domingo, 29 de agosto de 2021

Diego Alves Amancio [poema]

 MUITOS CAMINHOS

levam
ao silêncio (1) recusar
à réplica, não
desenrolar o fio
da conversa: se
enforcar com
ele; (2) se ater
ao elementar: que horas
são? Esse ônibus
segue até a praça da
independência? Café
sem açúcar, por
favor; (3) se espelhar
na mudez das águas
que discursam
só quando
agitadas; (4) furar
os tímpanos
com cotonetes
de vidro; (5) cirurgiões
clandestinos,
bisturis oxidados
que desatem o nó górdio
das pregas vocais; (6) mas
o menos radical,
o mais comum
é encher a boca
com palavras,
mastigá-las com
dificuldade e
cuspi-las para cima
até atingir
o estado de silêncio
pelo ruído.


*


Diego Alves Amancio  é um poeta brasileiro, nascido em Londrina, estado do Paraná, em 1988. É ainda inédito em livro.


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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Allan Jonnes - "O sol não ilumina mais o olho bege de Gisele"



O SOL NÃO ILUMINA MAIS O OLHO BEGE DE GISELE
Allan Jonnes

O sol não ilumina mais o olho bege de Gisele
nem se pode saber qual dermatite
escama entre os dedos e as covas

das unhas doentinhas
quando Gisele lava os operados

não há sol no mundo que ilumine o caramelo triste
do olho de Gisele
e ela louva coberta de glaucoma

até as putas mais indiferentes destas ruas
curvam suas orelhas à porta da igreja Batista Betel
quando Gisele canta para os Lázaros às segundas

e rasga uma canção tão triste quanto uma criança
débil mental babando a cabeça descosturada de seu elefante  
de pelúcia numa cadeira de rodas na rodoviária do Recife 
quarta-feira de cinzas

outro dia sob a marquise de um café em Minas Gerais
bêbado de conhaque e manuseando imaginário
a caixa de controle do seu ex-trator
o viciado aponta na camisa a inscrição

a cabeça de Mao é o nosso sol vermelho

Gisele não sabe das revoluções camponesas
de nenhum lugar do mundo
mas vende calculadoras nos ônibus de linha
ao preço de dois reais
para a manutenção dos ídolos que reúne

*

Allan Jonnes é um poeta e performer brasileiro, nascido em Lagarto, Sergipe, em 1990. Acaba de publicar o livro Areia para engrenagens.

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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Érico Nogueira - "Retábulo" (inédito)


Há alguns dias, pedi a meu grande amigo Érico Nogueira que me enviasse um "poeminha" inédito para a plataforma digital da revista peixe-boi

Não esperava que o homem me enviaria este "Retábulo",  coisa poderosa que merece publicação em qualquer espaço que eu detenha. Que belo poema.


RETÁBULO


ACHEI, ENQUANTO BESTAS DE AÇO BRA-

-miam e de hélices roncavam vespas,

Um bilhete em meu nome; as letras crespas

Eram tinta de assombro, ou pez de sombra.

Abri. Exortações exatas à obra

Por obrar inda, de gramar a gleba,

E redobrar o que se não desdobra,

E em ferro duro pôr o fumo débil.

Aquelas coisas – casos aquilinos

De ovelhunas misérias cravejadas

Em madeiros de mais agudos trinos.

Crucificadamente encruzilhados

O lambique que sílabas destila,

A linfa que deflui do flanco, e estrila.



UM FOGO ABSTRATO, UM ALGARISMO FULVO

Brilhando à brisa em bruma de uma hipótese

Implausível; a glândula da hipófise

Secretando um segredo indissolúvel.

O trajeto mais reto o mais recurvo,

E a mais vígil vigília uma narcose

Que se condensa no clarão mais turvo

Da chaga sem conceito e sem necrose.

Convoluções de convolutas voltas

Em órbita de um algo, uma agonia

Que te acoita e te acode por aguda.

Conexas vozes de palavras soltas;

Escultura que escalda a pedra fria;

– Ó retrato mudável, que não muda.



SENSAÇÕES ASSOLADAS DO INTELECTO

Ou conceitos do látego acossados?

De elipse a elipse se me elude um repto

De palmas e de pés em cruz. Eu falho.

Eu quedo aquém. Dos riscos no trançado

Da madeira me obceca muito objeto.

Ah, quem me dera o talhe mais dileto

Discernir entre a massa dos entalhes.

Mas não. Cada arabesco é uma tortura

Tortuosamente amaranhada – opaca,

Oblíqua, oblonga –, flecha que não fura.

Vai ver, Senhor, é isto: a iniciática

Via-crúcis das formas é antecâmara

Do amor que se despoja e se desama.



DESPOJAR-SE PEJANDO-SE DAS LINHAS

Excessivas, elípticas que a lima

Perlustrou e poliu no madeirame

Qual enxame de traços em enxame

Ou desamar-se amando este tentame

De fiar ferros orbitais de um ímã

Que os trança e entrinça e entronca e desarrima

Em contínuo, magnético certame

É despojo de pó, mau desamor,

Cupidez de asperezas deduzíveis

Taticamente à parte do cruor

Dos espinhos... De cardos e calhaus

Mune-se a mente entre ondas infiéis;

O fiel corpo entre holandas se refaz.



DA TRANSPARÊNCIA ARTÍFICE DO VIDRO

Que se industria em nítido binóculo

Ao cristalino elemental de um olho

Naturalmente hábil – quanto dista?

Do alquímico sabor de sumo cítreo

Ou de ouropel sintético o refolho

Ao limoeiro rústico e imperito

E uma jazida abrupta entre os escolhos?

Tanto dista, ah, Senhor, quanto o madeiro

E tu nele cravado em sangue rúbeo,

Do lavrado lavor desta madeira   

E um asséptico homem de Vitrúvio.

Se Deus à carne crua já desceu,

Por que a culta subir não pode a Deus?



CARNE CULTA NO AMOR QUE SE DESAMA

De tanto amar um só e dele os muitos,

Incontáveis lugares e minutos

E rostos em que flana a sua flama

É a só que sobe a antrópica montanha

E só se o pensamento exato e enxuto

Não for culto de formas, mas for culto

Em armar aranhóis, absorta aranha.

Assim, se a carne sobe, numa teia

Do pensamento arácnido quem sabe

Se mais lúcida abelha não se enleia

E alumia o que a carne só não sabe.

É um outro amor, este do pensamento;

Um brilho, um voo, um eco, um raio, um vento.



É O PENSAMENTO, POIS, QUE SE DESPOJA

Da série monocórdia de sinapses

E entre lobos e córtices se arroja

Tão vária e velozmente que num lapso

O sistema ancestral cai em colapso;

E o pensamento, puro do que enoja,

Como luz e calor na mesma tocha,

Converge em raros, rarefeitos ápices;

Mas, ai, que a carne clama, inda que douta,

E, socolor de cíclico equilíbrio,

O sistema caído se levanta;

No breu de um pensamento já sem brio

O cérebro maquina maquinal

E a nova se enovela, e é o velho mal.



MAL DA FOSCA FRIEZA QUE DESCREVE

A maligna engrenagem do relógio

E o minuto e o segundo, como fogem,

E como corre o mal e quanto ferve;

A arquivolta, a arquitrave e os tramos lógicos,

Alaques e predelas que refervem

De nervuras nervosas e da verve

De ornatos flóreos e ornitológicos;

Mas o mal não evita, quando vem;

Mas o bem, quando foi é que o adora;

E um conhece se aflui, o outro se falta;

Desce aos detalhes e os descreve bem,

Mas, atômico número do ouro,

Não sobe nem reflete nem refrata. 



ASSIM SUBISTE AO CIMO DA CAVEIRA

Por açoites, espinhos, cravos, sangue,

Assim lime e labore e lustre e lanhe

Por escrever o que não escrevera.

E por poder o que já não pudera,

Ou já por que o perdido ou ache ou ganhe,

Hei de arrancar de mim o que da terra

Ninguém arranca, quando não lhe arranquem.

És tu, Senhor, quem troca no meu tórax

A pedra que se veste aí de víscera

Por víscera que vige, e aonde moras;

Então, quanto cultivo, é quanto viça,

Então as sílabas que escando, tantas,

A só ressoam que contigo cantas.


§ Caetera desiderantur §



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