sexta-feira, 30 de abril de 2010

Da lírica amorosa


Nos três livros e duas plaquetas de poemas que publiquei até hoje, há um número significativo daquele que é um "tema" dos mais antigos calos e cicatrizes dos poetas, espraiando-se pelas tradições, línguas, culturas: a lírica amorosa. Sim, muitos estão disfarçados, digamos, de análise histórica, mas são também lírica amorosa.


Entre estes, a quase totalidade pende mais para o lamento do pé-na-bunda que para a celebração dos braços-nos-braços. Menos aconchego que abandono. Como qualquer um que passou dos 30, eu carrego minha boa quota de hematomas.


No ano passado, no entanto, na semana em que O Moço completaria 25 anos, decidi tentar escrever um poema que não fosse imprecação in absentia. Que fosse, de alguma maneira, celebração.


Publiquei o texto no segundo número impresso da nossa Modo de Usar & Co., que trazia justamente O Moço na capa. Compartilho-o agora com os generosos leitores deste espaço. Por um bom fim de semana para a vida amorosa de nós todos. Amem e amém.



Texto em que o poeta celebra
o amante de vinte e cinco anos


a Jannis Birsner

Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Penguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.


Ricardo Domeneck. in Modo de Usar & Co., número 2, 2009.


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segunda-feira, 26 de abril de 2010

"O vídeo novo de Romain Gavras" & "Como Ler Uma Antologia de Poesia Comunista Apenas Como Uma Antologia Comunista de Poesia"

§ - O vídeo novo de Romain Gavras.

O sobrenome não engana: trata-se do filho francês do cineasta grego Constantino Costa-Gavras (n. 1933), autor de filmes com intenso caráter político e desejo de intervenção e denúncia, como o importantíssimo Z (1969), com roteiro de Jorge Semprún (n. 1923) e baseado no romance de Vassilis Vassilikos (n. 1934), além de État de Siège (1972) e Missing (1982).

Romain Gavras nasceu em Paris, em 1980. Após dirigir alguns curtas, o jovem videasta alcançou certo reconhecimento com seu vídeo para a faixa "Signatune", do produtor musical francês Mehdi Favéris-Essadi (n. 1977), conhecido como DJ Mehdi.

DJ MEHDI, Signatune from ROMAIN-GAVRAS on Vimeo.


"Signatune" (2007), DJ Mehdi - vídeo de Romain Gavras.


Ao ver o vídeo pela primeira vez, senti uma simpatia imediata, por reconhecer nele um tipo de "abordagem do real" que vira, antes, também em um cineasta francês que admiro imensamente: Bruno Dumont (n. 1958). Filmes como La vie de Jésus (1997) e L'humanité (1999) tiveram um impacto gigantesco sobre o meu trabalho, especialmente à época em que escrevia os poemas de Carta aos anfíbios (2000 - 2004), publicado em 2005. Não estou tentando "comparar" Romain Gavras a Bruno Dumont. Mas não creio ser far-fetched a referência.

No entanto, nada se compararia ao furor que Romain Gavras causaria em 2008, com seu vídeo para a faixa "Stress", do duo francês Justice, formado por Gaspard Augé (n. 1979) and Xavier de Rosnay (n. 1982). Lançado à época dos conflitos entre a polícia do governo francês e muitos franceses e imigrantes nos subúrbios de Paris, o vídeo de Gavras se tornaria um dos mais discutidos da década, sendo proibido em alguns lugares e muito criticado por aqueles que viram no vídeo o que chamaram de "apologia da violência" ou incitação ao tumulto. Para alguns, tratava-se de um vídeo que se portava racista, na tentativa de abordar o racismo da sociedade francesa contemporânea.

Jus†ice, Stress from ROMAIN-GAVRAS on Vimeo.


"Stress" (2008), do Justice - vídeo de Romain Gavras.

Em um meio auto-complacente e preguiçoso como o da música pop atual, o vídeo passou como um furacão e despertou discussões mais que necessárias. Há, obviamente, muitos aspectos delicados, questões abertas para o debate. Como estrangeiro vivendo na Europa, mesmo que na razoavelmente tolerante Alemanha, as perguntas me interessavam, especialmente por se tornar cada vez mais claro que a imigração e convivência entre línguas e religiões estarão entre os pontos cruciais na política europeia da década que está para se abrir. Como referência imediata, penso em dois filmes soberbos do mestre Michael Haneke: tanto Code inconnu (2000) como Caché (2005).

Ontem, o jovem francês voltou a estar em todas as bocas do continente, ao lançar o vídeo para a canção "Born Free", de Maya Arulpragasam, conhecida como M.I.A.. Interessado em discutir mais uma vez as relações raciais no mundo ocidental, Gavras imaginou a seguinte sociedade distópica:

M.I.A, Born Free from ROMAIN-GAVRAS on Vimeo.


"Born Free" (2010), M.I.A. - vídeo de Romain Gavras.

As acusações e os gritos já começaram na blogosfera europeia. "Incitação à violência", "mau gosto", "marketing demagogo", as acusações tornaram-se ainda mais veementes que à época do vídeo para "Stress". A cena final, com a explosão gráfica do corpo de um garoto, parece ser o foco das acusações de "mau gosto". Não deixaria de concordar, neste caso. A cena em que o menino leva um tiro na cabeça tem sido chamada de "exagerada" por muitos. Uma pergunta possível seria: vale qualquer estratégia, mesmo que tida como perigosa por alguns, para iniciar ou incitar um debate? Não podemos nos esquecer que esta "sociedade distópica" imaginada por Gavras, na qual ruivos seriam discriminados, perseguidos e assassinados, existe neste exato momento no mundo, substituindo o ruivo por outras cores de cabelo e pele. Cenas como essa ocorreram nos Estados Unidos até muito pouco tempo, em perseguição dos cidadãos negros daquele país. As chacinas nos subúrbios das grandes cidades brasileiras são ainda fatos. Vivendo na Alemanha, os massacres de judeus, ciganos e homossexuais vêm imediatamente à mente, claro. A situação entre árabes e israelenses não está distante, ou das minorias dentro da República Popular da China. Referências possíveis no cinema seriam os ótimos Punishment Park (1971), de Peter Watkins, e Children of Men (2006), de Alfonso Cuarón.

Numa sociedade que parece querer impor o discurso unívoco do capital triunfante, que uns querem "pós-utópica" e "trans-histórica", talvez apenas o choque nos arranque de nossa complacência sorridente. Parece ser esta a atitude de jovens como Romain Gavras.

E você, meu querido, hypocondriaque lecteur,—mon semblable,—mon frère, o que você acha?



§ - Como Ler Uma Antologia de Poesia Comunista Apenas Como Uma Antologia Comunista de Poesia.

Creio já ter falado neste espaço sobre o impressionante número de publicações de poesia na antiga Alemanha Oriental, ou República Democrática Alemã (1949 - 1990). O número de antologias de poetas russos é, obviamente, compreensível, mas não se trata apenas de livros de Maiakóvski. Encontramos muitos trabalhos de poetas que a Revolução acusou de "decadentes" e proibiu, como Iessienin e Mandelshtam, com as traduções de Paul Celan para este último, talvez o que o romeno tenha produzido de melhor em sua vida. Há uma bela coleção de antologias para poetas modernistas internacionais que, se traz os velhos nomes de poetas ligados ao Partido Comunista, também apresenta poetas bem distantes de uma "imagem politizada", eu diria, como Dylan Thomas e Wallace Stevens.

Encontrei há pouco tempo, em um sebo, uma bela edição intitulada Lyrik unseres Jahrhunderts (Berlin: Verlag Neues Leben, 1962). Poderíamos traduzir o título como "Poesia do nosso século". Editada na Alemanha Oriental em 1962, ou seja, apenas um ano após a construção do Muro de Berlim, é óbvio que a antologia está completamente marcada pelas batalhas ideológicas de então. O que a torna, em alguns aspectos, interessantíssima, em minha opinião. O prefácio dos editores menciona, em tom que hoje nos parece mais que risível, conceitos como os de "quebra com a literatura burguesa", "resistência contra o monopólio capitalista", "voz popular" e "solidariedade na luta de classes", tudo muito distante de uma discussão estética ou mesmo est-É-tica. A discussão é essencialmente política. Assim, um dos primeiros fatores a despertar nosso interesse é: que poetas modernistas poderiam ser sequestrados por este discurso?

Algumas inclusões são óbvias, como o russo Vladimir Maiakóvski (1893 - 1930), o alemão Bertolt Brecht (1898 - 1956) e o chileno Pablo Neruda (1904 - 1973). Outras, menos, ainda que saibamos da filiação destes poetas ao Partido Comunista de seus países e à resistência contra o fascismo, como é o caso do francês Paul Éluard (1895 - 1952) e do turco Nazim Hikmet (1902 - 1963). Como o prefácio menciona a luta contra o colonialismo, a antologia inclui poetas ligados a estas questões, como o haitiano René Depestre (n. 1926) e a nigeriana Mabel Imoukhuede (n 1933), que hoje adota o nome de Mabel Segun.

Alguns eu desconhecia por completo, como o argelino Mohammed Dib ‎ (1920–2003), o romeno Eugen Jebeleanu (1911 - 1991) ou o colombiano Darío Samper, que parece ter feito parte, na Colômbia, dos poetas da década de 30 que se ligariam ao ativismo político, algo que ocorreu no Brasil (pensemos em Carlos Drummond de Andrade ou o trabalho de Oswald de Andrade nesta década), nos Estados Unidos (entre os Objectivists, como Louis Zukofsky e George Oppen) ou na Inglaterra (com o trabalho inicial de W.H. Auden e poetas como Cecil Day Lewis e Stephen Spender), sem mencionar a "virada comunista" de muitos poetas franceses. Outro exemplo "obscuro" (que se deve por certo à minha ignorância) é o americano Frank Horne (1899 - 1974), ligado ao movimento da Harlem Renaissance, da qual o poeta mais famoso, incluído também na antologia, é Langston Hughes (1902 - 1967).

Algumas inclusões surpreendem um pouco, como o espanhol Federico García Lorca (1898 – 1936), que parece "conquistar" seu espaço menos pela política de sua poesia que pela forma como morreu, ou o russo Serguei Iessienin (1895 - 1925) e o húngaro Attila József (1905 - 1937).

Uma antologia como esta é um artefato privilegiado para pensarmos sobre a sobrevivência de um poema em meio a discursos ideológicos alheios à sua escrita. Um poema, devemos lembrar, não sobrevive por seus temas. "Este rei é mau" é tema tão antigo e válido quanto "Eu te amo", importando, é claro, como o poeta o transpôs em forma, técnica. Trabalhos como A Rosa do Povo, de Drummond, e Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão, de Oswald, ambos de 1945, serão lidos para sempre, pois, muito além da "temática", são livros e poemas lindamente escritos. O mesmo pode ser dito de textos como "Aos que vão nascer", de Brecht, ou "A palavra capitalismo", de Maiakóvski, incluídos na antologia, poemas inteligentes e bem-escritos.

Outros textos, também incluídos na antologia, eram péssimos em 1962, são péssimos hoje e seguirão sendo péssimos, como "Ao meu partido", de Neruda.

Mas nós celebramos o bom poema, daquele e daquela que sabem a hora de dizer "Eu te amo" e a hora de dizer "Morte ao tirano" e, a cada um, dedicam-se com inteligência, sensibilidade e competência técnica.


ALGUNS POEMAS OU POETAS INCLUÍDOS NA ANTOLOGIA
(nos originais ou traduções que pude encontrar na Rede, para compartilhar convosco)


Angina Pectoris
Nazim Hikmet

If a half of my heart is here
                                the other half is in China, doctor.
In the army flowing towards
                            the Yellow river.

Then, every dawn, doctor,
                               every dawn, my heart,
                                            is shot in Greece.

Then, every night when the prisoners fall asleep
                                         and the infirmary is deserted
     my heart is in an old large house at Chamlicha,
                                                                   every night
                                                                            doctor.

Then, after these ten years,
to offer my poor people
     I have only one apple in my hand, doctor,
                                                            a red apple :
                                                                    my heart...

Not arteriosclerosis, not nicotine, not prison,
that’s the reason, my doctor, that’s the reason
                                         of my angina pectoris....

I am looking at the night through the bars
and in spite of the pressure on my chest
my heart beats with the most distant star...


tr. by Fuat Engin

§

With a pure heart.
Attila József

Without father without mother
without God or homeland either
without crib or coffin-cover
without kisses or a lover

for the third day - without fussing
I have eaten next to nothing.
My store of power are my years
I sell all my twenty years.

Perhaps, if no else will
the buyer will be the devil.
With a pure heart - that's a job:
I may kill and I shall rob.

They'll catch me, hang me high
in blessed earth I shall lie,
and poisonous grass will start
to grow on my beautiful heart.


Translated by Thomas Kabdebo

§


The Negro Speaks of Rivers
Langston Hughes


I've known rivers:
I've known rivers ancient as the world and older than the
flow of human blood in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln
went down to New Orleans, and I've seen its muddy
bosom turn all golden in the sunset.

I've known rivers:
Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.


§

Galope
Rafael Alberti

Las tierras, las tierras, las tierras de España,
las grandes, las solas, desiertas llanuras.
Galopa, caballo cuatralbo,
jinete del pueblo,
al sol y a la luna.

¡A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar!

A corazón suenan, resuenan, resuenan
las tierras de España, en las herraduras.
Galopa, jinete del pueblo,
caballo cuatralbo,
caballo de espuma.

¡A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar!

Nadie, nadie, nadie, que enfrente no hay nadie;
que es nadie la muerte si va en tu montura.
Galopa, caballo cuatralbo,
jinete del pueblo,
que la tierra es tuya.

¡A galopar,
a galopar,
hasta enterrarlos en el mar!


§

Alle fronde dei salici
Salvatore Quasimodo

E come potevano noi cantare
Con il piede straniero sopra il cuore,
fra i morti abbandonati nelle piazze
sull’erba dura di ghiaccio, al lamento
d’agnello dei fanciulli, all’urlo nero
della madre che andava incontro al figlio
crocifisso sul palo del telegrafo?
Alle fronde dei salici, per voto,
anche le nostre cetre erano appese,
oscillavano lievi al triste vento.



§

Sobre o pobre B.B.
Bertolt Brecht


1

Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras.
Minha mãe trouxe-me, no abrigo
de seu ventre, às cidades. E, enquanto eu viver,
o frio das florestas estará comigo.

2

Na cidade de asfalto estou em casa.
Recebi cada extrema-unção logo, a saber:
jornais, álcool, tabaco. Cheio
de suspeitas, preguiça e, afinal, de prazer.

3

Eu sou cordial com todos. Ponho
um chapéu-coco, pois isto é normal.
Eu digo: que animais de cheiro estranho.
E digo: tudo bem, eu sou igual.

4

Eis que em minhas cadeiras vagas, de manhã,
uma mulher ou outra se balança.
Olho-a sem pressa e digo-lhe: dispões
em mim de alguém que não merece confiança.

5

À noite eu me reúno com os homens.
Tratamo-nos de gentlemen. O bando,
com pés na minha mesa, diz que tudo
vai melhorar. E eu nem pergunto: quando?

6

À luz da aurora gris pinheiros mijam
e os pássaros, seus vermes, abrem o alarido.
É quando, na cidade, esvazio o meu copo,
jogo fora o charuto e me recolho aflito.

7

Nós, geração leviana, vivemos em casas
supostamente eternas. (Desse modo, além
de altos caixotes em Manhattan, construímos
junto do Atlântico as antenas que o entretêm.)

8

Restará das cidades quem as cruza: o vento.
A casa alegra o comensal que a dilapida.
Sabemos bem que somos provisórios.
Nem vou falar do que virá logo em seguida.

9

Manter, sem mágoa, nos futuros terremotos,
o meu Virgínia aceso — já me satisfaz.
Eu, Bertolt Brecht, que, das florestas às cidades,
vim no ventre materno, anos atrás.


(tradução de Nelson Ascher)


§

A Plenos Pulmões
Vladimir Maiakóvski

Primeira Introdução ao Poema


Caros
..........camaradas
......................futuros!
Revolvendo
........a merda fóssil
.........................de agora,
......perscrutando
estes dias escuros,
talvez
...............perguntareis
.............................por mim. Ora,
começará
.................vosso homem de ciência,
afagando os porquês
..............num banho de sabença,
conta-se
........que outrora
...............um férvido cantor
a água sem fervura
..........................combateu com fervor
Professor,
..........jogue fora
.................as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
................de mim
.......................de minha era.
Eu – incinerador,
................ eu – sanitarista,
a revolução
....................me convoca e me alista.
Troco pelo “front”
.......... a horticultura airosa
da poesia –
....................fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim
...virgem
.................vargem
..........sombra
...............................alfombra.
"É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim."
Estes verte versos feito regador,
aquele os baba,
boca em babador, –
bonifrates encapelados,
......................descabelados vates –
entendê-los,
................ao diabo!,
...........................quem há-de...
Quarentena é inútil contra eles -
.....................mandolinam por detrás das paredes:
"Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
.......................ta-ran-ten-n-n..."
Triste honra,
.................se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
...........escarra a tuberculose;
putas e rufiões
.................numa ronda de sífilis.
Também a mim
..........a propaganda
........................cansa,
é tão fácil
........alinhavar
................romanças, –
mas eu
..........me dominava
...................entretanto
e pisava
............a garganta do meu canto.
Escutai,
.............camaradas futuros,
o agitador,
o cáustico caudilho,
o extintor
.............dos melífluos enxurros:
por cima
..........dos opúsculos líricos,
eu vos falo
............ como um vivo aos vivos.
Chego a vós,
...... à Comuna distante,
não como Iessiênin,
.........................guitarriarcaico.
Mas através
..... dos séculos em arco
sobre os poetas
.....................e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
................não como a seta
lírico-amável,
..............que persegue a caça.
Nem como
..........ao numismata
............... a moeda gasta,
nem como a luz
.....................das estrelas decrépitas.
Meu verso
..........com labor
.............. rompe a mole dos anos,
e assoma
.....a olho nu,
................ palpável,
......................bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
.................por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
.............. versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
..........................como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
................mas terrível.
Ao ouvido
.........não diz
................blandícias
.........................minha voz;
lóbulos de donzelas
..........de cachos e bandós
não faço enrubescer
.............................com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
..........– tropas em parada,
e passo em revista
...........................o front das palavras.
Estrofes estacam
............. chumbo-severas,
prontas para o triunfo
..........ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
.............. as maiúsculas
.......... abertas.
Ei-la,
.....a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
......................alerta para a luta.
Rimas em riste,
......sofreando o entusiasmo,
eriça
........suas lanças agudas.
E todo
......este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
.................proletários do planeta,
cada folha
.............até a última letra.
O inimigo
......da colossal
................classe obreira,
é também
meu inimigo
................figadal.
Anos
........de servidão e de miséria
comandavam
...............................nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
..........volume após volume,
janelas
.............de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
........................saberíamos o rumo!
onde combater,
................de que lado,
.......................em que frente.
Dialética,
..........não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
....... ao fragor das batalhas,
quando,
sob o nosso projétil,
debandava o burguês
.........................que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
.....................– glória –
se arraste
após os gênios,
..............merencória.
Morre,
..........meu verso,
.....................como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo
......sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
..........sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, –
....................entre nós todos, –
o comum monumento:
o socialismo,
.............forjado
........................na refrega
.................................e no fogo.
Vindouros,
..........varejai vossos léxicos:
......................do Letes
.............................brotam letras como lixo –
"tuberculose",
.........."bloqueio",
.............."meretrício".
Por vós,
........geração de saudáveis, –
...................um poeta,
....................com a língua dos cartazes,
lambeu
..........os escarros da tísis.
A cauda dos anos
..............faz-me agora
....................um monstro,
......................fossilcoleante.
Camarada vida,
............vamos,
................para diante,
galopemos
.......pelo qüinqüênio afora.
Os versos
......para mim
...............não deram rublos,
.....................nem mobílias
.................de madeiras caras.
Uma camisa
.......lavada e clara,
.....................e basta, –
..............................para mim é tudo.
Ao Comitê Central
..................do futuro
.......................ofuscante,
.........................sobre a malta
...................dos vates
velhacos e falsários,
.....................apresento
.............................em lugar
do registro partidário
......todos
.................os cem tomos
.....................dos meus livros militantes.

tradução de Haroldo de Campos













domingo, 25 de abril de 2010

Vídeos em Bruxelas e outras telas e imagens do fim de semana

Oito vídeos meus estão em exibição na capital belga este fim-de-semana, parte de uma mostra coletiva chamada "Taut - That Certain Tension Between Fashion & Art", parte da Trajector Art Fair, durante o evento Art Brussels. A curadoria é de Laurent Dombrowicz e Ken Pratt, os editores de moda e arte, respectivamente, da revista britânica Wound. A mostra traz oito de meus retratos-em-vídeo, que venho produzindo desde 2006, menos sob o influxo de videastas que de fotógrafos como Nan Goldin e Walter Pfeiffer.


(Ricardo Domeneck, "Carl", 2006)

O convite incluía ainda que eu fosse a Bruxelas para uma leitura-performance. Ken Pratt, o editor de arte da Wound, pedira que eu apresentasse as peças "Potlatch" e "This is the voice", mas compromissos em Berlim, unidos à nuvem de cinzas do vulcão islandês (que tem tornado as viagens no continente europeu quase impossíveis nas duas últimas semanas), acabaram impedindo minha ida. Uma pena, pois a mostra trata de um assunto que me interessa muito, justamente sobre as possibilidades nas frinchas, dificílimas de definir, entre o resistir e o colaborar.


("This is the voice", leitura-performance em Madri, Espanha, 2008)


Passei, portanto, o fim de semana em Berlim, onde a primavera parece estar finalmente chegando (aqui, abril é o mais temperamental dos meses), e pude assistir e visitar a abertura da primeira parte da exposição "ANGST. MACHT. RAUM" (Medo. Poder. Espaço), com curadoria de meu querido amigo (e colega de coletivo) Viktor Neumann.


(Rommelo Yu, cena da vídeo-instalação "Mike", 2002, 28 minutos)

A mostra apresenta vídeos dos videoartistas Ming Wong, Sadie Benning (que integrou a primeira formação da banda Le Tigre) e Rommelo Yu, tratando do que Viktor Neumann chamou, em seu texto de apresentação, de retórica do medo na construção de discursos normativos e controladores para a identidade do indivíduo em nossa sociedade.


(Ming Wong, excerto de "Angst Essen / Eat Fear", 2008, 27 minutos, reencenação do filme Angst Essen Seele Auf (1974), de Rainer Werner Fassbinder)

Mais tarde, fui a um dos melhores cinemas de Berlim, o Kino Arsenal, onde Vaginal Davis, a lendária drag queen nova-iorquina vivendo em Berlim desde 2006, apresentou sua noite mensal de cinema mudo, com acompanhamento musical ao vivo. Este mês, assistimos a The Phantom of the Opera (1925), dirigido por Rupert Julian (1879 - 1943). O acompanhamento musical ao vivo foi da pianista Eunice Martins.



Cena de The Phantom of the Opera (1925), com direção de Rupert Julian.

Um bom fim de semana. Leitura obsessiva dos últimos dias: The Collected Poems of Zbigniew Herbert.

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sexta-feira, 23 de abril de 2010

O mais recente álbum do Tetine: "From A Forest Near You"

O duo Tetine lançou em Londres, no mês passado, seu décimo álbum, intitulado From A Forest Near You (2010), com seu próprio selo, o Slum Dunk Records. O título do álbum enraíza-se mais uma vez na atitude altamente irônica com que o Tetine vem trabalhando, criticando e ao mesmo tempo celebrando a noção de identidade nacional, das mais diversas maneiras, pelo menos desde Música de Amor (1999), álbum e performance. Escrevi para a Modo de Usar & Co. sobre o trabalho deles, a partir de sua textualidade, no ano passado.

Desde que surgiram em 1995, com o espetáculo Electrobrecht, o Tetine tem transitado com incrível desenvoltura entre os gêneros, tornando-se um dos mais inclassificáveis artefatos da arte brasileira das duas últimas décadas. Poesia, música, vídeo, teatro e performance, marcados pela escrita de Bruno Verner, um dos poetas ainda subterrâneos do Brasil pós-ditadura, e pela impressionante Eliete Mejorado, este último trabalho soa e ressoa com a calma confiança da maturidade. Algumas peças, como "You bought it", inserem-se entre os trabalhos iniciais de spoken word do duo, como no álbum Alexander´s Grave (1996), em outras Eliete Mejorado trabalha entre a fala e o canto, de forma personalíssima, como em "Shiva".



Muitas das canções apóiam-se na voz incrivelmente delicada de Bruno Verner, um dos meus cantores brasileiros favoritos em atividade. Essa delicadeza pode ser ouvida em toda a sua boniteza em uma canção como "Tropical Punk".



Tropical Punk é, além disso, uma das expressões que o Tetine tem usado para definir seu trabalho, com a mistura de humor e seriedade que tem caracterizado seu desejo de intervenção estética e política, chegando por vezes à descrição de seu som como "tropical mutant funk punk". Na década de 90, Verner e Mejorado conseguiram, como poucos, a façanha de alinhar um trabalho de arte conceitual à performance, transitando entre fronteiras, não apenas de gêneros, mas das hierarquias culturais, que eles questionavam com uma fúria e alegria admiráveis. Poucos conseguriam se manter tão coerentes quanto eles, como na forma em que passaram a trabalhar, muito antes do hype, com o funk carioca, como nos polêmicos Bonde Do Tetão (2002) e L.I.C.K. My Favela (2005), surpreendendo e confundindo mesmo alguns que haviam anteriormente admirado o conceitual em seus trabalhos iniciais, sem compreender, no entanto, o aterro das trincheiras que eles desde o início buscaram.

Vivendo na Inglaterra desde o ano 2000, os dois brasileiros já trabalharam com artistas europeus como Sophie Calle, Robin Rimbaud e o coletivo Ladytron, e lançaram, pelo prestigioso selo Soul Jazz Records, singles e álbuns próprios, além da compilação The Sexual Life Of The Savages (2005), com canções de bandas da São Paulo dos anos 80 (como Fellini, Gang 90 e As Mercenárias). Este From A Forest Near You vem unir-se ao ótimo Let Your Xs Be Ys (2008), como o mais pop da dupla, no melhor sentido warholiano do adjetivo. Se você ainda não respondeu ao chamado tetiniano de "Let´s get together", está na hora.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Entre a criação e a curadoria

Desde que iniciei meu trabalho de pesquisa e tradução dos poetas dadaístas, muito de suas propostas tem me guiado na fundamentação de minha própria est-É-tica. O trabalho formal, ainda ignorado por grande parte da historiografia literária das vanguardas, de poetas incríveis como Hans Arp e Tristan Tzara, por exemplo, apontam para caminhos ainda interessantíssimos de escrita poética. Infelizmente, de Tzara tudo o que se divulga, quase como anedota, é o "Como fazer um poema dadaísta", ainda assim ignorando as fortes implicações est-É-ticas deste texto, com seu final auspicioso: "Le poème vous ressemblera."

Além do trabalho poético formal de Hans Arp e Tristan Tzara (quase nada há nos surrealistas que já não estivesse nestes poetas, ou em franceses independentes como Guillaume Apollinaire e Pierre Albert-Birot) e dos trabalhos visuais em colagem e montagem de Kurt Schwitters, Hannah Höch e Raoul Hausmann, há um outro trabalho importantíssimo dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire, em minha leitura, e ainda mais ignorado, com que aprendo muitíssimo e do qual retiro implicações frutíferas para meu trabalho. Que obra importante é essa, tão ignorada, dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire?

O próprio Cabaret Voltaire.


Se, como parcos exemplos de estímulos, ainda podemos encontrar, em Tristan Tzara, material para uma pesquisa sintática e imagética; se, em Hans Arp, o estímulo para um trabalho satírico e iconoclasta que se apropria das próprias formas e métricas da tradição; se em Hugo Ball estão as sementes para muito da pesquisa sonora e de performance do pós-guerra; se, com Schwitters e Höch, podemos iluminar algumas das estratégias de John Cage, do Fluxus, do Punk, da Pop Art e do Neoconcretismo de Oiticica e Clark; em grande parte, mesmo os historiadores e críticos interessados no Cabaret Voltaire e na revista DADA deixam de lado a importância das implicações da fundação do próprio Cabaret Voltaire, assim como da reunião destes artistas no local e as formas de intervenção e interação que ali se davam. A fundação do Cabaret Voltaire demonstra o desejo, por parte destes poetas e artistas, de uma interação e intervenção na própria comunidade em que viviam. Ali, a arte se tornava coletiva, a apreciação estética se confundia com o entretenimento e a criação individual com a celebração comunitária. Nada poderia estar mais em desacordo com a narrativa oficial sobre o modernismo internacional, como a que Hugo Friedrich tentou estabelecer em seu Estrutura da lírica moderna (1956), de uma "arte pura", desconectada de seu público, des-historicizada, aristocrática, difícil, narrativa que tem sido questionada por vários críticos contemporâneos, de Alfonso Berardinelli a Fredric Jameson e Marjorie Perloff.

Em Berlim, onde todas as vanguardas parecem se politizar fortemente, o dadaísmo assumiu seu caráter mais combativo em termos de intervenção política. Só a Internacional Situacionista, quatro décadas mais tarde, viria a unir a estética e a política com tamanha agressividade. Não preciso dizer que os dadaístas do entre-guerras e os situacionistas do pós-guerra estão no centro de meu pensamento crítico.

A crítica contemporânea segue dividindo os trabalhos dos artistas mais plurais do século passado em gêneros e categorias que já não faziam mais sentido mesmo no século XIX. Estuda-se a música de John Cage, mas não seus textos. Admiramos o trabalho visual de Jean Arp, mas não seus poemas, publicados como Hans Arp. A expressão "multimídia", em minha opinião, apenas desmascara a inadequação do discurso crítico do pós-guerra. É claro que há artistas excepcionais trabalhando dentro de gêneros específicos. Há poetas-escritores publicando ótimos livros e interessados de maneira legítima na pesquisa literária tão-somente, como há cineastas fazendo filmes excelentes e músicos interessados em música. Como, no entanto, analisar o trabalho dos que dançam entre gêneros e contextos?

Pessoalmente, a discussão me interessa por estar entre os que produzem nas fronteiras dos gêneros. Escrevo poemas para a página, escrevo poemas para a voz, poemas para a tela. Existe, no entanto, um aspecto do meu trabalho que é tão ligado ao contexto específico da comunidade em que vivo (retornando à discussão do Cabaret Voltaire), que apenas os berlinenses podem conhecer. Em muitos casos, trata-se do aspecto mais forte que muitos conhecem, em Berlim, do meu trabalho: além do meu trabalho como DJ, o de curador, há cinco anos e com o coletivo de que faço parte, de uma série de intervenções às quartas-feiras, no clube Neue Berliner Initiative, NBI. Fundamentado pelo trabalho precursor e exemplar do Cabaret Voltaire, temos nele nos espelhado para aterrar a trincheira entre criação e curadoria, por exemplo. Por alguns anos, organizamos o evento conhecido como "Berlin Hilton", um comentário irônico sobre o culto de celebridades de que Paris Hilton é exemplo. Este mês, relançamos o evento como "SHADE inc", nome tirado do documentário Paris Is Burning (1990), de Jennie Livingston. Escreverei especificamente sobre isso em breve.

Isso requer o retorno a uma noção do poeta inserido em sua comunidade. Aqui, a noção de coterie torna-se uma das ambições mais honestas do poeta. Veleidades de "Literatura Universal" são quase risíveis nesta perspectiva. O poeta talvez (note o talvez, meu querido) devesse querer atingir, ao máximo, em primeiro lugar a última fila dos expectadores presentes, aquele rapaz ou moça lá no fundo da sala, antes de querer ser lido por um ausente e hipotético estranho na Sibéria, Madagascar ou Poughkeepsie, em tradução.

Além disso, dentro de uma est-É-tica da presença, sigo acreditando que o melhor caminho para um desejo de resistência e intervenção política não é aquele proposto por Adorno, o da resistência pela negatividade, pela negação do exílio, como ele escreve no ensaio "Lírica e sociedade". Não estou condenando os que a escolhem. Apenas não creio em sua eficácia e decidi guiar-me por outros parâmetros. Talvez precisemos de ambos. De qualquer maneira, não creio que todos precisem trabalhar com essas questões. Não há obrigações. Tenho preferido a tática da guerrilha e da resistência interna, da sabotagem. Esse caminho é cheio de contradições, pois sei que é difícil separar, neste caso, o resistente do colaboracionista.

Mas um dos meus guias é o poema "Primavera nos dentes", do poeta português João Apolinário (1924 - 1988), poema que foi musicado por seu filho com a banda Secos e Molhados. Uma das minhas regras pessoais está em seus versos: "No centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste."



"Primavera nos dentes", poema de João Apolinário e música de João Ricardo, vocalizado por Ney Matogrosso, com a banda Secos e Molhados.


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domingo, 18 de abril de 2010

Katyn.



Assisti este fim-de-semana a um dos últimos filmes do polonês Andrzej Wajda, intitulado Katyn (2007), sobre o massacre perpetrado pelo exército soviético contra prisioneiros de guerra poloneses, cerca de 22.000 pessoas, executadas com um tiro na nuca nas florestas de Katyn e arredores, na Rússia. Cerca de 8.000 eram oficiais do exército polonês. Os outros eram médicos, engenheiros, professores universitários, estudantes. A estratégia era procurar eliminar toda a intelligentsia polonesa, para, após a guerra, tomar justamente aquilo que os nazistas tentaram tomar: o país.

Os alemães descobriram as covas em 1943, o que levou à quebra de relações diplomáticas entre o governo polonês, exilado em Londres, e Moscou, que negaria (e, mais tarde, culparia os alemães) responsabilidade pelo massacre até 1990, quando o governo de Gorbachev decidiu confirmar a responsabilidade soviética pelo massacre.

Tal ação foi possível porque, quinze dias depois da Alemanha invadir a Polônia a oeste, a União Soviética invadiria a Polônia pelo leste, obviamente com a desculpa oficial de conter o avanço nazista. Era como se o país, na verdade, fosse disputado como um pedaço de carne por dois cães raivosos. Entre os massacres nazistas e os massacres soviéticos, o país seria deixado em frangalhos.

O filme trata dos anos da guerra, mas também dos anos imediatamente posteriores. Aqui, eu faria um comentário. No Brasil, impera com força a impressão do fim da guerra que foi divulgada pelos americanos, com imagens de alegria nas ruas de Nova Iorque, também em Londres e Paris. Como se o fim oficial da guerra houvesse realmente trazido paz completa para todos os territórios envolvidos. Berlim e a maior parte das cidades alemãs estavam em ruínas. O mesmo nas grandes cidades do Leste Europeu. Nos próximos anos, milhares daqueles que sobreviveram à guerra morreriam de fome e de frio nos invernos de 1945 e 1946. Nos países sob domínio soviético, os expurgos seguiriam, para garantir que os países se mantivessem sob seu domínio, eliminando muitos homens e mulheres da Resistência polonesa, como da Resistência em outros países, por representarem um perigo de revolta nacional contra o Kremlin. Homens e mulheres que sobreviveram a cinco anos de extermínio, escondendo-se em florestas, de onde comandariam ataques de guerrilha contra os alemães, seriam mais tarde arrastados de suas casas e lançados em prisões ou executados.

O poeta vocal / songwriter / cantautor polonês Jacek Kaczmarski (1957 - 2004) tem uma canção em que faz sua elegia aos mortos do massacre, chamada "Ballada Katyńska", da qual, infelizmente, ainda não consegui encontrar traduções.



Morar nesta parte da Europa, quando se é minimamente sensível a estes fluxos e refluxos históricos, pode ser por vezes bastante perturbador. Sente-se ainda no ar o vácuo deixado por tantos mortos. Berlim é uma janela privilegiada para o Caos contemporâneo, o dos nossos próprios massacres. Esta cidade, por onde caminhou Benjamin, o formidável, que me incita a olhar a cara do Anjo da História. O que é o mesmo que encarar o Abismo, o que dizem que o encara de volta.

Esta é uma postagem sobre os poloneses.

Ainda que pareça pueril dizer isso, já que não falo a língua do país, a poesia polonesa é uma das que mais amo. Tudo, obviamente, lido em traduções para o português, inglês ou alemão, mas mesmo assim importantíssimas para mim. Leio com admiração todas as traduções que encontro de dois poetas em especial: Zbigniew Herbert (1924 - 1998) e Wisława Szymborska (n. 1923). O mais famoso talvez tenha sido Czesław Miłosz (1911 - 2004), Nobel de 1980. Não creio que haja traduções muito vastas destes poetas no Brasil. O professor e tradutor Aleksandar Jovanović publicou suas traduções para poetas do Leste Europeu no importante Céu vazio: 63 poetas eslavos (São Paulo: Hucitec, 1996). O livro é uma preciosidade e, se você não o tem, procure-o. Há belos poemas de Herbert e Szymborska no volume.

De Herbert, amo imensamente, entre muitos outros, o poema "Relato de uma cidade sitiada", que está no volume da Hucitec, assim como todos os do volume Senhor Cogito (1974), livro satírico e pungente, que seria muito saudável traduzir e publicar no Brasil, onde por um par de décadas os poetas pareceram sofrer de fobia emocional. De Szymborska há vários poemas que amo. Já escrevi, certa vez, sobre o poema "Autotomia", sobre como houve uma época em que ele me ajudava a sair da cama e enfrentar o dia, assim como, entre outros, "The night", de Robert Creeley, ou "Amar", de Carlos Drummond de Andrade.

Outros poetas poloneses muito bons: Jarosław Iwaszkiewicz (1894 - 1980), também prosador, de quem o cineasta Andrzej Wajda já filmou algumas histórias; o ótimo Tadeusz Różewicz (n. 1921), e, entre os importantes poetas contemporâneos, muito traduzido por aqui: Adam Zagajewski (n. 1945). Entre os mais jovens, citaria Eugeniusz Tkaczyszyn-Dycki (n. 1962) e Adam Wiedemann (n. 1967), que tive o prazer de escutar no Festival de Poesia de Berlim de 2009, quando a Polônia foi um dos países convidados.


Compartilho com vocês dois de meus poemas favoritos em todo o Universo, de Herbert e Szymborska. Mostro-as aqui em tradução para o inglês, pois meu exemplar de Céu vazio: 63 poetas eslavos, infelizmente, ficou no Brasil.



Report from the Besieged City
Zbigniew Herbert

Too old to carry arms and fight like the others -

they graciously gave me the inferior role of chronicler
I record - I don't know for whom - the history of the siege

I am supposed to be exact but I don't know when the invasion began
two hundred years ago in December in September perhaps yesterday at dawn
everyone here suffers from a loss of the sense of time

all we have left is the place the attachment to the place
we still rule over the ruins of temples spectres of gardens and houses
if we lose the ruins nothing will be left

I write as I can in the rhythm of interminable weeks
monday: empty storehouses a rat became the unit of currency
tuesday: the mayor murdered by unknown assailants
wednesday: negotiations for a cease-fire the enemy has imprisoned our messengers
we don't know where they are held that is the place of torture
thursday: after a stormy meeting a majority of voices rejected
the motion of the spice merchants for unconditional surrender
friday: the beginning of the plague saturday: our invincible defender
N.N. committed suicide sunday: no more water we drove back
an attack at the eastern gate called the Gate of the Alliance

all of this is monotonous I know it can't move anyone

I avoid any commentary I keep a tight hold on my emotions I write about the facts
only they it seems are appreciated in foreign markets
yet with a certain pride I would like to inform the world
that thanks to the war we have raised a new species of children
our children don’t like fairy tales they play at killing
awake and asleep they dream of soup of bread and bones
just like dogs and cats

in the evening I like to wander near the outposts of the city
along the frontier of our uncertain freedom.
I look at the swarms of soldiers below their lights
I listen to the noise of drums barbarian shrieks
truly it is inconceivable the City is still defending itself
the siege has lasted a long time the enemies must take turns
nothing unites them except the desire for our extermination
Goths the Tartars Swedes troops of the Emperor regiments of the Transfiguration
who can count them
the colours of their banners change like the forest on the horizon
from delicate bird's yellow in spring through green through red to winter's black

and so in the evening released from facts I can think
about distant ancient matters for example our
friends beyond the sea I know they sincerely sympathize
they send us flour lard sacks of comfort and good advice
they don’t even know their fathers betrayed us
our former allies at the time of the second Apocalypse
their sons are blameless they deserve our gratitude therefore we are grateful
they have not experienced a siege as long as eternity
those struck by misfortune are always alone
the defenders of the Dalai Lama the Kurds the Afghan mountaineers

now as I write these words the advocates of conciliation
have won the upper hand over the party of inflexibles
a normal hesitation of moods fate still hangs in the balance

cemeteries grow larger the number of defenders is smaller
yet the defence continues it will continue to the end
and if the City falls but a single man escapes
he will carry the City within himself on the roads of exile
he will be the City

we look in the face of hunger the face of fire face of death
worst of all - the face of betrayal
and only our dreams have not been humiliated



§

Tortures
Wislawa Szymborska

Nothing has changed.
The body is susceptible to pain,
it must eat and breathe air and sleep,
it has thin skin and blood right underneath,
an adequate stock of teeth and nails,
its bones are breakable, its joints are stretchable.
In tortures all this is taken into account.

Nothing has changed.
The body shudders as it shuddered
before the founding of Rome and after,
in the twentieth century before and after Christ.
Tortures are as they were, it's just the earth that's grown smaller,
and whatever happens seems right on the other side of the wall.

Nothing has changed. It's just that there are more people,
besides the old offenses new ones have appeared,
real, imaginary, temporary, and none,
but the howl with which the body responds to them,
was, is and ever will be a howl of innocence
according to the time-honored scale and tonality.

Nothing has changed. Maybe just the manners, ceremonies, dances.
Yet the movement of the hands in protecting the head is the same.
The body writhes, jerks and tries to pull away,
its legs give out, it falls, the knees fly up,
it turns blue, swells, salivates and bleeds.

Nothing has changed. Except for the course of boundaries,
the line of forests, coasts, deserts and glaciers.
Amid these landscapes traipses the soul,
disappears, comes back, draws nearer, moves away,
alien to itself, elusive, at times certain, at others uncertain of its own existence,
while the body is and is and is
and has no place of its own.


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