segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Guilherme Gontijo Flores

Guilherme Gontijo Flores (n. 1984)


Com 30 anos completados este ano, o brasiliense Guilherme Gontijo Flores já pode, em minha humílima opinião, ser contado entre os mais importantes intelectuais de sua geração. Estreou no ano passado com o volume brasa enganosa, livro que foi saudado em várias resenhas (a mais recente no Diário da Manhã, 27.12.2014, outra, mais antiga, na Gazeta do Povo, 14.07.2013) e concorreu a alguns prêmios. Mas, se celebro sua existência aqui, deve-se ainda ao fato de Gontijo Flores ser hoje um dos melhores tradutores do país, tendo-nos dado a tradução completa das Elegias de Sexto Propércio, além da premiada tradução da Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, traduções para Horácio, e outros, incluídos na vindoura antologia Poesia Homoerótica Latina, a sair pela excelente editora Autêntica em 2015. Além disso tudo, ele é coeditor da revista  escamandro, uma das melhores a surgir no país nos últimos anos, e na qual também publica traduções esparsas de poetas clássicos e modernos.

Seu primeiro livro é realmente uma bela estreia, mas os poemas que vem escrevendo desde então tomam minha atenção com muito mais força. Seu segundo livro será uma contribuição ainda melhor, estou certo disso. E é desses poemas mais recentes que tomo dois de meus favoritos, publicados pela primeira vez na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., com a qual o brasiliense já colaborou algumas vezes.

Dessarte segue minha série Poesia Nata nos 80.




DOIS POEMAS RECENTES DE GUILHERME GONTIJO FLORES (Brasília, 1984)


A vida & as opiniões do barnabé guilherme gontijo flores servidor do estado 

1.

    Não fui criado para o filho certo
nem para o único
& mesmo assim em algo o sou
ainda que isso nada diga
de mim de outro estulto qualquer
eu não me congratulo
pois cada meu fracasso
não fora antes planejado
porém não disse nada inusitado
& em cada passo armado
o risco de cair
se deu como a delícia
por  descumprir a sina ignorada
    O tédio não foi bom
nem mau nem meu nem médio
& confesso que nunca
pensei pular do prédio
para espetáculo da turba
que ajuntada na pressa
logo estaria estupefatamente
desinteressada
    Eu pensei no passado
aquela velha igreja por exemplo
eu muito mais me a adentro
do que alguma vez
pisei no seu mistério
& cada templo em que passei
mais parecia a casa
envelhecida dentro de um museu
como aquela matriushka que nunca tive
porque estava em outra parte
falseando outra história
    Eu não sorvi do sangue das vitórias
eu nem mesmo as contei
em nada fui desapontado
& creio não desapontei
na tarefa tão árdua de um abraço
eu recuava ao tempo da família
dos quadros apagados
dos nomes sem memória
& de um brasão talvez
perdido nas gavetas inventadas
de algum antepassado
que hoje sumiu sem deixar traço
& sem abrir no espaço
uma ferida falsa
à qual eu me apegasse
toda história é cansaço


2.  Quanto à canção de amor

A tua ausência me dói
seria mais uma frase
de merda para qualquer
parte do poema qualquer
que nem penso em escrever
& ainda assim eu escrevo
aqui agora & inútil
justificá-la por frase
feita com sinceridade
do meu estoque mental
falacioso e mais fácil
do que a dor sim verdadeira
de pensar não te pensar
por saber que a tua ausência
todos bem sabem sequer
existe logo não me
nada & por isso eu prefiro
tua lembrança me dói
tanto que canto pra ver
se soa menos banal
cantar um outro estribilho
tua presença me dói
tanto quando entra pelos
sete buracos da minha
cabeça igualzinha a este
sabonete que hoje entrou
por apenas um buraco
tão ínfimo da cabeça
(no desatento do banho)
do meu pau & assim presente
quanto inútil é que se fez
dentro de mim como eu mesmo
que só resta rejeitá-lo
& falsamente voltar
a mijá-lo talvez por
gozar talvez dessa dor
que por sair é que dói
nesta cena tão dolor
osamente repetida

3.  Finale glorioso

Só falamos ou quase
de mim você ficou
na sombra como os pais
da égua inominada
do clint eastwood naquele
banguebangue que você
gostava & agora já não lembra
qual era o nome mesmo?
então façamos só você & eu
mais um experimento
para encerrar o expediente
seria assim apenas
pro teu contentamento
de leitor pró-ativo
com nome jubiloso
algo como poética
do reconforto sim?
pois pegue um bom copo portátil
(de alumínio cria um
melhor efeito ao texto)
retire a tampa & monte
até ficar perfeito
encha o seu copo até a boca
& meta a boca nele
tome uns 2 ou 3 goles
daquela mesma água
(pouco importa o sabor
eu prefiro pensar
que seja água da talha)
já chegamos ao ponto
desfaça o copo de uma vez
e veja como a água que
se espalha no carpete
(imagine um carpete)
seja agora a melhor
metáfora da tua vida
você sorriu? você
voltou a pensar se
cortaria os teus pulsos?
você não acha mesmo que a sua
vida não serve de metáfora?

§

cansós

1

não pense que agrada tanto
nunca sucumbi a um servo

nunca lancei
abraços nessa cruz
coisa de matronas
que beijam
marcas de chicotes

eu
    mesmo sendo criada
só cavalgo cavaleiros

2

 no peito tímido
        meu mugido de cervo
enlouquecido em extravios
minha descara
& a donzelice (dentr’
outras cousas)
mui bem perdida
nas ondas do mar de vigo

– a mais feliz vaga do mar de vigo –
& eu bem queria, mãe
que ao me levar
você me jogasse
     nesse mar cruel
& inchado
das ondas purpúreas


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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Reuben da Cunha Rocha

Reuben da Cunha Rocha, ou cavaloDADA, ou o xamazenexu da poesia nata nos 80

Primeiro ouvi falar do senhor Cunha da Rocha por Fabiano Calixto, que recomendava publicarmos poemas do maranhense na Modo de Usar & Co. impressa. Eu poderia usar o atalho agora e dizer apenas: "O resto é História", pois desde então o xamazenexu (não procure no dicionário, pus as palavras na valise agora) da poesia nata nos 80 se tornou um dos maiores colaboradores da revista, com inúmeros artigos sobre poetas brasileiros, como Celso Borges (São Luís do Maranhão, 1959) e Cátia de França (João Pessoa, 1947), e traduções de estrangeiros como Allen Ginsberg (1926-1997), e.e. cummings (1893-1962) e Linton Kwesi Johnson (n. 1952).

No terceiro número impresso da revista, publicamos seu ensaio "Poesia inútil, poesia irrelevante?", fundamental para quem pensa hoje a poesia contemporânea e já disponível na franquia eletrônica. Vários poemas seus podem ser lidos por lá, assim como os artigos e traduções. Publico aqui, nesta série dedicada à poesia-nata-nos-80, dois poemas recentes do xamazenexu da década.


DOIS POEMAS RECENTES DE REUBEN DA CUNHA ROCHA (São Luís do Maranhão, 1984)


Reuben da Cunha Rocha / cavaloDADA : "Apokalypse Nau" (2014)

§


LOGO ACIMA DO SILÊNCIO DO ÍNDIO Q SE SUICIDA
o enforcado sonha em disparada desta atmosfera pesada p/ outros mistérios + esferas
logo acima
dos abacates suspensos podres 1tupi akira
vara a febre do mosquito galopa aflito p/1lugar longínquo + escapa
às tentativas de assassinato
vista multidimensional do universo
amplo ataque do enxame sobre o exército

dura a pedra dura a pétala dura o bicho cada qual cada vez cada séc.
é o arroto do raio o trovão na imaginação do cego
depósitos de mão
de obra pobre
p/ as impraticáveis
monoculturas currais + covas
chamadas de reservas
o país q em favor do capital opera criminosamente a transferência brutal de indígenas terras
a homens rudes c/ rostos ocultos sem qqr relação c/ elas
gira o sumo no seio da panela morde a língua entre toras de palmito nasce o fogo q nasce do atrito enqto aspiram os seus cachimbos magníficos nova forma de banzo embalada pela nau do desdém LIMITE DE EMBARQ: 1100

papo rente nas vielas tortuosas nas cabeças nas rasantes calçadas talagadas entraves + tragadas ferve o sumo nas veias transtornadas

sem convívio
sobrevoa o continente o vestígio
d1 animal q achava q era gente espíritos nativos represados fantasmas samurais entre os guarani-kaiowás a curva ascendente dos casos de suicídio
tendência > 20x + 
q entre os cidadãos brasileiros doutras classes sociais

ouve o rio
q ñ tem direção + q ñ anda a esmo
1000caminhos
entre a carne + o esqueleto corre o sangue avoado círculo ambíguo pragmático crespo lácteo mel ígneo magnético moro no olho q espelha 1velho espírito íntimo casa rua raiz campo fértil
microrganismo incisivo ligado respirando fundo + pelo mundo respirado 1calângo jubiloso + lânguido ágil réptil respirando fundo + indo à toda pela deslizante dentição da roda fétida
24h x 7
a mente vegetal prepara lenta a réplica
lépido radiante assalto à serra elétrica
p/ além do esgotamento q provém da ganância
suavidade p/ extirpar o veneno da vingança
nas entocas nas ferrugens do progresso
vai prudente
+ ñ se esquece
q a experiência é o +astuto mestre
+ a trilha longa em q caminha a luz dos corpos celestes
+ q só vamos saber o q é suficiente qdo soubermos o q é + q suficiente
na curva da cobra nos cornos do touro no couro
do tigre na pata
do elefante
percepções sutis na sombra de 1sutil caminhante
q desapareceu pq era agricultor + 1guardinha o confiscou = 1vil transeunte
relato q ele ouviu d1 pescador
da planta q depois do sol se pôr o ajudava a ver o mar brilhante
a vaga vaza + vai entre a enchente + a vazante

verdades estão além das certezas violência se vence c/ delicadeza equilibrismo dos pés em convictos barbantes grosseiros o sol calmo centro dentro vagueia atenção plena + inteira na linha descontínua d1 flecha fina q dissipa a espessa púrpura neblina + se dissemina c/ o coração à frente do caminho 1vivente insiste se afina no instante + amanhece
sem pino sem trava
sem tolice





segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Texto em que o poeta apresenta o relatório sobre os efeitos resultantes da ação da gravidade sobre os porcos



Há poucos dias, eu  elogiava o trabalho poético de PJ Harvey, ao ler a notícia de que ela pretende lançar uma coletânea de poemas em 2015, intitulada The Hollow of the Hand (que título!), em parceria com o cineasta e fotógrafo Seamus Murphy, criador dos filmes para seu álbum Let England Shake (2011). Repito aqui o que disse nas redes sociais: já tenho muito respeito por Polly Jean, poeta. Várias de suas letras funcionam muito bem na página, e aprendi algumas coisas com ela. Quem se interessa pela tradição oral e o trobar medieval não se espanta. Sempre apreciei nela o que chamo de tristeza raivosa, algo que busco em alguns poemas. Não choramingar, mas só deixar cair a lágrima se os dentes estiverem trancados uns nos outros. Uma coisa que me parece clara em certas canções suas é a lição de que minimalismo e concisão não precisam significar esterilidade emocional. Sente-se isso também em Lorine Niedecker ou Robert Creeley, por exemplo.

No artigo, ela diz ter muito interesse pela imagem, o que fica claro ao percebermos a força fanopaica de canções como "Is this desire?" e "Rub till it bleeds". Polly Jean foi importante para mim em dois momentos específicos. Lançou o álbum Stories from the City, Stories from the Sea (2000), com canções que me ajudaram muito em 2001. E, em 2011, o pior ano da minha vida, o ano em que escrevi Cigarros na cama, ouvi muito seu White chalk (2007). White chalk é um grande álbum, com canções que são realmente primores, como "The devil" e especialmente "Dear darkness". A força destas canções, para mim, beira o místico, como em certos poemas de Hilda Hilst, como "A Mula de Deus".

Lembrei-me deste poema escrito naquela época, em que faço duas referências veladas a PJ. Acho que depois do textinho acima ficará fácil identificar quais.

Texto em que o poeta apresenta o relatório sobre os efeitos resultantes da ação da gravidade sobre os porcos

Como vazio, vácuo, a sobra
seja raivosa

feito aquele que só caminha
por desertos

em secura de gelo, giz branco,
onde a ânsia

contenta-se no pus, a vingança
em separar

ao ar livre, pele ferida de pele
intacta,

apouca-se ou serve-nos morna,
cansa-se

de assoprar mil queimaduras
em graus,

cardápios da tal revanchíssima,
a arte

da farpa não é maestria difícil,
Master,

inicio sempre com os grunhidos
de ameaça

e depois me posiciono a lamber
as suturas,

THE END de joelhos, sussurros
aos favores.

Dona Escuridão, vem cobrir-nos
feito edredão, 

esquadrinha, compasso e bússola,
o caminho

da maturidade, sim? Sim, retirar
das pedras

a lição e a lesão? Hein, Master?
A Educação

pela Perda, não? Cervical, rastejo
e decúbito

me abordas com quatro ferros
nas mãos?

Fiz meu dever de casa, oh Master
de plástico,

contei com os dedos nos cálculos
e nos rins,

ofertei decréscimo à tua contagem
repressiva

e subtraí em deflação dos males
o menor,

menos valem os pássaros voando
que este

que defeca em minha mão, Master,
vim, vi,

me rendi, cresci ereto, sem bacamarte
ou funda,

sem o bom gosto de tuas artilharias,
todo alvo

hei-de demonstrar meus bons modos
ao kamikaze

e o mais que me resta, hospitalidade
na oferta,

Master, da outra, minha melhor face.

§

Ricardo Domeneck, in Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012)


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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Luísa Nóbrega


Luísa Nóbrega, “ventríloquo ou talvez tudo já tenha sido dito” - 2012, 
ação em que passou 21 dias em silêncio, se comunicando apenas por faixas pré gravadas em um gravador digital


Descobri o trabalho de Luísa Nóbrega (São Paulo, 1984), graças a Érica Zíngano, que preparou para a Modo de Usar & Co. uma postagem sobre a poeta paulista, com o artigo "Mercúrio em Conjunção com o Ascendente", publicado em agosto deste ano. Foi uma descoberta para mim, que não conhecia seu trabalho em performance ou textual. Gosto muito de ambos. Temos alguns pontos de contato, a obsessão pelo corpo, a recusa a escapar dele, pela consciência da impossibilidade.

"gorge", de Luísa Nóbrega



Compartilho com vocês. Poesia nata nos 80.


DOIS POEMAS RECENTES DE LUÍSA NÓBREGA (São Paulo, 1984)

meu salto engancha
em escadas rolantes
derrapa, enfático
sobre pisos úmidos

quase sempre
 mantenho o equilíbrio
- o difícil é que eu queria tentar
algo de vidro


chaleira, leiteira
tem que poder ir no fogo
tenho respostas-reflexo
de modo que não chega
a haver tombo


não rolei da escada
graças à risonha destreza
dos meus dedos mindinhos


faz a conta:
o que de mim se conserva?

.

para não ter um filho esmagado
Inga, da Bielorússia
ergueu um carro vermelho
de uma tonelada.

estourou as fibras musculares.
será que o vidro é impossível?

.

meu caso é menos dramático
não há garotos soterrados
a resgatar

.

vez ou outra arremesso a testa
contra um muro de tijolos

(será que é muito complicado
caminhar para trás?)

§

tive a prova definitiva da existência de deus


marcas de sisal nos antebraços que não esticam nunca.

qualquer outro teria passado indiferente:
eu paro, por falta do que fazer.

.

o cotovelo dele não vira ao contrário, como o meu.
parece um monstro sem cabeça, mas é só um sujeito
algo franzino
com o pescoço apoiado no espaldar de madeira.

tem resignação de uma cabeça aplainada
que espera a guilhotina.

.

dois nós firmes nas extremidades da corda esticada
perturbada de quando em quando
por pequenos, nítidos socos.

tudo é mórbido. essa é minha última grade ou portão.

.

os pés dianteiros são morcegos que esvoaçam.
esticam e encolhem num movimento irregular/ atordoado
como se alguém sacudisse escandalosamente
um livro de salmos.

ah, esses mamíferos cegos de radar infalível –
sua precisão é insuportável.

.

agacho atrás de uma moita para não fazer xixi nas calças.
enquanto minhas coxas se molham
cantarolo uma ode

- qualquer coisa que esgarce a oposição entre
carne mortificada x
espírito eterno e sublime.


não dá muito certo, mas sinto uma espécie de alívio.
anacrônico, não faz mal.

.

não espero salvação. a gente não se livra de um susto assim tão fácil.

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por falta de milagres, faz tempo que eu não durmo –
quisera ter a convicção grosseira dos santos.

.

mas entenda:
é imprescindível que haja uma grade ou portão fechado.
duas colunas. um gancho.
qualquer coisa capaz de suportar dignamente
esses nós paralelos intermináveis.

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de olhos fechados
o grunhido cheio de muco de um
penitente


nenhum céu adiante
nem mesmo inventado

.
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Efígie medieval de Leonor, fotografia moderna de Simone




Efígie medieval de Leonor, fotografia moderna de Simone



"Força é mudares de vida."
Rainer Maria Rilke, "Torso arcaico de Apolo", tradução de Manuel Bandeira



Não, Rilke, não. Não é um torso de macho decapitado com suposta luz interior que exige de mim que mude minha vida. Não.

Antes a efígie de Leonor da Aquitânia, a grande; da Dinastia dos Ramnulfides; neta de Guilherme IX da Aquitânia, o Trovador; a mulher culta que acabou casada com trogloditas-reis; sob a patronagem da qual cantaram Wace, Benoît de Sainte-Maure; que foi amada por Bernart de Ventadorn; a que recebia os maiores artistas do seu tempo em sua corte, em Poitiers, corte que, lenda ou não, passou à história como a do amor cortês; rainha consorte da França, rainha da Inglaterra, Duquesa da Aquitânia e da Gasconha, Condessa de Poitiers; a que esteve presente na Segunda Cruzada e demonstrou maior habilidade militar que seu primeiro marido, Luis VII, de quem ela disse "Pode ser rei, mas parece um monge"; a que fazia o que queria, fosse ter um caso com o tio ou anular seu casamento para casar-se com o primo distante, 9 anos mais moço; aquela que depois liderou rebeliões com seus filhos contra o mesmo, seu segundo marido, Henrique II; a que foi banida e presa, por este, por 16 anos no Castelo de Sarum; a mãe de reis e rainhas, entre eles Ricardo Coração de Leão; rainha-leoa que teve sua efígie esculpida não com espada ou cetro nas mãos, mas um livro.

Antes a foto de Simone Weil, a responsável, os olhos fechados detrás dos óculos; a que escreveu o panfleto "Allons-nous vers la révolution prolétarienne?" e foi chamada de herética pelos patriarcas da Igreja Marxista Ortodoxa; a que se dividia entre a enxaqueca e o êxtase, entre a vindima e a ascese; a que lecionou filosofia apenas para meninas; a que lutou na Guerra Civil na Espanha mesmo sem saber manejar arma, pois sentia que era sua responsabilidade; aquela que teve um epifania na Basilica di Santa Maria degli Angeli e completou sua revelação na leitura de um poema, "Love III", de George Herbert; que foi a Londres e atazanou De Gaulle até que este a engajou na Resistência Francesa; não sem antes, trabalhando num vinhedo, encher cadernos de meditações que formariam um livro chamado "A Gravidade e a Graça", que eu leio sentindo-me desnudo, como se ela delicadamente arrancasse-me a máscara; aquela que disse que "A atenção é a mais rara e pura forma da generosidade"; a que se recusou a comer, com um pé já na cova, pois se os judeus morriam a milhares de quilômetros aos milhares, ela não podia comer; e que então morreu de maneira cátara aos 34, sozinha, olhando uma árvore pela janela.

E assim passo os dias, entre o desejo de empanturrar-me em êxtase na corte de Leonor da Aquitânia, e jejuar em ascese num convento com Simone Weil, contraditório, entre enxaquecas e epifanias.

São estas que, ao olhar-me ao espelho, perguntam: E você, faz o que da vida?


§

Berlim, 10 de dezembro de 2014.

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Uma pochete para Antonio Prata




Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Tenho, creio já ter demonstrado, ainda que ele tenha pretensões a ser de outra estirpe, ocupado, como vivo, querendo emular gente como Oscar Wilde e Dorothy Parker, ou, mais recentemente, Fran Lebowitz e Stephen Fry. Perdoem. Gera certa acidez na boca, lidar com wit, não humour. Quem leva pedrada aprende a rir diferente. Não há-de me emplacar nas paradas de sucesso da Globo, da Folha, ou levar-me à cadeira do Jô. Culpo meus pais por não terem morado no Rio de Janeiro enquanto eu crescia, para que eu desenvolvesse este gosto pitoresco pelo escracho, o que transforma comediantes brasileiros em luminares da cultura nacional pela porta da frente.


Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Tenho, sorri com o canto da boca, por exemplo, ao ler hoje o texto de Antonio Prata na Folha, chamado "Direitos do homem (sensível)" (Folha de S. Paulo, 30/11/2014), em que ele reclama humorísticamente da falta de um movimento político que o defenda, jovem heterossexual que só quer poder assistir a um jogo do Criciúma com a namorada num sábado à noite, andar de patins e de pochete. Falta-lhe discernimento para perceber que queremos apenas salvá-lo de si mesmo e do ridículo de seu desejo de pochete. Quanto ao jogo do Criciúma, knock yourself out. Como disse Wilde, a pior coisa que pode acontecer a um homem não é não conseguir o que deseja, mas sim o conseguir. No entanto, tenho firmes convicções democráticas, gostaria que Antonio Prata fosse feliz e hoje mesmo fosse visto sob a marquise do Ibirapuera, de patins e de pochete.

Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Não espero exatamente do Brasil, a esta altura, um Monty Python, e já não leio há anos a Folha e os grandes autores contemporâneos nacionais que lá escrevem, a não ser quando algum amigo virtual posta um artigo precedido por aquela curiosa repetição da letra K para demonstrar seu riso. Gosto de riso, caio como mosca no mel. Pessoalmente, preferiria que brasileiros não usassem a letra K desta forma, pois sempre me faz imaginá-los não rindo, mas cacarejando sob um capuz branco pontiagudo. Poderiam usar o R e o S juntos, como fazem outros, ainda que isso sempre leve minha mente para o Rio Grande do Sul, e sei que é preciso escrever um poema sobre o Rio Grande do Sul, mas eu estive lá o mesmo número de vezes que esteve Drummond na Bahia. Sempre sugiro o inglês LOL, porque me lembra o SOS, e penso que todo riso tem seu aspecto de braços agitados em alto-mar, o corpo já meio submerso.


Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Sim, sim, não quero ser adepto da "política do ressentimento", nem sacerdote do politicamente correto. Leio o texto do homem sensível, Antonio Prata, e sorrio com o canto da boca, sim, eu confesso, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, vejo nele um daqueles exemplos escamoteados de machismo, daqueles bem básicos, mas é humour, eu sei, além do mais brasileiro, nós somos a democracia racial e ostentamos esse machismo, mas é um machismo democrático, inclusivo, que diz ao amigo viado e à amiga puta que riam, riam, vamos rir para não chorar enquanto são os viados e as putas que levam pedrada. Mas lá está o homem sensível, para nos abraçar e dizer, riam, riam!, vamos rir para não chorar. E ele pede tão pouco, apenas que o deixemos usar uma pochete.

Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Tenho, claro, por que haveria de me apoquentar porque o celebrado e talentoso colunista da Folha pediu um movimento que defenda os homens sensíveis, mesmo que isso lance mão de um nivelamento pela piada de reivindicações sérias de movimentos realmente políticos das minorias, que já falharam até em conseguir proteção na Constituição? Não é culpa dele que estejamos lidando com homens nada sensíveis como Jair Bolsonaro, que também gosta de rir, ele está apenas cumprindo seu número de toques para o jornal, seu texto semanal, seu ganha-pão, não precisa de bichas azedas acusando-o de talvez ter escrito um texto levemente machista, ainda que bastante democrático. E certamente muita gente riu e espalhou Ks e Rs e Ss pelas redes sociais. Pessoalmente, ri mais com as fotos da Parada do Orgulho Hétero no Rio de Janeiro.

Ora, direis, não tens humor, Domeneck?

Certamente, sei até mesmo que gente da minha laia precisa ter, já que só entra na novela da Globo se for para servir de palhaço, tem que ser engraçadinho, então somos, somos muito engraçadinhos, estamos aqui, fazemos nosso papel, tentamos salvar os machos sensíveis de seus desejos irrefreáveis por pochetes, já nos acostumamos até a ver como, 5 anos mais tarde, até os boys da Paulista estão usando as roupas que usávamos 5 anos antes, alguns estando talvez até entre os que se divertem, nos finais de semana, quebrando coisas na nossa cabeça na mesma gloriosa avenida. De qualquer forma, tenho minhas convicções democráticas, elas são firmes, e se alguém puder, por favor, envie para a redação da Folha de S. Paulo uma pochete, endereçada a Antonio Prata. Eu pago.

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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Philippe Wollney

O poeta pernambucano Philippe Wollney


Não conheço Philippe Wollney pessoalmente. Descobri seu trabalho no ano passado, quando vi seu nome entre os convidados do Festival Internacional de Poesia do Recife, do qual eu havia participado no ano anterior. Tento me manter informado sobre o que está sendo publicado no Brasil, responsabilidade de editor e crítico, e pesquisei sobre seu trabalho. Em correspondência esparsa com o poeta pernambucano, preparei uma postagem para a Modo de Usar & Co. e venho seguindo suas publicações.


Vídeo baseado em texto de Philippe Wollney

Philippe Wollney nasceu na cidade de Goiana, Pernambuco, em 1987. Lançou o livro Poemas de um eu cretino (2014) e publica trabalhos ainda pelo selo Porta Aberta. Pelo que pude ver e ler até o momento, parece-me um autor com clara formação na tradição oral de Pernambuco, bastante ativo na cena cultural de sua cidade, e com um talento claro para a vocalização e a performance. Gosto muito dos poemas abaixo, e recomendo localizar o pernambucano em seus radares. Espalho aqui as boas novas, natas nos 80.


DOIS POEMAS RECENTES DE PHILIPPE WOLLNEY (Goiana - PE, 1987)


[o que aconteceu conosco]

o que aconteceu conosco

que neste inverno
o que nos tira o frio
são as fagulhas de nosso inferno

o que aconteceu conosco

o sarcasmo de nossos olhares
transmutado
na tragédia do zodíaco a dois

o que aconteceu conosco

a manhã sorridente de papel celofane
dasanuviado
a sobra apenas dos caninos

o que aconteceu conosco

abraços carregados nos dentes
afagos nas cáries
e um delicado carinho de barbárie

o que aconteceu conosco

brotoejas de anêmonas no pescoço
trocando colares
de dedos e dentes de crianças

o que aconteceu conosco

tórax essa caixa de muambas
coração do paraguai
um futuro made in china

o que aconteceu conosco

o reduto do vinho, o umbigo
parada obrigatória
da língua na chaga no ventre

o que aconteceu conosco

assovios de encantar serpente
da cobra
a pele morta do dia aparente

o que aconteceu conosco

o que se abria em lábios
do beijo
o sobejo de uma carne que não se digere

o que aconteceu conosco

pés que tilintam são ecos
em um salão vago
e uma sinfonia de calos e vida encravada

o que aconteceu conosco

que de morno os nossos nomes
o mofo
e a fome de pastores tangendo o rebanho

o que aconteceu conosco
o que aconteceu com nós
com os nós

§

[quando eu disse, eu te amo]

quando eu disse, eu te amo
já haviam se passado quatro anos
que se estouravam cravos
e se cravavam unhas roídas
em meus cabelos secos.

quando eu disse, eu te amo
todos os livros de nosso poema
já estavam com as bordas das páginas
cheias de tártaros
e flores de café em nossas leituras.

quando eu disse, eu te amo
os discos haviam perdido suas capas
todas as faixas eram chamadas pelos primeiros versos
e não havia mais autoria
todas eram nossas.

quando eu disse, eu te amo
o bojo do violão no canto da sala
já havia servido de bandeja para cerveja
assento para nossa filha
e assistiu todas as minhas falhas.

quando eu disse, eu te amo
resolvi mudar todos os quadros da sala
plantei agrião na pia
e interditei a geladeira para servir de jardim
para alecrins, erva-doce e coentro.

quando eu disse, eu te amo
finalmente compreendi porque geraldo azevedo é foda
e sua música penteou meus lábios
e revirou a tábua de marés de meu coração.

quando eu disse, eu te amo
não me senti melhor, nem pior
nem tão pouco dizendo algo de especial
apenas me senti pequeno e inundado
por um segredo que quase esqueci.

quando eu disse, eu te amo
criaturas abissais dos mares frios de meu peito
fizeram vanguarda em meu desespero
tomaram absinto e se habituaram
a sentimentos profundos.

quando eu disse, eu te amo
mais uma criança velava seus pais
mais pais velavam seus filhos
e se retomava o habito de criar
presos políticos.

quando eu disse, eu te amo
havia me tornado angústia e espera
como os quadros do chirico
e escondi embaixo do lençol vermelho
a antologia de poemas de brecht.

quando eu disse, eu te amo
aquele cão dos infernos zombeteiro
passou a mão em minha bunda
e me deu uma rasteira.
- a vida não é literatura, porra!

quando eu disse, eu te amo
de minha boca fez-se espuma
e como animal em cólera
mordi o próprio rabo
e dormi lambendo ossos.

quando eu disse, eu te amo
havia chegado tão tarde
que o bonde do desejo
já havia passado há dias
e por outros 23 dias, queimava a parada,
e plantei bredos no asfalto.

quando eu disse, eu te amo
o tempo havia fechado
e por mais que quiséssemos
os nossos tênis não secaram atrás da geladeira
- nos tornamos pés frios.

quando eu disse, eu te amo
a barra havia ficado pesada
nas mochilas não cabiam todos os livros
e por mais que precisássemos carregar
móveis e eletrodomésticos
comemos pão frio, lendo manoel de barros.

quando eu disse, eu te amo
já não adiantava chorar pelo leite derramado
ou pelo aumento dos alugueis
compramos uma barraca de acampe
um colchão de ar
e seja o que deus quiser nos arrecifes da vida.

quando eu disse, eu te amo
minhas palavras precisavam de fiador
e de um seguro contra perdas e danos
e todas as minhas senhas de e-mail e dos bancos
estavam apregoadas na porta da geladeira.

quando eu disse, eu te amo
tenha dito tarde demais
com um amor demais
para um eu em menos.

quando eu disse, eu te amo
eu disse.

.
.
.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Ederval Fernandes


O poeta de Feira, Ederval Fernandes

Conheci Ederval Fernandes, nascido em Feira de Santana em 1985, quando estive em Salvador para ministrar uma oficina na Fundação Cultural do Estado da Bahia. Ederval Fernandes é crítico e poeta de mão firme, especialmente quando usa o corte ágil. Tem, além disso, um dos trabalhos mais interessantes, que li nos últimos tempos, na pesquisa dialetal e de léxico local, como no poema "O cobrador da van disse" e, de outra maneira, em outro poema seu recente, "A cabeça do preto", publicado por ele nas redes sociais, poema também de força política diante de nosso racismo sistêmico. Nesta postagem, tentando mostrar dois aspectos de seu trabalho, posto "O cobrador da van disse", com vocalização dialetal do poeta, e o ótimo "Da minha boca". Seu livro de estreia, O Livro Conta Corrente (Feira de Santana: Sarò, 2014), será lançado este mês.

§

DOIS POEMAS RECENTES DE EDERVAL FERNANDES (Feira de Santana, 1985)




O cobrador da van disse

oxeee, mô fio,
é ba-rril.
nego pagou foi pau.
né, moral,
tu num viu?
tu vai pá rua,
pacêro?
simbora, qui é passe.
dinhêro né mato,
que nasce à toa.
amanhã é dumingo,
viu, coroa?,
e cabucives é sagrado...
sem baratino,
no barro, só de boa.
e é isso meismo.
mar menino.
se alterar o plantão,
tu já num sabe?
é daquele jeito,
mô fio.
é dá um mole,
o pipoco vem.
vai, sá-cana -
é-só-o-barril.

§

Da minha boca

a vertigem
do dia são estas
horas:

luz e fogo
levando
embora a noite
calma.

um nada
no nada,
meu adágio
sai e segue.

e um deus (morto)
bebe um café
comigo.

 *

“perigo”,
ele me diz,
“não sou eu,
amigo,
o infeliz
que te trouxe
ao veneno”.

eu sei, eu
digo,
desde pequeno

(cravado
no umbigo)
trago comigo

este jogo
de ases.

e não
vou, eu sei,
fazer
as pazes:

se as fiz,
eu falhei.

 *

do som,
quero a canção;
da mão

(é verdade),
quero e não sei
a liberdade.

não da forma
oca - o veneno
é da boca.

se a língua
portuguesa
é pouca,

isto não é
problema?

não aqui,
assim,
no meu poema.

.
.
.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de William Zeytounlian


William Zeytounlian, o esgrimista francófilo


Descobri e tive o prazer de conhecer alguns novos poetas este ano. Dentre eles, William Zeytounlian é certamente um dos que acompanho com maior interesse, e de quem espero poder em breve ler o livro de estreia. Os poemas espalhados pela Rede já mostram o talento auspicioso do jovem paulistano. Postei vários já na Modo de Usar & Co., da qual Zeytounlian tornou-se colaborador assíduo, com poemas, artigos e excelentes traduções. Ele foi também traduzido para o castelhano por Paula Abramo, que comparte comigo do entusiasmo por seu trabalho. Uma das traduções foi postada na revista que coeditamos, Area de Libre Poesía de las Américas. Li recentemente este novo poema dele, que demonstra mais uma vez a qualidade do que vem fazendo. Excelente poema. Encerro com o último que publicamos na Modo de Usar & Co. Os nascidos nos 80 vêm chegando. Aliás, jamais compreenderei os poetas mais velhos que ignoram o trabalho dos mais jovens. Alguns dos diálogos mais intensos e frutíferos que tive nos últimos anos foi com autores dez anos mais jovens que eu. Bem, também não estou tão velho assim (wishful thinking). Mas ao que importa: dois belos poemas de William Zeytounlian.


DOIS POEMAS RECENTES DE WILLIAM ZEYTOUNLIAN (São Paulo, 1988)


Monumentos à barbárie (toda parte)

sobra sobre sobra –
assim se desdobra
a intraduzível sombra
que ombro a ombro
assombra a estranha
soma que escombra
os monumentos;

pedra sobre pedra –
assim se manifesta,
à margem da imagem,
no abismo de uma fresta,
a larva que infesta a cesta,
a malha que a lama orvalha.

§

[noite fora]


noite fora
de medida

de censura,
vida ou corte:

testa o dia
sua sorte

na cesura
de uma vida

*
não basta

*

página de
acético ph

quebradiço
o papel como
um biscoito

as
promessas
nunca tardam
nunca tardam
em falhar.

*
não basta

*

banal
holocausto

do século
infausto:

por um
celular

a substância
vacila

entre as
facas
de cozinha.

*
não basta

*

noite fora
de medida

de censura,
vida ou corte:

testa o dia
sua sorte

na cesura
de uma vida


.
.
.

Bilhete dos hoplitas aos que leem sobre as Portas Quentes com a barriga de fora nas termas de Poços de Caldas

Jacques-Louis David, "Leônidas nas Termópilas", 1814

Bilhete dos hoplitas aos que leem sobre as Portas Quentes com a barriga de fora nas termas de Poços de Caldas


                                            "I was neither at the hot gates
                                            Nor fought in the warm rain"
                                                             T.S. Eliot


Se medos e suas flechas
hão-de escurecer o céu,
ante cissianos, de grevas,
de nós não soa cicio, eco.

As falanges não quebram,
carpos e metacarpos rijos
na lança. Somos hoplitas,
sem mãe, só elmo e terra.

O hóplon contra Xerxes.
A nosso lado Leônidas,
e a seu lado, Dieneces.
Daimon? Lacedemônio.

Aos de Atenas o templo,
a Temístocles, trirremes.
Diz o oráculo em Delfos,
salvo-conduto: madeira.

Mas nós aqui sabemos:
os de Esparta e Tebas,
com os escudos, hemos
de salvar suas festas,

mistérios, sua Elêusis,
para mais tarde Atenas
afundar o Peloponeso,
declarando-nos guerra,

e devastada por doenças
dentro de seus muros,
culpar o seu tagarela,
Sócrates, por sua queda.

Mas isto será no futuro.
Outro inimigo nos ocupa.
A cada povo seu Efialtes.
Ao de hoje, a sua prata.

Nos corpos, agora, óleo.
Mais tarde, há Cartago,
Roma, Paris, Washington.
Fizemos nosso pacto.

Somos meros esqueletos
nas Termópilas. Vocês
aí estão, gordos, lendo,
as luas de mel em termas.

A nós, as Portas Quentes,
mas a vitória em Plateia.
Vocês? Leite morno, Lete
diário, Poços de Caldas.


Espartanos, nesta esfera,
nem terão sua capital.
Atenas deverá dinheiro
a quem ora são bárbaros

vivendo nas florestas
ao norte. Que importa?
Nós escolhemos morte
a ser escravos, servos.

Às vezes resta apenas,
como àqueles gregos,
pentear seus cabelos
e esperar pelos persas.

§

Berlim, 03 de dezembro de 2014, comendo miojo.

.
.
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domingo, 23 de novembro de 2014

Luto: Morreu na França o poeta Bernard Heidsieck

Não tenho palavras agora. Morreu Heidsieck.



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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Enquanto faço esta postagem, Maximin dorme em minha cama, então vão aqui os três poemas já publicados das "Odes a Maximin"




Odes a Maximin




a M.






Ora
cansei-me d´O Moço,
há o tempo de bajular
e o tempo de escorraçar
os fantasmas
dos natais passados
para permitir-me
deixar-me encurralar
por outros
e dessarte inicio
esta celebração
do bendito
menino filantropo
que passo a chamar
de Maximin.




1.



Texto para o menino que por vezes me visita, quando se cansa de meninas, e que doravante chamarei de Maximin, como se este fosse o último bilhete de Heliogábalo a Hierócles


Como o sol que incha e cresce,
Maximin, são teus 
a pujança, o tônus e a tesura.
Quem-me-dera pudesse dar-te
todos os dias
o que é digno de tua condição
cesariana, ou fosse eu a carruagem
conduzida por tua potência
equina, oxalá
eu o cavalo que montas
com maestria, charioteer,
eu, tua cheerleader, que vivo
da caridade do teu epidídimo,
ora deixa-me
descansar o pescoço
extenuado sobre teu corpo
esponjoso, meu cabelo
confundindo-se com teus parcos
pelos púbicos, já quase públicos,
Maximin, tanta é a segurança
com que te exibes no mercado
e na ágora, maximiza-me
em tua perene intermitência,
diariza tuas doações
tão fluidas sobre meu rosto,
je vien, tu viens,
então vem e quebra
com teus sucos
meu jejum, Maximin,
minimiza minha idade,
mexe-me contigo em mim,
tantas são, miríade,
as posições possíveis
entre cavalgadura
e montaria, Maximin,
machuca-me
à prostrada, naquele pontículo
entre delícia e cicatriz,
pois os cães pretorianos
já se aproximam
para arrastar-me aos gritos
desse trono que usurpo
quando te cansas do vúlveo
e escalamos a torre de marfim,
mas ainda assim trono
onde se crê que alguma menina
melhor sentaria,
Maximin, e já sabemos
qual será nosso fim.


2.




Texto em que o poeta quer deitar Maximin num diwan e cantá-lo feito um místico árabe, quando então se lembra da ascendência do divino rapaz

Filho de berberes e alemães
graças à fuzarca abençoada
de corpos após a Queda
do Muro, me disseste
que foste o mais perfeito
bebê da maternidade
de tua mãe, a generosa.
Eu creio e sou devoto.
Não sei se necessário
um começo perfeito
para teu óbvio sucesso,
agora, no pleito.
Seria prudente comparar-te,
seguindo a antiga arte
dos meus colegas árabes,
tal Muhammad al-Nawaji
ou meu caro Abunuwasi,
e afirmar de gazela
as tuas pernas
tão firmes, estáveis?
Seria cometer uma gafe
etnográfica, se entoasse
em cantares dos cantares,
tal um árabe, a tua púbere
belezura berbere?
Tudo o que sei
é que, se não vens,
sou um mero magrelo
a atravessar feito camelo
o Magrebe.
Maximin, ademais,
nos ademanes
da minha nomenclatura
mais que científica
dos corpos do teu gênero,
dividindo rapazes
entre touros, leões e cavalos,
sempre te considero espécime
ideal das pujanças taurinas,
teu torso e teus ombros
que seriam edredão fácil
de tão largo
ainda que não mui macio,
sobre todo o meu corpo
raquítico e geriátrico,
como esses teus membros
de tronco de carvalho
que frequente
me deixam em estado
de Salix babylonica.
Tua inteligência de cão
de rua, a forma das mãos
com que nos manipulas
fácil pela lente do desejo
que distorce tudo, fazem-te
mais perigoso que o coice
de cavalo, a garra do leão
e todos os chifres de touro,
como este que carregas
nas tuas calças
largas de skatista.
És um tanto sádico.
Maximin, queria beber
apenas uma vez mais
teu suor e saliva e sêmen
de berbere
escorrendo de tua pele
de bebê.
Quando? Onde?
Ainda não te cansaste
daquela caverna escura?
Escalemos o pico nevado.
Vamos comer sushi
diante de um Fuji
falsificado de Hokusai
nos restaurantes
dos imigrantes
dessa tua cidade.
Sou meteco,
não grego,
são esparsos
os meus privilégios
e minhas bulbouretrais
já se cansam do estado,
como em Kanagawa,
das grandes ondas.
Devo gritar dos telhados
in a barbaric yawp
teu verdadeiro nome?
Confesso que ainda
não ouso a entrega
ao mundo de tua alcunha
oficial de batismo,
apenas este, Maximin,
pois temo tua concubina,
essa ninfeta com sangue
de valquíria, os genes
de nibelungos, o gênio
de Wagner.



3.



Texto em que o poeta celebra a língua e a sintaxe de Maximin

Não me importaria se tão-só
de plosivas vivesse o homem,
Maximin, desde que se oponham
apenas temporários
os obstáculos
de tua língua, corpo e lábios,
aproximantes para sempre
até mesmo as vogais,
quiçá gerando nova família,
a das penetrantes,
que consistiria em is e Os
para todos os vocábulos
a cossoar de nós,
pois eu temo
que antes cedo
do que tarde
todos os teus textos
serão para me caçoar,
quisera antes nunca
do que agora,
já que velo por teu palato,
Maximin, todos os teus
dons bilabiais,
dá-me hoje pois as fricativas
que me cabem
pelo canal estreito
de nossos articuladores,
eu aspiro estridente
como uma jiboia
de repente sibilante,
vem e faz de minha úvula,
se não possuo o anagrama,
a tua única
superfície de shadowboxer,
quero ser o véu que cobre
os teus alvéolos, pulmônico
após brincar de balanço
em tuas cordas vocais,
ameaço quedar-me implosiva
nesta subnutrição minha
de cada dia
se não ejaculas meu desjejum,
é preciso que entendas
causas e consequências,
ainda que o registro
da História insista
em coordenadas assindéticas,
vamos doar ao mundo
muitas copulativas,
larga mão, Maximin, de ser
tão adversativo,
aproxima-te e explica
antes de concluir
que minha carcaça
é um destroço disjuntivo,
olha como exiges,
todo imperativo,
ou ou, ora ora,
quer quer, já já,
seja seja, nem nem,
ai ai, nesta gaiola, meu habitat,
que me resta
senão ler Cage
e celebrar feito música
os teus sons e teus ruídos?
Eu sou nesta nossa concha
como uma ostra nanica,
por isso quiçá tudo que dizes
é-me razão de ostranenie
e dessarte divinizo-te,
pelos séculos dos segundos,
para ser possuído por deuses,
tornando entusiasmante
esse meu coitado cotidiano.


§

Publicados, respectivamente, nas revistas Enfermaria 6Confraria do Vento e na revista Pessoa.

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