terça-feira, 28 de abril de 2009

O que é est-É-tica

por Ricardo Domeneck

"Ética e estética são uma só." - Ludwig Wittgenstein

"... o objeto da História não é a diacronia, mas a oposição entre diacronia e sincronia que caracteriza toda sociedade humana." - Giorgio Agamben


Em minha tentativa de colaboração com o debate poético contemporâneo, sei que minha insistência na necessidade de uma contextualização histórica para o trabalho crítico e poético tem sido o ponto mais controverso e questionado, também pouco compreendido, como sinto por vezes. Em um momento que defende uma noção como "trans-historicidade", não poderia ser diferente, creio. Em geral, o debate, tal qual tenho tentado empreendê-lo, tem sido confundido com a defesa de certo "biografismo", praticado nas últimas décadas por críticos que passaram a questionar, politicamente, certos parâmetros de universalidade. Muitos crêem que essa prática tem levado a um relativismo desenfreado, à destruição dos poucos parâmetros "objetivos" de qualidade poética que nos restam, assim como à ascensão de poetas menores ao cânone, por questões extra-literárias. Tudo isso gera desconforto e chega a atingir certa histeria entre os críticos que bradam por todos os cantos contra a decadência poética contemporânea. O problema agrava-se pois, em minha opinião, esses poetas que defendem uma leitura "trans-histórica" do trabalho poético estão na verdade adotando, talvez sem perceber, parâmetros críticos de momentos históricos específicos, alguns lendo toda a poesia do mundo e dos tempos sob parâmetros do século XVII, muitos presos ao século XIX, alguns em 1922 e outros em 1956. Há os que escrevem como se houvessem acabado de almoçar com Virgílio ou saído de uma pregação de John Donne. Poetas fincam os pés nos mais diversos momentos históricos, adotando seus parâmetros condicionados como se fossem "universais", e gritam de lá como se já estivessem na Eternidade.

Os que atacam o "biografismo", na crítica das últimas décadas, têm razão em muitos de seus argumentos. Deixar de ler um poeta porque este era machista ou racista é questionável e deveria incitar-nos ao debate est-É-tico sobre sua obra, para sabermos o quanto estes defeitos sérios e (muitas vezes) formalmente condicionantes são filtrados através do poema. Porém, todo trabalho crítico deveria partir, em primeiro lugar, do texto do poeta, e não do poeta do texto. Mas não tenho dúvidas de que a ideologia política de um poeta filtra de alguma forma sua experiência poética, e já expus e argumentei em defesa desta opinião em meu ensaio "Ideologia da percepção".

Há racismo em Gregório de Matos, assim como há anti-semitismo em Ezra Pound. Como reagir diante disso? Deixar de ler seus poemas? Saber filtrar o que há de negativo neles? Aprender a ler como adultos, saber que poetas nunca foram santos ou eticamente infalíveis e mesmo um grande poeta pode ter sido um canalha machista, como Rilke? Não pretendo deixar de ler Gregório de Matos, Ezra Pound ou Rainer Maria Rilke. O problema é realmente complexo e pede leituras múltiplas, formais e não apenas formais.

Quem defende a autonomia estética da poesia e de qualquer arte dirá que apenas a obra importa, suas qualidades formais intrínsecas. Ora, cada poeta será um caso distinto. Realmente, se Rilke foi mesmo um canalha machista, isso não parece importar ao lermos as Duineser Elegien, aquelas dez coisas lindas. De que maneira, porém (e isso me interessa como crítico) suas escolhas formais são condicionadas por Rilke ver-se como representante de uma aristocracia européia em extinção? Não podemos nos esquecer que Rilke produz as Duineser Elegien no mesmo continente e momento em que Gertrude Stein estava produzindo os Tender Buttons e Hugo Ball seus poemas fonéticos, assim como as publica no mesmo ano em que Joyce dá à luz Ulysses e Kafka está produzindo trabalhos como Der Prozess, enquanto morre de tuberculose. Esses contextos importam para a compreensão de Rilke?

Eu creio que as tendências fascistas de Pound informam seu épico, o próprio desejo de escrever um épico. Atentar para este aspecto est-É-tico de um trabalho como The Cantos não é necessário para uma compreensão formal do longo poema, mas é necessário para compreendermos o que devemos e não devemos aprender com Pound: aprender est-E-ticamente, assim como um entendimento mais amplo de seu projeto poético. Sabemos que o poeta de Idaho acreditava que uma nova Renascença exigia centralização política, pois ele cria ver esta junção em outros momentos históricos de grande efervescência literária e artística. Isso importa para a compreensão de Pound ou devemos ignorar tais problemas críticos?

O que fazer com um caso extremo, em que a ideologia política de um artista não pode ser dissociada de sua obra: como nos filmes de Leni Riefenstahl? Seus filmes provam de forma cabal que Riefenstahl era parte leal da maquinaria nazista. É um ato altamente questionável, em minha opinião, tentar defender os filmes de Riefenstahl em nome de sua "beleza autônoma" como "objetos artísticos". A est-É-tica de Riefenstahl é uma est-É-tica fascista. De caráter neoclássico, diga-se de passagem, como a arquitetura de Albert Speer.

Estas questões são espinhosas e chego (quase) a compreender os que enfiam como avestruzes a cabeça num buraco ou tapam com os indicadores suas doces cavidades auditivas e lalalam até que a questão emudeça. É legítimo que muitos poetas e críticos digam que se interessam por poesia como poesia e só poesia, mas eu não creio que se deva invalidar o debate dos que estão interessados em estudar as implicações est-É-ticas desta mesma poesia.

Erros, talvez piores, são cometidos pelos que acabam por defender a obra de um poeta apenas porque este possui um útero ou porque este outro prefere contemplar um belo e rijo rapaz, tendo também um pênis entre as pernas. A defesa da obra de um poeta medíocre, a partir de uma noção do poeta como excluído, por ser negro e/ou homossexual e/ou mulher, se essa questão se manifesta de forma superficial, meramente temática, na obra do poeta, realmente não avança de maneira relevante no debate sobre a contextualização histórica da obra poética.

Um crítico acaba invalidando seu debate est-É-tico se escolhe, por questões nada poéticas, autores incapazes de produzirem textos que se sustentam como objetos artísticos, elogiando-os apenas porque estes eram pobres ou mulheres ou homossexuais, enquanto estes poetas tratam de tais questões de maneira simplesmente temática. Mas, para críticos que acabam por transformar um poema em mero documento histórico, é realmente mais fácil discutir as implicações políticas de um poema apenas porque o texto foi composto sobre um estupro ou sobre a situação dos mendigos nas ruas de uma metrópole, do que aqueles exemplos muito mais inteligentes e difíceis, de poetas que buscam investigar de que maneira nossas diferenças de gênero, sexualidade ou classe determinam a maneira como usamos a língua, suas estruturas sintáticas ou mesmo nossa relação com a tal da "tradição", esta criatura de mil cabeças e dois mil olhos. Que nos observam, sentimos.

Outro problema, também sério e que atrapalha o debate inteligente sobre a contextualização histórica do trabalho poético, assim como seu caráter político, ocorre por aquilo que leva poetas a escreverem textos, recentemente chamados de "neo-participantes", que desmascaram, na verdade, uma mentalidade praticamente adolescente, tanto poética como política, como nos casos (para citar um exemplo) dos que tomam modelos como Kate Moss como algum tipo fácil de bode expiatório para os males do mundo capitalista. Tais poetas colocam-se acima destas circunstâncias que criticam, sem investigarem o quanto o próprio capitalismo, que eles querem criticar e desestabilizar através de sua linguagem, informa seu uso de formas poéticas específicas. Creio que isto está ligado à crença de que a poesia habita ou forma uma linguagem pura, "incondicionada e incontaminada", que não trafica, nem trafega entre linguagens que, para estes poetas, lhes parecem decaídas, como a usada pela economia, pelo jornalismo ou pelas pessoas no dia-a-dia, a chamada "linguagem do quotidiano", aquela que Wittgenstein dizia ser misteriosa o suficiente, implorando aos que trabalham com a linguagem: "Nur kein transzendentales Geschwätz" ("mas sem baboseiras transcendentais"). Eu acredito que o poeta não pode intervir através da linguagem (a única intervenção possível para ele), sem perceber que suas táticas têm que ser as de guerrilha: resistência interna, de sabotagem de discursos, compreendendo que sua linguagem não está acima de qualquer suspeita.

Que tipo de contextualização histórica, então, é esta que defendo, na esteira de críticos como Walter Benjamin, Hugh Kenner, Marjorie Perloff ou filósofos como Ludwig Wittgenstein? Certamente, uma contextualização histórica que não exclua o trabalho e pesquisa formais para a criação poética. Concordo com aqueles que vêem leituras psicanalíticas ou sociológicas de poemas como limitadas, extremamente limitadas. No entanto, creio que uma leitura meramente formalista também seja limitada. Uma leitura crítica, de qualquer forma, jamais substituirá o texto em si. Aí reside a multiplicidade de um grande texto: que ele permita todas estas leituras, sem que qualquer uma delas possa substituí-lo. No melhor dos casos, um grande texto crítico, como é o caso de tantos de Walter Benjamin, acaba por assumir por si próprio caráter literário, poético e artístico, passando a convidar a leitura interpretativa (seja psicanalítica, sociológica ou formalista) de outros críticos no futuro.

A leitura formalista, portanto, tampouco mostra-se capaz de "esgotar" as leituras possíveis de um texto, de um poema. Ela deve, no entanto, estar presente, sempre. O que defendo é a expansão do trabalho crítico, que ele não páre apenas na leitura formal do texto. Ora, qualquer um pode aprender a contar sílabas ou acentos, decorar os nomes das figuras de linguagem e saber empregá-las, tanto para ler o poema alheio como para compor o próprio.

Porém, sempre houve e sempre haverá uma diferença básica entre memória e inteligência.

A erudição jamais salvou um crítico ou poeta, se ele não souber empregar tal conhecimento de forma criativa. Na maior parte dos casos, gera produtores de moscas em âmbar, enquanto a poesia deveria ser mosca em pleno vôo.

É muito provável que haja realmente uma espécie de essência poética que perpassa o trabalho dos poetas que sobrevivem ao esquecimento e são constantemente redescobertos por novas gerações, de Homero a Montale, de Safo a Tsvetáieva, passando por Catulo e Bashô, Gregório de Matos e Paul Celan, Sóror Juana Inés de la Cruz e Omar Khayyam, mas eu também acredito que tudo o que podemos conhecer desta essência são suas encarnações históricas, nos trabalhos distintos de cada um destes poetas, concebidos em países e línguas diversos. Talvez só possamos conhecer o verbo que se faz carne? Mesmo (especialmente) nossas tentativas de definição dessa essência são as mais condicionadas e historicamente datadas, enquanto os poemas seguem sendo lidos. Talvez por não serem assim tão múltiplas as necessidades humanas em eras sucessivas.

No entanto, não tenho dúvidas de que a sobrevivência de um poeta como Catulo deve-se à sua aceitação e consciência de sua posição no seu espaço e no seu tempo. Os imitadores de Homero e Safo, ainda que muitíssimo eruditos, desapareceram. Enquanto isso, Catulo segue sendo lido com prazer e por prazer, assim como a própria Safo.

Caio Valério Catulo é um exemplo interessante para o que estou tentando debater. Realmente, talvez importe muito pouco se Catulo era a favor ou contra César, se a Lésbia dos poemas era realmente Clodia Metelli, várias mulheres ou apenas uma criatura imaginária, e se a língua de Catulo esteve de fato na boca e pênis de Caio Licínio Calvo. Contextualizar a obra de Catulo vai muito além destes detalhes biográficos. O que me parece necessário para compreender sua obra e poder aprender verdadeiramente com ela é, além de uma leitura formal rigorosa dos metros e formas clássicas usados pelo jovem romano, o estudo de quais eram os parâmetros críticos hegemônicos de seu tempo e de que maneira ele os respeitou e renovou. Por que seu grupo foi chamado, com desdém, de neoteroi por Cícero? Que convenções formais estes poetas "desrespeitaram" e, com isso, renovaram a poesia latina a partir da cultura helenística? Trata-se daquilo que aprenderam com Calímaco e sua rejeição dos épicos diluidores de Homero, sua preferência pela poesia epigramática e lírica? Reside aí o motivo da alta posição que Safo de Lesbos parece ocupar no "paideuma" de Catulo?

Há outras questões que a mim parecem muito interessantes: de que maneira seu trabalho é condicionado pelo fato de Catulo e os outros "poetas novos" estarem entre os últimos poetas a produzirem na cambaleante República, e viverem durante o período de transição entre esta e o Império? Como isso condiciona os parâmetros de qualidade daquele momento específico? Vivemos em um momento com aspectos similares, podendo, portanto, aprender com os problemas formais do tempo de Catulo e com as soluções propostas por ele? As mudanças entre o trabalho de Catulo e os de Ovídio e Virgílio podem ser, de alguma maneira interessante, compreendidas por estes últimos terem composto e produzido já no período imperial?

No entanto, contextualizar a obra de Catulo não significa compreendê-la de maneira arqueológica, saber apenas o que ela significava em seu momento histórico, no último século antes da Era Cristã. O que nos importa é saber como ela pode nos ajudar hoje. Que lição est-É-tica podemos depreender de seus poemas em 2009. O que faz com que possamos ler Catulo como lemos certos poetas do século XX e XXI. Talvez uma atitude similar diante da tradição? Talvez porque Catulo parece ter pensado, lá pelos idos dos 50 anos antes de Cristo, como outros poetas hoje? Talvez como Fernando Assis Pacheco (1937 - 1995), escrevendo:

"Peçam grandiloqüência a outros
Acho-a pulha no estado actual da economia"


É legítimo que certos críticos estejam interessados apenas no trabalho formal, tanto de Catulo como de Ovídio ou Virgílio, ou de poetas modernos como Cavafy, Pessoa, Tsvetáeva ou Stein, mas não podem iludir-se, crendo que isto esgota a pesquisa crítica sobre o trabalho destes poetas, ainda que talvez seja preferível uma leitura formal a uma leitura meramente sociológica de seus trabalhos, já que nosso interesse, diante de um poema, deveria ser a poesia, mais que a sociologia. Há outros documentos para o estudo sociológico de um tempo, como cardápios e convites de casamento. Os que amam o trabalho poético em si, os que têm prazer com a poesia como arte to delight hearts and heads, sempre preferirão as delícias das muitas formas poéticas. No entanto, a grande poesia convida a múltiplas leituras. E há, é claro, a diferença de interesses entre os leitores de poesia (que não têm obrigação, talvez, de se preocuparem com contextos históricos de poemas) e os que produzem a poesia, se estes últimos querem ter um público além de outros poetas ou literatos acadêmicos.

O perigo de uma leitura meramente formalista, portanto, é a de tomar formas poéticas condicionadas por contextos históricos como se fossem essências universais, que podem ser usadas a qualquer momento, levando-nos à prática da poesia como mero jogo entre literatos, sem qualquer relação com seu momento histórico e, consequentemente, com seu público. Assim, são copiadas as respostas de poetas tão diversos quanto Catulo, Góngora ou Celan, sem a pesquisa contextual sobre as perguntas a que se ligam. Copiar as soluções de problemas específicos, como se estes se aplicassem a todo e qualquer problema.

A poesia como arte é criada como trabalho verbal, vocal e visual, partindo da materialidade da linguagem, como queria Jakobson para a função poética, mas todo poeta deveria ser também crítico, o que exige que ele eleja ainda outra tríade de preocupações, que eu chamo de material, função e contexto. Eu creio que aquilo que chamamos de verbivocovisual está incluído por completo na preocupação com o material. O material à sua mão, o trabalho, digamos, microscópico, o manejo das formas poéticas da tradição. No entanto, este trabalho técnico precisaria unir-se à consciência da função que cada uma das formas históricas assume em cada momento específico e diverso, pois escrever sonetos hoje tem, obviamente, uma função muito distinta daquela do tempo de Petrarca, assim como as diferenças entre uma sextina de Arnaut Daniel e as de um poeta em 2009. Tudo isso liga-se à consciência histórica do poeta, compreendendo o contexto em que seu trabalho se insere.

Eu acredito, sinceramente, que são os poetas que buscam o “eterno”, muitas vezes, os que já nascem com mofo e, de alguma maneira misteriosa, aqueles que fincam seu trabalho na consciência de sua posição espaço-temporal, como acredito ser o caso de Safo, Catulo, Arnaut Daniel, Constantino Cavafy, Murilo Mendes, Frank O´Hara e Paul Celan, os que sobrevivem e seguem provendo respostas para aqueles que buscam compreender as muitas perguntas mutantes dos problemas históricos que se acumulam diante dos nossos pés, naufrágio após naufrágio, como escreveu Walter Benjamin, grande exemplo de crítico que jamais ignorou a preocupação est-É-tica de seu contexto histórico.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Valsa com Bashir

Assisti este fim-de-semana ao documentário em animação do israelense Ari Folman, chamado Valsa com Bashir (2008). Talvez seja a melhor animação que tenha visto, minha preferida, pelo menos. Centrada na invasão do Líbano por Israel em 1982, após o assassinato de Bashir Gemayel, o presidente eleito e líder das Falanges Libanesas, o diretor Ari Folman, que estava entre as Forças de Defesa de Israel a invadirem Beirute em setembro de 1982, passa a entrevistar ex-colegas para descobrir onde estava na noite dos massacres nos campos de refugiados palestinos, chamados Sabra e Shatila, perpetrados pelos falangistas cristãos, como vingança contra o assassinato de Bashir Gemayel, com a anuência do Governo de Israel.

A escolha estética de apresentar tal história como filme de animação pode parecer questionável, mas acabou sendo extremamente "eficiente", para mim, sem tirar a força do filme. Entre os entrevistados por Folman está o jornalista Ron Ben-Yishai, o primeiro a entrar nos campos após o massacre. O filme gerou em mim a sensação física de ocupação de espaço histórico antes de desconhecido em minha mente. Poucas vezes tive esta sensação de "acréscimo épico". Guardadas as devidas proporções e sem ignorar as óbvias diferenças estéticas, lembro-me de sentir esta mesma tristeza histórica ("an epic is a poem including History", Pound dixit) apenas ao ler Os Sertões e alguns outros poucos trabalhos.



A Guerra do Líbano está entre as minhas "memórias históricas" mais antigas como criança. Eu tinha 5 anos quando os eventos do filme ocorreram, morava em Bebedouro, no interior de São Paulo. Mas lembro-me de estar na sala, com meus pais, enquanto notícias sobre a Guerra chegavam pela televisão. Lembro-me da sensação estranha de descobrir, como criança, a existência de algo chamado de "guerra". Era como se a Guerra do Líbano fosse eterna, tivesse sempre existido e sempre existiria. Quando penso em minhas memórias mais antigas como criança, reportagens sobre a Guerra do Líbano e discursos do General João Figueiredo na televisão pairam como "memórias" de um tempo em que eu aos poucos descobria, aos 5 anos, que a sala, os quartos e cozinha de minha casa não eram o mundo. E que havia coisas assustadoras da porta para fora. Talvez já houvesse o medo da morte.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Hoje à noite, no Berlimbo, uma de minhas musas: Janine Rostron aka Planningtorock




A artista Janine Rostron apresenta-se como Planningtorock, hoje à noite, após meses à surdina, produzindo seu segundo álbum. Não perderia a chance de ver uma das criaturas mais interessantes e deliciosas do Berlimbo, uma das minhas favoritas. Tê-la como convidada para uma performance na Berlin Hilton, na noite do meu aniversário, em 2007, foi um dos punti luminosi de minha carreira como curador daquela pocilga.



Ela se apresenta hoje no Festival Pictoplasma, que está ocorrendo na Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo). O moço e eu já compramos os ingressos.

Suas performances estão entre as coisas mais eletrizantes que já presenciei.




Eu sou um viciado em vocais femininos. Para mim, nada melhor que mulheres fazendo música.
Billie Holiday, Kate Bush, Patti Smith, Cat Power, Planningtorock.

Se vocês não conhecem Planningtorock, meus queridos, aqui vai a deliciosa:











terça-feira, 21 de abril de 2009

Movimento em prol de poetas que saibam dançar


(Foto da coreógrafa e dançarina Denise Stutz, em Ouro Preto, em 2005)

Acontece há quatro anos por aqui o festival de dança Brasil Move Berlim, no teatro Hebbel am Ufer, que já trouxe à Alemanha alguns dos melhores coreógrafos e companhias de dança do Brasil. Ontem à noite, assisti à estréia européia do trabalho "3 Solos em um Tempo", da coreógrafa mineira, radicada no Rio de janeiro, Denise Stutz, uma das fundadoras do Grupo Corpo. Trata-se do retrabalhar de três peças anteriores: "DeCor", "Absolutamente Só" e "Estudo para Impressões".

Estava na companhia de três alemães: o moço, o fotógrafo Heinz Peter Knes e a atriz Grete Gehrke, e estava muito curioso sobre a maneira como o trabalho de uma coreógrafa brasileira agiria sobre eles.

Todos nós tivemos uma experiência maravilhosa. Há tempos não presenciava alguém com tamanho poder de empatia sobre um palco. Ela nos seduziu maravilhosamente.

O trabalho estava fortemente baseado na fala, algo raro, pelo menos na maneira como ela o usou, na dança que conheço. O primeiro solo consistia basicamente da descrição dos movimentos que ela estaria fazendo. Como artista da linguagem, fiquei fascinado. Ao mesmo tempo, o trabalho era extremamente irônico, usando movimentos do balé clássico e, num segundo momento, o vocabulário já manjado da dança contemporânea, enquanto ela descrevia a nomenclatura dos movimentos. Para quem já trabalhou com dança, como fiz por dois anos em São Paulo, foi uma delícia. Ri até não poder mais. No entanto, o desnudamento a que ela estava se submetendo tornava-se cada vez mais claro, e foi apenas natural que ela terminasse o espetáculo completamente nua sobre o palco. Em seu trabalho entre linguagem e corpo, tive momentos de grande aprendizado, ontem à noite, em sua presença. Obrigado, Denise Stutz.

O trabalho tinha ainda, sobre mim, implicações est-É-ticas poderosas. Em um determinado momento, ela pede que alguém da platéia escolha onde ela deve posicionar-se no palco, em que ponto ela deveria começar sua coreografia. Ela caminha então até o ponto escolhido, dizendo:

"Porque eu, eu sempre obedeço. Eu nunca grito."

Quando ela chega ao ponto escolhido pela pessoa da platéia, ela então assume sua posição e começa a tensionar todo o seu corpo, seu rosto, assumindo a posição e musculatura tensionadas de quem estaria gritando no topo de sua voz, mas sem emitir som algum. Foi um dos momentos em que os arrepios percorreram todo o meu corpo. No final, nua sobre o palco, ela vagarosamente caminha por ele, assumindo o que pareciam ser as posições "clássicas" em que mulheres foram retratadas (por homens) ao longo dos séculos, seja em pinturas renascentistas ou revistas pornográficas. "3 Solos em um Tempo" foi uma experiência muito forte.

§

Em 2001, uni-me ao grupo de dança dirigido por Luzia Carion na Universidade de São Paulo, e por dois anos trabalhei com ela e com mulheres como Verônica Veloso, Paulina Caon e Lígia Borges sobre a técnicas coligidas pelo coreógrago mineiro Klauss Vianna. Foi um dos períodos mais marcantes sobre minha vida e meu trabalho. Mais tarde, quando já estava na Alemanha, o grupo (que se chamava Grupo de Pesquisa Obara) criou um espetáculo, usando poemas do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Segue sendo uma das colaborações das quais mais me alegro.

Isso me fez pensar em alguns poemas do meu primeiro livro, em que essa presença corporal é fundamental, e o tempo em que trabalhei com Luzia Carion, Verônica Veloso e Lígia Borges. Estas três mulheres tiveram um grande impacto sobre minha existência. Trabalhar com elas foi muito especial. O que aprendi com Luzia sobre o trabalho e pensamento-dança de Klauss Vianna é, sem dúvida, essencial para meu trabalho poético.

Após publicar a Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005), encontrei um poema num caderno que deveria, na verdade, ter integrado o livro, mas ficou esquecido entre rascunhos. Reescrito, ele viria a ser usado por Luzia Carion no espetáculo "Fragmentos de uma carta aos anfíbios", encenado por ela, Verônica Veloso e Paulina Caon em 2005 e 2006. Ele já foi oralizado muitas vezes por Carion, mas permanece inédito no papel. Após ver o trabalho de Denise Stutz ontem à noite, pensei no meu trabalho em dança com o Grupo Obara, no espetáculo que fizeram a partir da Carta aos anfíbios, pensei em Luzia, Verônica e Lígia, quis mostrar estes três poemas que são dedicados a elas, por terem nascido de uma experiência corporal comum nossa. Mostro aqui o inédito "Articulações" (que integrará a Carta aos anfíbios, se este algum dia for reeditado), dedicado a Luzia Carion, e os poemas "O dono do corpo" e "Chão", dedicados a Verônica Veloso e Lígia Borges, respectivamente, publicados na primeira edição do livro.

TRÊS POEMAS da Carta aos anfíbios

Articulações

.............a Luzia Carion

Talvez
seja necessário
o exílio, como quem acorda
no meio
da noite na cama
de um estranho e sente
a cabeça girar de forma
diferente, todos os músculos
atentos, dores
novas no corpo, ângulos
variegados
no pescoço: e escuta,
os arcos
dos pés mais tesos,
talvez,
e toda uma outra
estrutura estabelece-se
no corpo, bicho
de Lygia Clark de
repente
manipulado por mãos
inéditas, gerando
tensões, torsões
impensadas
em músculos esquecidos,
compensando
distribuições de equilíbrio
precário, mas presente,
e apontando para linhas
no espaço ignoradas
contudo ígneas


§

O dono do corpo

............a Verônica Veloso

entre veia e espinho
o diálogo é explícito

mesmo o cadafalso exige
da minha perna
a perfeição,
..........do meu passo
o preciso

à iminência do penhasco
...........é mais atento
o metacarpo
...........e o rosto encolhe
perante a navalha

..........a terra
não se furta a cobrir-me

nem hesitaria em esmagar
-me usando meu próprio

...................peso

........o refúgio
de ao menos uma única

relação justa
entre dois corpos

entre os pés e o solo
não há espaço para dúvidas

minha mão toca meu peito:

eu passo, então, a existir em dois
pontos, como se um rio fosse a soma
de uma superfície e duas margens?

meus ossos não são inquebráveis

e o júbilo
é um improviso
difícil



§

Chão

..............a Lígia Borges

1.

Cada cavalo
............ montado a campo
carrega em si a possível
quebra dos meus ossos;

todo touro
............ investido na arena
contém em si uma iminente
fratura do meu crânio;

mas nem

todo peixe
está sujeito
à minha isca,

tão pouca pele
alheia estremece
ao meu toque;

entre nutrição e boca
erguem-se o úmido
e o medo.

2.

Quando a terra treme,
os joelhos
............ acompanham-lhe o ritmo
ao menos um minuto.

Quanta luz os olhos exigem
à confiança
............ do avanço no escuro?
Há no passado o mínimo.

3.

Sem chão
................. e os
......... pés livres

... cautela do que
...... em asas
atenta
à direção do vento

e ouve
onde

o pouso.


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

§
§
§

E segue aqui o movimento que eu gostaria de fundar. Como se chama?

"Movimento em prol de poetas que saibam dançar"

domingo, 19 de abril de 2009

Dos aniversários, dos feriados

Abri os olhos de novo. Acordar sempre me surpreende. Vive-se assim: dominga-se até um dia não mais. "Hoje, feriado porque acordei", etc. Sonata para acúfeno.

Começa com os versos "Sair da cama, disse, / foi simplesmente / uma idéia incrível / e deliberada" a primeira das minhas "Seis canções óbvias", incluídas na Carta aos anfíbios. Café da manhã com o moço daqui a pouco, ouvir reprimendas pelos excessos de ontem à noite.

Sim, cedi (ver postagem anterior).

Na sacola, poetas mortos, mas apenas e sempre dos vivíssimos.

"En l´an de mon trentiesme aage,
Que toutes mes hontes j´eus beues,
Ne du tout fol, ne du tout sage"


Sim, lendo Catulo e Villon estes dias. Senti que andava precisando calibrar a máquina.

§

Tentando traduzir sob o sol:

Mentre nel silenzio degli orti
bruciati dal fresco sole, nel cielo
annebbiato sulla periferia,
si forma la figura del mio nuovo
destino, atroce, duro, io che cosa
faccio per non meritarlo, per essere
difeso, almeno nel cuore,
dal male che è per me stabilito
dal mondo?
..................Non posso che tremare:
e tremo, nelle viscere, io, escluso
dal mondo che non so odiare né quindi amare,
che finalmente si è fatto stupenda
ombra, irreale - capace ormai soltanto
a schiacciarmi, non più a determinare
la mia vita con la sua vita. Impuro
e non ancora forse perduto
nella mia purezza che non ha età,
il mondo non sa, dunque, che punirmi, e io
non posso che tremare.


Pier Paolo Pasolini

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Sim, o delicioso.

Necrófilo NENHUM

-- seja neoclássico ou outros usuários do prefixo --

tem a energia destas criaturas.

Catulo, Villon, Pasolini.

Make It New ou Make It Neo,
querido.

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Mas queria falar de aniversários. Não, não o meu. Chego aos poucos a não me entusiasmar tanto pelo dia de meus anos. Ando preferindo o aniversário de livros, de projetos. Aniversário de um poema?

Editei na semana passada os vídeos do terceiro aniversário da nossa Berlin Hilton, quando convidamos os deliciosos do Stereo Total, e do quarto aniversário, no mês passado, quando convidamos os meninos suecos do Lo-Fi-Fnk. Música de aniversário, sim yes ja.

Sou eu por trás da câmera. Levemente alcoolizado, não se incomodem com a tremedeira e ângulos inusitados.


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Stereo Total no terceiro aniversário da Berlin Hilton,
05 de março de 2008.



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Lo-Fi-Fnk no quarto aniversário da Berlin Hilton,
11 de março de 2009.

sábado, 18 de abril de 2009

Táticas sensatas contra a dissipação de hormônios

Tática excelente para ficar em casa, quando a parte sensata de seu ser avisa que ir a tal festa não seria a melhor decisão de sua noite de sexta-feira: tirar um cochilo antes de sair. Obviamente, você acorda de madrugada, e somente um desejo hercúleo de dissipar-se em um conglomerado de seres humanos, comandados por hormônios desenfreados, convence-o a erguer o corpete do estrado e colchão. Virei de lado e dormi mais 8 horas, acordando tão refrescado quanto Tutancâmon devia sentir-se em vida.

Aproveitei esta tarde a última oportunidade para ver a exposição no Instituto para a Arte Contemporânea, conhecido como KW - Kunst-Werke. A exposição que se encerra amanhã chama-se Vorspannkino, reunindo, nos quatro andares do Instituto, telas em que são projetados os trabalhos de arte visual criados para os créditos iniciais de filmes como: Psycho, de Alfred Hitchcock; Vivre sa vie, de Jean-Luc Godard; Raging Bull, de Martin Scorsese; Uccellaci e uccellini, de Pier Paolo Pasolini; vários episódios de James Bond; mas também filmes mais recentes, como Seven, de David Fincher, ou Pi, de Darren Aronofsky. A idéia é interessante, uma curadoria que ao menos surpreende um pouco, mas várias características da exposição demonstram certos problemas de perspectiva. Cito um dos que mais chamaram minha atenção: se uma das idéias é a de fazer o expectador concentrar-se em um tipo de arte que passa despercebido, ocorrendo enquanto o expectador espera pela "arte de verdade", o filme, por que separar os trabalhos, entre os quatro andares, em gêneros que pareciam demarcar uma hierarquia? Pois, no primeiro andar estavam os "artistas", com aberturas para filmes de Hitchcock, Godard, Brakhage, Cocteau, Jeunet e Welles. No segundo andar, filmes de ação, com as aberturas para a série "James Bond" e filmes de Scorsese; no terceiro andar, ficção científica, comédia e cinema trash, com aberturas para filmes como Barbarella, de Roger Vadim, mas também Attack of the Killer Tomatoes, de John De Bello; terminando no quarto andar com os "filmes de terror", como Psycho, de Hitchcock, ou Dawn of the dead, de Zack Snyder. Conheço quem se irritaria com a própria idéia, crendo que chegamos a um ponto em que, sem arte para mostrarmos, passamos a procurar arte em todo e qualquer trabalho que pareça minimamente "criativo". Não tenho este problema, mas a exposição parecia agrupar os trabalhos de forma questionável.

Mais tarde, fui ao excelente cinema Arsenal, que estava mostrando, hoje à noite, The Birds, de Hitchcock. Excelente oportunidade para ver na telona este filme ótimo do mestre.



Agora?

Talvez ceda ao desejo de dissipação química. Tão hercúlea não chega a ser minha sensatez.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Saindo da caverna

No Berlimbo, é fevereiro o mais cruel dos meses. Após semanas e mais semanas de cinzura nublosa, ninguém mais se aguenta: a si e aos outros. A delicada senhora da padaria começa a gritar com os clientes, o motorista do ônibus fecha as portas na sua cara, as sobranchelhas pensas de todos pelas ruas.

Com o sol, a cidade se transforma, as pessoas fingem ser eternas, tostam nos parques como se nos trópicos.

Eu, pessoalmente, após hibernar na caverna do meu quarto pelas últimas semanas do inverno, a cara colada na tela do computador, escrevendo escrevendo, decidi expor a garganta nas ruas, mas também nos cubos brancos e pretos. Esta semana, aproveitei o tempo não apenas para estumar minha melanina, mas para correr às exposições e filmes. Várias coisas estimularam minha cachola.

Em primeiro lugar, na Hamburger Bahnhof, um dos museus de arte contemporânea do Berlimbo, visitei a instalação sonora "The murder of crows", de Janet Cardiff e George Bures Miller (veja o vídeo e entrevista com os artistas AAQQUUII). Em um local tão dedicado ao VISUAL, foi refrescante sentar-me por 30 minutos para primordialmente OUVIR (ainda que haja elementos visuais na instalação) o trabalho de Cardiff e Miller.

Há também uma exposição chamada "Fluxus Berlin", com trabalhos em vídeo e instalações de artistas como Joseph Beuys, Wolf Vostell, Nam June Paik e Charlotte Moorman. Na seção dedicada a Beuys, há o vídeo do debate entre Joseph Beuys, Max Bill, Max Bense, Arnold Gehlen e Wieland Schmied, que ocorreu em 1970. O tema: Arte & Anti-arte. Nos próximos dias, tentarei escrever artigo a respeito.

Por ora, quero falar sobre o filme que o moço e eu vimos ontem no cinema. Stellet Licht (2008) é o terceiro filme do mexicano Carlos Reygadas, que filmou ainda Japón (2002) e Batalla en en cielo (2005). Com inúmeras citações a Andrei Tarkovski, o filme é muito bonito, com uma ansiedade metafísica engendrada em um belíssimo trabalho de fotografia, em planos longos como eu gosto, de um "realismo ontológico" que havia visto apenas em outros diretores contemporâneos como o francês Bruno Dumont e o russo Alexander Sokúrov.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Angélica Freitas em cores

Gravei este vídeo na leitura de Angélica Freitas em Berlim, em 2007, no Instituto Cervantes, durante o Festival Móvel de Poesia Latino-americana.




A esta altura, seu livro de estréia, Rilke shake, já havia sido lançado pela coleção "Ás de colete", dirigida por Carlito Azevedo para a Editora Cosac Naify, na mesma leva em que saíra meu segundo livro, a cadela sem Logos.

Fui apresentado à poeta de Pelotas em julho de 2005, durante o lançamento coletivo no Bar Balcão, em São Paulo, quando apresentei meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Mais tarde, em 2006, organizando uma leitura na Casa das Rosas, também em São Paulo, para receber os poetas argentinos Cristian De Nápoli e Lucía Bianco, foi-me sugerido convidar Ms. Freitas. Foi nesta noite que pude conhecê-la um pouco mais, assim como Cristian De Nápoli descobriria seu trabalho e viria a convidá-la para o Festival Latino-americano de Poesia de Buenos Aires, o Salida al mar, e viria também a traduzi-la para o castelhano, pois estava editando a antologia Cuatro Poetas Recientes del Brasil (que inclui poemas de Angélica Freitas, de Joca Reiners Terron, de Elisa Andrade Buzzo e meus). Esta noite na Casa das Rosas foi também a única ocasião em que os 4 editores da Modo de Usar & Co. (Marília Garcia, Fabiano Calixto, Angélica Freitas e eu) estivemos juntos sob o mesmo teto.

Já escrevi um pequeno artigo sobre o que penso do trabalho de Angélica Freitas, para a revista portuguesa Águas Furtadas, que apresentou em 2007 uma pequena seleção de seus poemas. Qualquer adjetivo usado para o trabalho de Angélica Freitas seria altamente polêmico. Usar, então, este adjetivo? Angélica Freitas, a mais polêmica poeta brasileira? É isso? Pois seu trabalho parece gerar em muitos uma opinião invariavelmente extrema, seja Joca Reiners Terron caminhando por sua cozinha e dizendo que Angélica Freitas lhe parece uma das melhores poetas brasileiras vivas; ou Douglas Diegues, escrevendo sobre a sua delicadeza, que "non es uma Delicadeza fingida. Ou una Delicadeza construída com el Intelecto. Ou uma delicadeza di Secretária Perfecta. Es uma Delicadeza visceral que nasceu com a poeta Angélica Freitas"; ou Dirceu Villa, falando sobre a linguagem saborosa da poeta, até mesmo para olhos cansados de especialista; imagino que Villa esteja se referindo ao desafio de Pound: de que o poema deveria deliciar a leigos e especialistas? Pound, que sempre alertou que não se esquecesse que a poesia nasceu, em primeiro lugar, to delight the heart of man. Não preciso mencionar os que se contorcem em discordância à menção do nome da poeta.

Na obsessão por filiação (historiografia crítico-literária que copia certos parâmetros patriarcais, em especial a obsessão por hereditariedade), é tentador alinhar o trabalho de Angélica Freitas aos dos marginais cariocas, tanto pelos que o admiram, como os que o deploram, geralmente pelos mesmos (em minha singela opinião) equívocos de referências. É claro que os equívocos surgem também pela maneira como aquele grupo de poetas é visto em bloco homogêneo, como se fossem todos iguais em suas est-É-ticas. A própria Freitas já elencou Ana Cristina César e Ledusha como leituras iniciais. Seu trabalho, no entanto, parece-me estar a anos-luz de alguém como Cacaso. Estou afirmando, obviamente, que Angélica Freitas é muitíssimo mais interessante que Cacaso, não o contrário.

O trabalho de Angélica, porém, parece-me realmente distante do que buscavam os tais de marginais. Em primeiro lugar, o conceito de "sinceridade", pregado por Cacaso, não se aplica ao trabalho da gaúcha, que demonstra desconfiança, em verdade, por qualquer noção de "naturalidade". Linguagem é construção e artifício em seu trabalho, como no dos que mais me interessam entre os de sua e minha idade, uma das grandes diferenças entre o trabalho dos poetas jovens de hoje e os jovens da década de 70.

Outro problema de recepção é a falta de compreensão para a pluralidade de propósitos poéticos de um determinado momento, ou de qualquer momento. Não, não estou me referindo ao ecletismo acrítico pregado pelos poetas da década de 90, escondidos sob o manto do "pós-utópico" e da "trans-historicidade", estes bibelôs desonestos. Trata-se do equívoco de julgar um poema por parâmetros que o poeta deliberadamente evitou. Ou, para ser mais preciso, o equívoco de quem lê um poema como "Na banheira com Gertrude Stein" e o critica como se acreditasse que Angélica Freitas estava tentando escrever, com ele, a décima-primeira elegia de Duíno. Orfeu não desce ao Hades toda segunda-feira. Mas será ingenuidade minha acreditar que mesmo um literato necrófilo deveria possuir o discernimento para apreciar o trabalho em poemas como "Sereia a sério", "O que é um baibai?" e "O livro rosa do coração dos trouxas"? Pois, no fim, todo ato crítico é um ato de discernimento, para poder exercer a escolha. Se não me engano, a etimologia viria ao meu socorro. Mas, é bem possível que eu esteja louco, o que já foi insinuado.

Não se trata tampouco de "ironia" modernista o que vejo em seus textos, ainda que seja muito plausível falar, a respeito de alguns deles, de "iconoclastia". Eu mesmo escrevi sobre "relação não-autoritária com a tradição" no artigo para a revista portuguesa. Mas isso não explica muito, eu sei. Ajuda, no entanto, se lermos o trabalho de Angélica Freitas sob parâmetros e referências mais amplos. Não consigo encontrar muitos entre os brasileiros. Talvez Gregório de Matos em seus poemas satíricos, assim como Paulo Leminski, em sua "poesia-cicatriz", unindo os dualismos que entrincheiraram o debate poético brasileiro na década de 60 e 70.

Eu, pessoalmente, a leio sob o signo de Edward Lear e Christian Morgenstern, assim como pela religação empreendida pelos poetas ligados à revista DADA a práticas poéticas desprestigiadas no período (momento fértil para necrofilias neoclássicas) pós-Renascimento, como a das fatrasies medievais (ilumine-se clicando AAQQUUII).

§

às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


§

Entre os dadaístas, penso especialmente em Hans Arp (ilumine-se clicando AAQQUUII), ao ler os poemas de Angélica Freitas, assim como ela estaria muito à vontade entre os poetas do Grupo de Viena (como H.C. Artmann (ilumine-se clicando AAQQUUII) ou Gerhard Rühm (ilumine-se clicando AAQQUUII)). Quem estiver familiarizado com estes poetas, assim como a prática das já mencionadas fatrasies medievais, Heinrich Heine, Gertrude Stein, Kurt Schwitters ou Susana Thénon, perceberá o que estou tentando argumentar.

§

o que é um baibai?
Angélica Freitas


baibai es un adiós
un farewell sin pañuelos
tem gente que escreve haikai,
três linhas à bashô
baibais também seguem modelos

quem escreve baibais sabe que acabou
-se o que era doce

§§

espancado na infância molha os pés no orinoco
debaixo d'água como soa a ocarina?
brbrlllbrrrr brbrlllbrrr

§§

esnobada na festa molha os pés no rio das antas
debaixo d'água como faz seu coração?
'sai da chuva' 'já para casa'

§§

sufragette sem rouge molha os pés no rio clyde
debaixo d'água como faz o seu cabelo?
esquerda.... direita.... esquerda..... direita....

§§

feia nas fotografias molha os pés no rio reno
debaixo d'água como faz seu celular?
'depois do bipe lorelei depois do bipe'




Eu procuro compreender os que têm calafrios diante deste "brbrlllbrrrr brbrlllbrrr", mas me pergunto se eles são os que esperam que todo poema seja uma excursão à "noche oscura del alma". Pergunto-me se eles vêem o humor extremamente telúrico em Catulo ou se o respeitam apenas porque seus ossos são pó há vinte séculos. Ou por aquela esfinge etérea, a ffoorrmmaa. Se eles compreendem a simplicidade e leveza tesas de Heine e Arp. Mesmo entre os que acreditam que "experimentar com a linguagem" significa empilhar e justapor polissílabas díspares como "parafuso" e "escaravelho". Não deixo de concordar que seria um tédio se todos passassem a escrever como Angélica Freitas, como foi um tédio a década de 90, quando tanta gente escrevia joãocabralinamente. Poeta nenhum pode ser eleito parâmetro para todos os outros. Poderia Homero, ou excluiríamos com isso muito do que encontramos melhor em Safo? Parâmetro poético único e "Grande Poeta Nacional" são coisas de província.

Mas, talvez eu esteja realmente louco e o poema a seguir nada de nada seja, ainda que eu veja nele tanto.

sereia a sério
Angélica Freitas

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Berlin, Berlim

Desde o início do século XX, Berlim tem sido porto para os navegantes em busca de certas possibilidades, certas liberdades e libertinagens. O período da República de Weimar (1919 - 1933), quando o povo que habita este território, hoje conhecido como Alemanha, gozou de algumas das maiores liberdades civis de sua história e também das graves consequências da Primeria Grande Guerra, apenas para ver tudo mergulhar no caos da ascensão nazista ao poder, viu a cidade abrigar alguns dos artistas mais interessantes dos primeiros modernismos. Berlim sediou o grupo mais politizado dentre os dadaístas germânicos, com Raoul Hausmann, Richard Huelsenbeck e Hannah Höch à frente.

(colagem de Hannah Höch)

Na verdade, cada um dos movimentos de vanguarda que surgiram em língua alemã ou residiram em Berlim acabaram tendo aqui sua forma mais combativa e politizada, seja o expressionismo (basta pensar nas telas de Otto Dix e George Grosz),

(pintura de Otto Dix)

DADA (poemas de Hausmann, colagens de Höch), Fluxus (ou sua versão através do trabalho de Joseph Beuys), Pop Art ou o Punk, sem mencionar o “Kapitalistischen Realismus” (Realismo Capitalista) de Sigmar Polke, Gerhard Richter e Konrad Lueg. Os alemães são obcecados com suas versões da tal de realidade.

(ilustração de Sigmar Polke)

Esta obsessão realista pode ser claramente sentida na tradição fotográfica alemã, com August Sander, Bernd & Hilla Becher ou, nos dias de hoje, com Wolfgang Tillmans e Heinz Peter Knes.

(fotografia de August Sander)

§

(fotografia de Bernd & Hilla Becher)

§

(fotografia de Wolfgang Tillmans)

§

(fotografia de Heinz Peter Knes)


A década de 20 viu ainda alemães como Walter Benjamin e Bertold Brecht caminhando pelas ruas da cidade, mas também atraiu muitos estrangeiros, como o poeta W.H. Auden ou o romancista Christopher Isherwood, em busca da famosa liberdade sexual e vida noturna berlinenses. Esta época encontra expressão famosa no romance Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, mais tarde filmado por Rainer Werner Fassbinder.

§

Sobre o pobre B.B.



1

Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras.
Minha mãe trouxe-me, no abrigo
de seu ventre, às cidades. E, enquanto eu viver,
o frio das florestas estará comigo.

2

Na cidade de asfalto estou em casa.
Recebi cada extrema-unção logo, a saber:
jornais, álcool, tabaco. Cheio
de suspeitas, preguiça e, afinal, de prazer.

3

Eu sou cordial com todos. Ponho
um chapéu-coco, pois isto é normal.
Eu digo: que animais de cheiro estranho.
E digo: tudo bem, eu sou igual.

4

Eis que em minhas cadeiras vagas, de manhã,
uma mulher ou outra se balança.
Olho-a sem pressa e digo-lhe: dispões
em mim de alguém que não merece confiança.

5

À noite eu me reúno com os homens.
Tratamo-nos de gentlemen. O bando,
com pés na minha mesa, diz que tudo
vai melhorar. E eu nem pergunto: quando?

6

À luz da aurora gris pinheiros mijam
e os pássaros, seus vermes, abrem o alarido.
É quando, na cidade, esvazio o meu copo,
jogo fora o charuto e me recolho aflito.

7

Nós, geração leviana, vivemos em casas
supostamente eternas. (Desse modo, além
de altos caixotes em Manhattan, construímos
junto do Atlântico as antenas que o entretêm.)

8

Restará das cidades quem as cruza: o vento.
A casa alegra o comensal que a dilapida.
Sabemos bem que somos provisórios.
Nem vou falar do que virá logo em seguida.

9

Manter, sem mágoa, nos futuros terremotos,
o meu Virgínia aceso — já me satisfaz.
Eu, Bertolt Brecht, que, das florestas às cidades,
vim no ventre materno, anos atrás.


(Bertolt Brecht em tradução de Nelson Ascher, publicada em Poesia Alheia)

§

Durante o período do muro, a parte ocidental de Berlim voltaria a ser porto para os que buscavam escapar do serviço militar alemão e, com a condição-de-ilha da parte ocidental, o pouco policiamento e aluguéis baratos, artistas alemães e estrangeiros voltaram a ocupar a cidade. Foi aqui, na década de 70, que David Bowie e Iggy Pop produziram algumas de suas grandes canções. Aqui, o Punk, a New Wave e o rock industrial encontraram sua combativa maneira alemã, com grupos como o Tödliche Doris (com Wolfgang Müller à frente), o Malaria! (de Gudrun Gut) ou o Einstürzende Neubauten (de Blixa Bargeld).


(Malaria! - "Geld/Money")

Com a morte de Bertolt Brecht, o teatro Berliner Ensemble (um de meus prédios favoritos em Berlim, gosto de ir escrever na praça diante do teatro, com o rio Spree às costas e a estátua de Brecht à frente) passa a ser comandado por Heiner Müller, uma grande referência literária para o meu trabalho, com seus textos inclassificáveis, como Der Auftrag (A Missão) (1979) e Die Hamletmaschine (1977). Ou aquele que é um de meus textos favoritos em língua alemã: o estupendo salve-salve poema/peça "Medeamaterial". No pós-guerra, criaturas como Rainer Werner Fassbinder, Joseph Beuys e Heiner Müller mantiveram Berlim e a Alemanha no mapa do mundo. Estes três estão entre minhas maiores referências est-É-ticas.


(trecho do filme "I was Hamlet", sobre Heiner Müller)


(Joseph Beuys)


(Rainer Werner Fassbinder)

A Alemanha e sua língua não têm uma presença tão aparente ou óbvia na cultura brasileira, a não ser no teatro, onde Bertolt Brecht ainda impera como incontornável. A relação dos alemães com Brecht é muitíssimo mais complicada.

Os brasileiros sempre se voltaram para os franceses. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos e outros primeiros modernistas gostavam de perambular por Paris, como a maioria dos primeiros modernistas de qualquer país ocidental, de César Vallejo a T.S. Eliot, passando por Vladimir Maiakóvski. Nos últimos tempos, de forma muitas vezes quase subserviente e pouco crítica, os poetas brasileiros voltaram-se para os estadunidenses. Nova Iorque é logo ali e a Barra da Tijuca fica em Miami.

Poeta brasileiro vivendo no estrangeiro é coisa corriqueira. Não inaugurei atividade qualquer. Além dos já mencionados brasil-parisienses, houve a longa morada de Murilo Mendes em Roma, João Cabral de Melo Neto em Sevilha e Barcelona, assim como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa muito perambularam, escrevendo vários trabalhos no exterior. Hoje em dia, há os casos de Zuca Sardan e a vagamundos Angélica Freitas.

Viver em outro país, mas principalmente em outra língua, traz características novas para o trabalho de um artista da linguagem. Por exemplo, uma visão saudavelmente "artificialista" para a "língua materna", salvando-o da falácia do natural. O exílio não é uma condição a ser lamentada ou celebrada, mas usufruída e aprendida. Jamais escrevi ou escreveria uma nova "Canção do exílio", mas com meu pendor por gender trouble, escrevi minha "Cão são da ex-ilha".

§

Cão são da ex-ilha

o desgosto de cada
passo confirmar o mapa
e o diafragma contraído
entende o queixo
no joelho,
meio-dia e meia
o centro da certeza
que caminha do “quero“
ao “não-quero“,
palha, fênix, Joana
d’Arc, como perceber
que abismo e precipício
não
são sinônimos
exatos,
ou acordar no meio da
noite sem energia
elétrica
e sussurrar com a calma
do fim da força:
equivalendo
silêncio e escuridão,
real
apenas a escolha
da língua, entre-
tanto a
memória
das possibilidades
morre
para que o fato
entre inassistido
nas atas
do verídico;
saiu o sol,
deve estar tudo
bem; subiu a lua,
deve estar tudo
bem;
trocar de pele
continuamente
talvez
leve-me ao centro
e a ausência
me escame
como quem diz
“eu sinto
a falta”


(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)

§

Considero Berlim um ângulo privilegiado para contemplar o mundo e, em especial, o ocidente. São Paulo e Berlim são minhas cidades de escolha, as que impregnam meu trabalho. Não consigo me identificar com abstraçoes gigantescas como países, prefiro a concretude das cidades. Sou um poeta de São Paulo e de Berlim. Cada poeta é poeta de sua cidade. Manuel Bandeira foi poeta do Recife e do Rio de Janeiro. Oswald de Andrade foi poeta de São Paulo, como o é Augusto de Campos. João Cabral de Melo Neto com Recife e Sevilha. "A cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor", escreveu Carlos Drummond de Andrade, o itabirano carioca.

Com a queda do muro, Berlim voltou a reunir alguns dos artistas estrangeiros mais interessantes. Janine Rostron, a Planningtorock, mora aqui, assim como Olof Dreijer.


(Janine Rostron a.k.a. Planningtorock - "Changes")

Alguns dos poetas alemães contemporâneos mais interessantes vivem hoje em Berlim, como Monika Rinck e Daniel Falb ou Sabine Scho, que divide seu tempo entre Berlim e São Paulo.

Ler parágrafos biográficos sobre artistas visuais contemporâneos invariavelmente leva-nos a ler a frase "So-and-so lives and works in Berlin." Na nossa Berlin Hilton, o evento semanal que organizo por aqui, tiro proveito desta situação privilegiada, convidando alguns dos artistas sonoros que mais me interessam.

Esta semana, foi o caso do artista sonoro francês Jackson Fourgeaud, que se apresenta como Jackson and His Computer Band. Seu álbum de estréia, chamado Smash (2005) e lançado pelo selo Warp, foi um dos mais celebrados da década aqui na Zooropa. Gosto muitíssimo de seu trabalho e considero-me sortudo por compartilhar oxigênio e roçar ombros com ele aqui no Berlimbo.




§


(Jackson and His Computer Band - "Utopia")

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Escrever o corpo: poema (quase) inédito + "como verter-se a si mesmo" + colaboração com Heinz Peter Knes


Conheci o fotógrafo alemão Heinz Peter Knes no final de 2004, no antigo (já falecido) clube noturno Black Girls Coalition, organizado pela genial drag queen nova-iorquina negra Miss Paisley Dalton, onde colaborei com alguns dos melhores eventos punks do Berlimbo. Tornamo-nos bons amigos, colaboramos algumas vezes e, no meu segundo livro, a cadela sem Logos (2007), dediquei a ele o "Poema começando `Quando´". Há cerca de dois meses, Knes escreveu-me, contando sobre uma série fotográfica que estava preparando para uma revista francesa, chamada Double, com o título "Körper" (Corpos), que seria publicada no interior da revista, no formato de um pequeno livro destacável. Knes queria justapor imagens e textos, e convidou-me para escrever algo que acompanhasse a série.

Assim como Heinz Peter Knes, em seu trabalho como fotógrafo, constantemente pesquisa o corpo humano como veículo e recipiente dos jogos de representação e campo de atuação est-É-tica, desde meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005), escrever e compor o corpo e através do corpo e com o corpo têm sido uma de minhas pesquisas mais incessantemente obsessivas, passando por vídeos como meu oralfesto "Garganta com texto" (2006) ou a performance vídeo-textual "This is the voice" (2008). Nesta pesquisa, eu buscava as implicações est-É-ticas do borrar das dicotomias que herdamos da Europa cartesiana, pseudo-iluminista, que gerara preconceitos intelectuais que ainda fazem de nossa sociedade um ambiente extremamente neurótico, quando não psicótico.

Como escrever o corpo? Como escrever com o corpo? Como recuperar nossa corporalidade em uma sociedade que até isso nos rouba? Como evitar, através da escrita do corpo e da escrita como performance linguística, a mera utilização da linguagem como jogo de representação, em que palavras tornam-se apenas placas indicando o caminho para alhures? Se pesquisamos, na poesia, a suposta materialidade da linguagem, então a primeira coisa a fazer seria lutar contra o que Rosmarie Waldrop chamou de "transparência do signo", fazendo da concretude da linguagem não a mera teatralização gráfica deste signo, mas a concretude como não-transparência-imediata entre significante e significado, criando um jogo de causequência. O corpo humano, aquele que se recusa a abstrair-se, que se derrete em secreções, produtor da linguagem em saliva e gases absorvidos do ar, poderia tornar-se um campo privilegiado desta pesquisa. O trabalho do poeta, assim, exigiria que ele compreendesse a poesia como algo além do jogo de linguagem quotidiano, em que palavra refere-se a objeto ou conceito, como Wittgenstein critica e expande as ideias de Agostinho no início das Philosophische Untersuchungen.

Os escritores que se entregaram a esta pesquisa (ou a esta obsessão com o corpo como "inabstraível"), seja Hilda Hilst em toda a sua escrita, o foco no "mundo das formas" até mesmo no cristianismo de Murilo Mendes, a "biografia por cicatrizes" de Severo Sarduy, os poemas de Rosmarie Waldrop, a indeterminação dos poemas de John Ashbery e Frank O´Hara, o trabalho sonoro-em-respiração de Henri Chopin, as palestras de John Cage (em que a descoberta da inexistência do silêncio ancora-se nos barulhos constantes de seu próprio corpo), o trabalho artístico de Nan Goldin, Eva Hesse e José Leonilson, sempre me serviram de exemplos, guias, mestres (só muito mais tarde percebi a "coincidência" de como a lista incluía tantos homossexuais e tantas mulheres... mas esta discussão fica para outra ocasião).

Usar em poesia aquilo que meu próprio corpo produz, ainda que isso vá parecer "narcisismo" a muitos.

Honestidade de recursos, não a falácia de sinceridade de expressão. Pois, ainda que se use o corpo nosso de cada dia, ninguém se engana em naturalidades: o que se usa em linguagem é sempre artifício.

Um dos jogos constantes em a cadela sem Logos era entregar-se aos desvios que o corpo impunha à meditação.

Tenho falado e escrito pelos cotovelos e outras articulações sobre esta preocupação est-É-tica. Ora, creio que não tenha feito outra coisa desde que primeiro vos incomodei. Perdoai. É obsessão, sim, mas não por achar isso "poético", nem "interessante", nem "Belo", nem "novo", nem "original" mas, de alguma maneira que venho tentando explicar sem saber dos resultados, necessário, quase decisivo.

Sim, eu já confessei que fui ao cinema onze vezes para assistir ao filme "A professora de piano", de Michael Haneke. O que vi naquele filme, entre outras coisas, foi o resultado de nossas sublimações, nós, os super-sublimes escritores que fingem que nunca suam, nem defecam, nem salivam, nem ejaculam, nem se menstruam. Os incorpóreos. Os que se negam a se mancharem de si mesmos. Tenho também meus motivos pessoais para ter visto aquele filme tantas vezes, pois, como disse aquele amigo meu em São Paulo certa vez, "Ricardo, você é muito Medéia."

Salvarmo-nos da neurose, aceitarmos, como adultos, nossos corpos em cada um de seus fluidos corporais, nossa limitação biológica, biográfica.

Responder com uma cure throat a quem falar em pure thought.

Dizer ao senhor poeta trans-histórico, quantos quilos e metros tem seu corpo. Alegria não é abstrata. A minha percorre 1,83 centímetros, distribui-se por 62 quilos.

§

Tudo isso para apresentar a colaboração com Heinz Peter Knes, publicada na França no mês que acaba de acabar.

Decidido a pesquisar justamente o corpo como campo de representação, como o que se recusa a abstrair-se em linguagem, trabalhei a partir da noção de Santo Agostinho que Wittgenstein chama de "um dos possíveis jogos de linguagem" no início das Philosophische Untersuchungen. Linguagem de definição. Descrição como explicação, como queria Gertrude Stein. Paródia de dicionário, para quem ri na cara de enciclopédias.

Como sempre no caso de colaboração com europeus, escrevi o texto diretamente em inglês. Seria outra discussão, a das implicações deste ato. De qualquer forma, muitos destes textos, trabalhando com as implicações do nacional e estrangeiro (apenas outra faceta do dualismo entre natural e artificial) estão em meu próximo livro, chamado Sons: Arranjo: Garganta, no prelo.

A pergunta que me impus, desde a primeira vez, foi sobre a função da tradução neste dualismo entre nacional e estrangeiro, entre natural e artificial. Por ora, apresento aqui algumas das páginas do pequeno livro Corps, de Heinz Peter Knes, para o qual escrevi o texto "body", primeiramente em inglês, depois "traduzido"/"reescrito" por mim em português e traduzido para o francês por Frédérique Longrée.




§

corpo
Ricardo Domeneck

cor.po
subst. m. corpo ['korpu]. pl. corpos. De nem
um. Massa
e peso
(favor não confundir)
anexados a superfícies
de código binário
aka masculino e feminino.
1. a. Geografia do posicionar-se. Área com fronteiras definidas; porção de espaço a sonhar com dicionários.
1. b. Locus de focus em terror, hocus pocus da lógica em orifícios úmidos.
1. c. Carcaça. "De volta à realidade!".
Diz-se 
que o mesmo ar
não pode circundar
dois ao mesmo
tempo.
2. a. Padrão de aparência perigosa para a mecânica da pureza; a ilusão da higiene. 
2. b. Não uma árvore.
Cores são encomendadas de acordo com o gosto.
Entrega segue regras de fabricação genética.
Exemplares ruivos
anexados a um pênis
são uma iguaria.
3. a. Não confiável em impermeáveis. Temporário e de oscilações frequentes. "Quase lá."
3. b. Um grupo de erros e equívocos reputados como uma sanidade; uma Corporação S.A.
Mas a esfera
privada
é também um pesadelo.
4. a. Estabelecimento comercial. Para instruções, referir-se ao manual, ao oral.
Som
conhecido como voz
cola-o
à sua definição.
5. Geringonça que não sua em fotografias:
5. a. Anal tomia. A maior peça da fricção.
5. b. Maquinaria para a produção de líquidos.
5. c. Exclusivo para índices e apêndices.
5. d. Destinado a lubrificantes.
Se cortado ou perfurado, tende a tornar-se mais atento.
6. Massa de matérias e matéria de farrapos.
Dê-lhe água,
faça-o celeste.
7. a. Uma coletânea ou quantidade, como de material ou informação: a evidência de sua inflação.
VOCÊ ESTÁ AQUI
em um mapa.
8. Mobília confortável que requer manutenção.

§

(texto "original" em inglês)

body
Ricardo Domeneck

bod·y (bd)
n. pl. bod·ies. Of no
one. Mass
& weight
(not to be confused)
attached to surfaces
of binary code
aka male and female.
1. a. Geography of place taking. An area with definite boundaries; a portion of space dreaming of dictionaries.
1. b. The locus of focus on terror, the hocus pocus of logic within humid holes.
1. c. Carcass, "Back to Reality!".
It is said
the same air
can not
surround
two at the same
time.
2. a. Seemingly dangerous pattern for the mechanics of purity; the illusion of hygiene.
2. b. Not a tree.
Colors are ordered according to taste.
Delivery follows genetic manufacturing rules
. Redhaired
ones attached to a penis
are a delicacy.
3. a. Not to be trusted in a raincoat. Temporary and quick to sway. "I am coming!"
3. b. A group of errors and mistakes regarded as a sanity; an Incorporation S.A.
But the private
sphere
is also nightmarish.
4. A business establishment. For instructions, check the manual, the oral.
Sound known
as voice
glues it
to its definition.
5. Contraption which does not sweat on photographs:
5. a. Anal Tommy. The largest part of friction.
5. b. Machine for the production of liquids.
5. c. Exclusive of indexes or appendixes.
5. d. Destined to lubricants.
When cut or pierced, tends to become more attentive.
6. A mass of matters and masses of tatters.
Give it water,
make it celestial.
7. A collection or quantity, as of material or information: the evidence of its inflation.
YOU ARE HERE
on a map.
8. Comfortable furniture which requires maintenance.

§

Corps
tradução para o francês (a partir do texto em inglês)
de Frédérique Longrée (Bruxelas, Bélgica).


Cor ps
n. pl. Cor ps. De
personne. Masse
& poids
(à ne pas confondre)
Attachés aux surfaces
De code binaire
Aka mâle et femelle.
1. a. Géographie de la place prise. Une aire avec des limites définies ; une portion d’espace rêvant de dictionnaires.
1. b. Le locus du focus sur la terreur, le hocus pocus de la logique dans des trous humides.
1. c. Carcasse, « Retour à la Réalité ! »
Il est dit
Le même air
Ne peut pas en
Entourer
Deux en même
Temps.
2. a. Dangereux modèle en apparence pour la mécanique de la pureté ; l’illusion de l’hygiène.
2. b. Pas un arbre
Les couleurs sont agencées en fonction du goût.
L’accouchement suit des règles de fabrication génétiques.
Les roux
Attachés à un pénis
Sont une délicatesse.
3. a. N’est pas fiable dans un imperméable. Temporairement et facile à influencer. « J’arrive ! »
3. b. Un groupe d’erreurs et de fautes considérés comme une santé ; Incorporation S.A.
Mais la sphère
Privée
Est également cauchemardesque.
4. Une maison de commerce. Pour les instructions, consultez le manuel, l’oral.
Le son connu
Comme voix
Le colle
A sa définition.
5. Machin qui ne transpire pas sur les photographies :
5. a. Anal Tommy. La plus grande part de friction.
5. b. Machine pour la production de liquides.
5. c. Exclusif des indexes ou appendices
5. d. Destiné aux lubrifiants.
Quand coupé ou percé, a tendance à devenir plus attentif.
6. Une masse de matières et des masses de lambeaux.
Donnez-lui de l’eau
Rendez-le célèste.
7. Un assemblage ou quantité, comme pour un matériau ou une information : l’evidence de son inflation.
VOUS ETES ICI
Sur une carte
8. Meuble confortable qui nécessite une maintenance.

sábado, 4 de abril de 2009

Se em São Paulo, quando em Berlim

Sábado de sol em Berlim, é como estar noutra cidade. É outra cidade. Berlim entre entre abril e agosto, o BERLIMBO entre setembro e março.

Se eu estivesse em São Paulo, estaria acordando em alguma rua de Pinheiros, com certeza, tomaria um café, caminharia até a Benedito Calixto e encontraria os amigos para um baião de dois no Biu.

Mas estou em Berlim, então acordo e caminho até a Kastanienallee, bebo meu Kaffee no Plazebo e sigo até o Weinbergspark para recuperar as cores que perdi durante o Berlimbo.

NO entanto, seja em São Paulo ou Berlim, nada mais divertido que estar sob o sol e sobre a grama, levemente de ressaca, gargalhando ao reler passagens favoritas de The Autobiography of Alice B. Toklas. É como uma terapia de sorrisos em chuckles. Não deixa de ser muito saudável também ver que Stein, Picasso, Matisse, Apollinaire, Crevel, todos tiveram um dia seus vinte e poucos anos, seus trinta e poucos anos, e caminhavam, bebiam café, brigavam, embebedavam-se, faziam as pazes, brigavam de novo, irritavam-se com a falta de compreensão e reconhecimento, invejavam-se, maldiziam, cumprimentavam, traíam as namoradas, os namorados, tiravam um belo de um sarro dos colegas escritores, dos colegas pintores, e seguiam com a vida, porque a lenda, meu bem, a lenda vem sempre depois.

§
§
§

"We met Ezra Pound at Grace Lounsbery´s house, he came home to dinner with us and he stayed and he talked about japanese prints among other things. Gertrude Stein liked him but did not find him amusing. She said he was a village explainer, excellent if you are a village, but if you were not, not. (...) Ezra did come back and he came back with the editor of The Dial. This time it was worse than japanese prints, it was much more violent. In his surprise at the violence Ezra fell out of Gertrude Stein´s favourite little armchair, the one I have since tapestried with Picasso designs, and Gertrude Stein was furious. Finally Ezra and the editor of The Dial left, nobody too well pleased. Gertrude Stein did not want to see Ezra again. Ezra did not quite see why. He met Gertrude Stein one day near the Luxembourg gardens and said, but I do want to come see you. I am so sorry, answered Gertrude Stein, but Miss Toklas has a bad tooth and beside we are busy picking wild flowers. All of which was literally true, like all of Gertrude Stein´s literature, but it upset Ezra, and we never saw him again."

§

"In the days when the friendship between Gertrude Stein and Picasso had become if possible closer than before ... in those days her intimacy with Juan Gris displeased him. Once after a show of Juan´s pictures at the Galérie Simon he said to her with violence, tell me why you stand up for his work, you know you do not like it; and she did not answer him. Later when Juan died and Gertrude Stein was heart broken Picasso came to the house and spent all day there. I do not know what was said but I do know that at one time Gertrude Stein said to him bitterly, you have no right to mourn, and he said, you have no right to say that to me. You never realised his meaning because you did not have it, she said angrily. You know very well I did, he replied."

§

"Eliot and Gertrude Stein had a solemn conversation, mostly about split infinitives and other grammatical solecisms and why Gertrude Stein used them. Finally Lady Rothermere and Eliot rose to go and Eliot said that if he printed anything of Gertrude Stein´s in the Criterion it would have to be her very latest thing. They left and Gertrude Stein said, dont´bother to finish your dress, now we don´t have to go, and she began to write a portrait of T. S. Eliot and called it the fifteenth of November, that being this day and so there could be no doubt tat it was her latest thing. It was all about wool is wool and silk is silk or wool is woollen and silk is silken. She sent it to T. S. Eliot and he accepted it but naturally he did not print it."


A Portrait of TS Eliot - Gertrude Stein
(Gertrude Stein - "The fifteenth of November: a portrait of T. S. Eliot", oralizado em Nova Iorque em 1934)

§

"It was not long after that that everybody was twenty-six. It became the period of being twenty-six. During the next two or three years all the young men were twenty-six years old. It was the right age apparently for that time and place."

§

"Gertrude Stein and Sherwood Anderson are very funny on the subject of Hemingway. The last time that Sherwood was in Paris they often talked about him. Hemingway had been formed by the two of them and they were both a little proud and a little ashamed of the work of their minds. (...) It was Ford (Madox Ford) who once said of Hemingway, he comes and he sits at my feet and he praises me. It makes me nervous. (...) However, whatever I say, Gertrude Stein always says, yes I know but I have a weakness for Hemingway."

§

"Gertrude Stein´s name was never on Who´s Who in America. As a matter of fact in was in english authors´ bibliographies before it ever entered an american one. This troubled Mildred very much. I hate to look at Who´s Who in America, she said to me, when I see all those insignificant people and Gertrude´s name not in. And then she would say, I know it´s alright but I wish Gertrude were not so outlawed. Poor Mildred. And now just this year for reasons best known to themselves Who´s Who in America has added Gertrude Stein´s name to their list. The Atlantic Monthly needless to say has not."

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