens sem livros
Naquele grande prédio cinza
ficam os homens sem teses brilhantes.
No café da manhã
iniciam a ladainha dos erros,
onde poderiam ter sido melhores,
detalham cada arrependimento.
Imperfeitos, com hálito de anjo,
passeiam por outras preferências
de pães, pela inexatidão de açúcares
e açucenas desfocadas sob fundo negro.
Antes que a manhã acabe, deliciam-se
com cada ideia sem realização
sobre as duzentas páginas que jamais
foram cinco, e trocam elogios
de gravatas. Ao meio-dia, o zênite.
Silêncio, pois pensam no detalhe
de cada erro que cresce.
Fazem cálculos sobre onde podem
ser atacados e por quem.
Até escutam os estômagos
digerindo o arroz, o frango, as cenouras.
No pátio interno há um teatro
Boa parte da tarde, encenam ressentimentos
com a alegria caindo aos pedaços.
À noite, eles se recolhem em suas celas,
hora de pensar o erro seguinte.
Ali as teorias são frágeis, brilhantes, encantadoras,
mas não espere uma única linha.
§
Rodger Rogério - "Susto" (1973)
§
Érica Zíngano (Fortaleza, 1980)
fios de ovos pra viagem
para a minha avó
a minha avó morreu antes
de me ensinar a cozinhar
ela também não ensinou
a minha mãe a cozinhar
a minha mãe é canhota
e não tinha a menor chance
de dar certo na cozinha
dizia a minha avó
repetia a minha mãe
me explicando o porquê
de ter demorado tanto
pra aprender a cozinhar
(a minha mãe não se lamenta
da minha avó porque hoje
a minha mãe já sabe cozinhar
mesmo sendo canhota)
mesmo tendo morrido antes
de me ensinar a cozinhar
a minha avó uma vez tentou
me ensinar a cozinhar
quando eu tinha mais ou menos
oito anos de idade
foi um desastre completo
porque quando eu fui pegar
a chaleira quente com um pano
pra colocar água no arroz
o pano começou a pegar fogo
e fez um pequeno incêndio
na cozinha da minha avó
coisa que ela controlou muito
rápido porque estava ali
por perto administrando tudo
coisa que a minha avó fazia
muito bem era fios de ovos
todo natal tinha fios de ovos
com frutas cristalizadas no peru
pra tomar com sidra cereser
antes da ceia era uma festa
tenho sempre essa lembrança
dela fazendo fios de ovos
na cozinha infelizmente
a minha mãe não aprendeu
a fazer fios de ovos com a minha avó
nem a minha avó teve tempo
de me ensinar a fazer fios de ovos
que são a coisa mais difícil do mundo
de fazer então todo natal
eu sempre compro pronto
peço fios de ovos pra viagem
mas eles nunca têm o sabor
dos fios de ovos da minha avó
as saudades que eu tenho
da minha avó são as saudades
dos fios de ovos da minha avó
acho que o meu irmão tem saudades
diferentes da minha avó
mas nunca conversamos sobre isso
*
teoria dos gêneros
este poema é, e não haveria como não ser, dedicado à minha mãe
Lyrika® é um remédio contra fibromialgia que a minha mãe toma todas as noites (antes de dormir) quando está em período de crise. A fibromialgia é uma espécie de reumatismo – só que dos músculos, tendões e ligamentos – e causa dor, fadiga, indisposição, dentre outros sintomas. Além de tomar o Lyrika® (todas as noites) antes de dormir, a minha mãe faz três sessões de fisioterapia por semana, o que ajuda a diminuir bastante a dor, afirma convicta. O Lyrika® é fabricado pela Pfizer™, indústria farmacêutica responsável por arrematar a maior fatia do mercado de medicamentos para o coração: o Norvasc®, que a minha mãe também toma (todas as noites antes de dormir), é, sem dúvida, o mais vendido para pressão alta. De origem norte-americana, a Pfizer™ tornou-se conhecida em todo o mundo pela fabricação do Viagra® que, por incompatibilidade de gênero, claro, a minha mãe não toma.
(esse poema foi escrito com dados retirados do Google Inc. e a poeta se exime da responsabilidade pela veiculação de quaisquer dessas informações. infelizmente, parece que está fazendo propaganda para a Pfizer™, apesar de parecer, ela garante que a intenção primeira não era a de fazer propaganda, mas a de fazer uma singela homenagem aos hábitos medicamentosos de sua mãe: se falhou em tal empreitada, pede desculpas e avisa que continuará tentando)
§
§
Alcides Neves - "Tempo de fratura" (1979)
§
Diego Vinhas (Fortaleza, 1980)
Sagitário
você traz de longe este talento para cair
de escadas? você mimetiza
cidades numa coleção de canecas de louça?
você sabia que Anna Akhmátova virou nome
de uma (e da luz morta
que nos chega de uma estrela? você foi
manhã de chuva em alguma vida passada?
você reza? você já dançou sozinha
como se o mundo
se resumisse a paredes e velocidade, com
alguma rouca alegria? você deixou
na infância uma noite de tédio, auréola
empenada e asas
de arame? você mentiria
para ter em estoque todos os sonhos
bons que pudesse coagir? você partilha
o quarto com um zoo imaginário? você detesta
cigarros? você teme que as crianças
se despedacem quando em seu colo? você
aceita ficar sempre por aqui?
Sob estrelas
vistas como corpo de delito de um projétil
que esburacasse tanto a lona negra do céu
a quase simular (estas escaras de luz)
um Pollock ainda mais feroz - quanto de atrito
cabe em um hora assim: o seu sono e o dos barcos
à praia, maré que a noite vestiu de fuligem,
débil teatro para ninguém? treva e ruído
de ventilador vestem o quarto, singram através
da calma de vê-la dormir (longe a lua ao rés-
do-chão no reflexo da poça, um sonho puído,
um sonho e só, talvez). mas tudo apaga, a vertigem,
tudo zera- o poema parece dizer - os arcos
da estátua à beira-mar, tudo expira, qual detrito
do dia anterior, a cama, ou pontos de cruz
rebobinados, volvendo a ser linha (sem véu
a manhã engatilha incêndio: na jaula um sol réptil)
§Diego Vinhas (Fortaleza, 1980)
Sagitário
você traz de longe este talento para cair
de escadas? você mimetiza
cidades numa coleção de canecas de louça?
você sabia que Anna Akhmátova virou nome
de uma (e da luz morta
que nos chega de uma estrela? você foi
manhã de chuva em alguma vida passada?
você reza? você já dançou sozinha
como se o mundo
se resumisse a paredes e velocidade, com
alguma rouca alegria? você deixou
na infância uma noite de tédio, auréola
empenada e asas
de arame? você mentiria
para ter em estoque todos os sonhos
bons que pudesse coagir? você partilha
o quarto com um zoo imaginário? você detesta
cigarros? você teme que as crianças
se despedacem quando em seu colo? você
aceita ficar sempre por aqui?
*
Sob estrelas
vistas como corpo de delito de um projétil
que esburacasse tanto a lona negra do céu
a quase simular (estas escaras de luz)
um Pollock ainda mais feroz - quanto de atrito
cabe em um hora assim: o seu sono e o dos barcos
à praia, maré que a noite vestiu de fuligem,
débil teatro para ninguém? treva e ruído
de ventilador vestem o quarto, singram através
da calma de vê-la dormir (longe a lua ao rés-
do-chão no reflexo da poça, um sonho puído,
um sonho e só, talvez). mas tudo apaga, a vertigem,
tudo zera- o poema parece dizer - os arcos
da estátua à beira-mar, tudo expira, qual detrito
do dia anterior, a cama, ou pontos de cruz
rebobinados, volvendo a ser linha (sem véu
a manhã engatilha incêndio: na jaula um sol réptil)
Karim Aïnouz - Madame Satã (2002)
Everardo Norões (Crato, 1944)
Tiradeira de leite
entre os dedos
o fulgor do leite
filtra a desordem solar
o curral aprisiona
o sossego dos bichos
o negro viscoso do olho
a refletir vasilhas
o ramo da árvore
a sombra do regaço
cedo a manhã cheira
e tudo se acorda
na precisão do mato
ou do alento
que chega do açude
no remanso das entranhas
dessas nuvens lentas
lentas
lentas
lentas
*
Mancha
Sob as palavras
tudo se transfigura:
a urze, a pedra, o horto.
As cabras pastam,
as vacas ruminam,
e é muito tarde
para rimar teu nome.
Sobre nós flutua
o encoberto,
nuvem suspensa
ao fio da saliva,
mancha de desterro.
Sob as palavras,
tudo se derrama,
como o leite
numa mesa de pensão.
*
Tristão
'Em pé, ao sol e ao vento do sertão,
ele não se decompôs.'
--- Pedro Nava, Baú de Ossos
As palavras no alforje. E o rosário,
a escorrer das penas e dos dias.
O azul da barba lembra uma paisagem
onde campeiam cabras. E ramagens
desatam-se em sombras nas janelas.
A morrinha dos bichos. O mormaço,
trazendo o desespero, em vez de março:
um luto atravancando as taramelas.
A sela desapeada. E na garupa
do cavalo, a sentença das esporas.
Pendentes dos estribos, estão as horas,
relampejos de facas. E o sono da jurema.
O braço descarnado, o giz dos dentes,
e o olho além do corpo do poema.
No chão do meu degredo, sempre chão,
sete frases do ofício e um bordão.
§
Ícaro Lira (Fortaleza, 1986)
§
Samarone Lima (Crato, 1969)
Sobras
Todos os dias te dou um nome
Uma pedra, um pão
E vendo o que nunca plantei.
Te dou, portanto,
Sobras.
Teu nome já tinhas.
As pedras que carregas por dentro
O pão que te escolheu
Tudo era teu
(nada tem o rastro do meu sangue).
Minha entrega tardia
Lembra o consolo
A uma criança que não erra.
Mas sabe que o mundo dói.
*
Anotações
Anoto a vida.
Não sei se é poesia, o que faço
Se é o puro mormaço
Dar ruas do Recife
Das ruas do passado.
Anoto o que dizem
O que me cala
Anoto o dízimo do dia
O olhar opaco
De quem vai porque vai
De quem não tem porque ir.
Anoto essa mão estendida
À espera de tudo
Essa boca que se desespera
E lambe o escuro.
Anoto minhas roupas penduradas
Num varal de 1976
(era noite clara e podia vê-lo
pelo barulho do vento).
Anoto a vida.
Não sei se é poesia, o que faço
Se é puro cansaço.
Anoto o que me escondem
O que sequer nasceu
Mas tem sobrenome.
Anoto o que disseram ser meu.
Um dia
Deixarei um silêncio
Sem ponto final.
Um silêncio meu
O último
E a busca da poesia
Terá terminado.
§
.
.