sábado, 31 de dezembro de 2016

Balanço de fim de ano


Foi o ano em que todos nós morremos
um pouco, claro que pouco a pouco
morríamos todos e olhávamos
                    já com cuidado
   uns para os outros,
e passamos a perguntar:
                   “será você
o próximo?
                     serei eu?”

pela manhã contávamos os vivos
pois já era mais fácil do que contar os mortos,
tirávamos do caminho
                  uns dos outros
as pedras, as cascas de bananas,
apontávamos escadas íngremes e degraus longos
e nos agasalhávamos com um pouco mais de afinco

por estas épocas foi que começamos
a nos lembrar com nostalgia
de um tempo
                     mais simples
     quando não tínhamos
jamais usado palavras como vindima
ou verbos como devir,
              não sabíamos
o que era um Dalai Lama
e ambição era poder comprar coxão mole
em vez de duro no açougue,

todas as vacas e frangos e porcos eram felizes,

           rinocerontes havíamos visto
só por fotos
                     e extintos estavam só os fogos
na mata e os dinossauros,
        mas há tanto tempo
que não os contávamos mais
para a economia doméstica.

Tivemos afinal aquelas primeiras lições
                    da fauna caseira,
as lagartixas perambulando pelas paredes
enquanto a família ouvia Cid Moreira
           relatar as desgraças da República,
e pais e mães e filhos descansavam
de vez em quando a atenção das notícias
com a caça das lagartixas
aos mosquitos e às varejeiras.

Entendia-se a cadeia
                alimentar, a família
           torcia
pelos répteis como pelo Corinthians
e quando a lagartixa abocanhava a mosca
            sentiam alívio até as panelas na mesa:
o resto da janta esfriando na cozinha
podia ser requentado
sem sobressaltos para o almoço.

Mesmo assim assistia-se à matança
            com um pouco de inveja
ressentida das moscas, tinham asas,
        escapavam mais fácil
do que nós. Não era hierarquia
                        de classes,
alguns dos insetos
                         e alguns dos mamíferos
   da casa dividiam as colheitas,
com as formigas em marcha por cantos
e quinas firmara-se um tratado de paz
desde que não surrupiassem o açúcar
e mantivessem suas patas longe do mel,
tão caros,

e se aos camundongos
              reservava-se o veneno, convivia-se
com os grilos, e os bem-te-vis bicavam os abius
e as goiabas no quintal, os cães matavam, é verdade,
muitas minhocas em suas escavações arqueológicas
       mas sempre sobrava para os primatas
suficiente para vitamina, doce e suco.

      Nos domingos de chuva, alisava-se o cão e o gato,
guiava-se o sapo
até o bueiro com a mangueira,
               com a vassoura só se alguma briga
por dinheiro tivesse perturbado a paz das paredes
da casa com suas manchas, fazendo aflorar
nossa crueldade escrita nas espirais dos genes,
aquela que levava os meninos da rua
a saírem com varas de pescar no asfalto,
agitando-as rapidíssimas para confundir os radares
dos morcegos, matando-os.

     O macho-alfa dos primatas
era amado e respeitado por todos, ainda que também temido,
           mas generoso olhava o dilúvio
minúsculo das cidades do interior, mastigava
        seu macarrão.
Jesus estava vivo, Iemanjá doava o que podia,
                   estavam vivas as avós,
o Brasil era nosso,
eram puros e infindáveis o petróleo e a água.

            Tudo seguia uma lei e uma teia
de alianças, a fauna caseira aguava
                na estiagem a flora, os cães
dependiam dos primatas, atraíam as moscas
todos os bichos peludos da casa, da mãe ao cão,
e sempre torcia-se pelas lagartixas
         em caça às moscas e em fuga dos gatos.

Tudo dava cria:
os primatas, os cães, os gatos, os morcegos, os sapos, as lagartixas e as moscas

repondo o que se perdia numa sucessão que nos iludia,
idiotas da fartura eterna como se questão de tempo apenas
para que os mortos voltassem todos na pele de filhotes nossos,

    pois morria-se e matava-se aos poucos,
éramos todos felizes, não havia
    Dalai Lama, rinocerontes ou dinossauros
nas redondezas, nos espantávamos com fenômemos
simples como aquele dia em que uma legião
de tanajuras
invadiu o céu da cidade, havia vagalumes
            no campo
e pescar tinha uma coisa de vida ou morte,
cercados que éramos por sucuris e piranhas.

Respeitava-se a cadeia, não se tentava
a pirâmide a provar que era séria e eficiente.

Mas sabemos hoje que tínhamos passado os olhos
rápidos demais sobre os desastres da República,
 que Cid Moreria selecionava os lutos
     e custava muito às moscas alimentar
nossas lagartixas, o bife no prato sofrera
   do parto da vaca ao matadouro
     que a República
tinha sido desde o começo e antes
e que morrer e matar aos poucos
era já morrer e matar demais.

Hoje, depois,
        sabemos que sobre famílias
apropriado seria escrever a carvão,
garatujas sobre a pele esticada e ressequida
das vacas e frangos e porcos
        que cederam suas carnes
para a sucessão de almoços e jantas
que nutriram esta coletânea de fotos
       tão dignas de notas-de-rodapé
quanto a sucessão de presidentes e ministros.

Mas as alegrias continuaram em verdade simples
mesmo que nossos parâmetros nunca se convençam
entre elevar-se ou rebaixar-se, e no fundo as bolsas
             que temos medo que caiam
são apenas aquelas que podem revelar
            algum segredo pessoal ou familiar
nas calçadas da avenida ou do passeio público,

           e ouvimos por fim uma mulher
tão experiente nos desastres da República
    como Elza Soares
cantar que cantaria até o fim, então erguemos
                  as vozes roucas
e prometemos o mesmo, cantar até o fim

             e as baleias responderam longe, longe,
também elas cantarão até o fim,
    e as abelhas zuniram em sua queda populacional,
                       os pés de muitos sim machucados
na avenida, cães e primatas sem casa,
     os estandartes confundindo-se com faixas
porque o samba-enredo não muda, entra ano sai ano,
é um pedido confuso,

            dá-nos Jesus e dá-nos Barrabás

com os dois debateremos que antes de Deus e César
queríamos dar ao filho, ao amigo, ao vizinho,
rezando apenas que esta balança que pende sempre para um lado
    torne-se um balanço em que nos empurraríamos
                   uns aos outros
nos ares dum parque de diversões gigante
           e que Nero não precisa incendiar Roma
pois nós mesmos já estamos com os fósforos nas mãos
e batucamos na caixinha enquanto seguimos
      cantando até o fim do mundo
com as baleias e os cães
e nossos irmãos e nossos primos entre os primatas.

§

Berlim, 28 a 31 de dezembro de 2016

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

7 poemas publicados nos anos 90, lidos nos 90, e formativos para mim

Esta postagem é apenas uma homenagem a estes poemas, publicados nos anos 90. Eu os descobri entre meados e fim da década. Eles fizeram muito por mim. Não estou dizendo que são os melhores da década, nem estou sugerindo que sejam leitura obrigatória da FUVEST. Não os estou chamando de nada além de poemas que foram formativos para mim, de acordo com o que eu estava procurando naquele momento. Não estão incluídos, por exemplo, grandes poemas da década que eu só vim a descobrir mais tarde. Eu saúdo os poemas e seus autores aqui.

SETE POEMAS PUBLICADOS NOS ANOS 90
(que me enlouqueceram em terra de sãos)

Mula de Deus

I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.

Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.

II

Há nojosos olhares sobre mim.

Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.

Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.

III

Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?

Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.

IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.

Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos

Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.

V

Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.

Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula

Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.

VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.

Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.

VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.

VIII

Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada

Essa sou eu.

Poeta e mula

(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura)

--- Hilda Hilst, in Estar sendo. Ter sido (1996)

§

Ode a minha perna esquerda

1

Pernas
para que vos quero?

Se já não tenho
por que dançar.

Se já não pretendo
ir a parte alguma.

Pernas?
Basta uma.

2

Desço
         que                      subo
               desço         que
                        subo
                       camas
                      imensas.

Aonde me levas
todas as noites
         pé morto
         pé morto?

Corro, entre fezes
de infância, lençóis
hospitalares, as ruas
de uma cidade que não dorme
e onde vozes barrocas
enchem o ar
de p
     a
     i
     n
     a sufocante
e o amigo sem corpo
zomba dos amantes
a rolar na relva.

         Por que me deixaste
                             pé morto
                             pé morto
          a sangrar no meio
          de tão grande sertão?

                               não
                               n ã o
                               N Ã O !

3

Aqui estou,
Dora, no teu colo,
nu
como no princípio
de tudo.

Me pega
me embala
me protege.

Foste sempre minha mãe
e minha filha
depois de teres sido
(desde o princípio
de tudo) a mulher.

4

Dizem que ontem à noite um inexplicável morcego
     assustou os pacientes da enfermaria geral.

Dizem que hoje de manhã todos os vidros do ambu-
     latório apareceram inexplicavelmente sem tampa,
     os rolos de gaze todos sujos de vermelho.

5

Chegou a hora
de nos despedirmos
um do outro, minha cara
data vermibus
perna esquerda.
A las doce em punto
de la tarde
vão-nos separar
ad eternitatem.
Pudicamente envolta
num trapo de pano
vão te levar
da sala de cirurgia
para algum outro (cemitério
ou lata de lixo
que importa?) lugar
onde ficarás à espera
a seu tempo e hora
do restante de nós.

6

esquerda     direita
esquerda     direita
                       direita
                       direita

    Nenhuma perna
    é eterna.

7

Longe
do corpo
terás
doravante
de caminhar sozinha
até o dia do Juízo.
Não há
pressa
nem o que temer:
haveremos
de oportunamente
te alcançar.

Na pior das hipóteses
se chegares
antes de nós
diante do Juiz
coragem:
não tens culpa
(lembra-te)
de nada.

Os maus passos
quem os deu na vida
foi a arrogância
da cabeça
a afoiteza
das glândulas
a incurável cegueira
do coração.
Os tropeços
deu-os a alma
ignorante dos buracos
da estrada
das armadilhas do mundo.

Mas não te preocupes
que no instante final
estaremos juntos
prontos para a sentença
seja ela qual for
contra nós
lavrada:
as perplexidades
de ainda outro Lugar
ou a inconcebível
paz
do Nada.


--- José Paulo Paes, in Prosas seguidas de odes mínimas (1992).

§

Do fundo do quintal

1. Lírio e urze do meu deserto jardim
ei-la venuta al punto della rota
sem sequer entender por que a escolha feita
resultou nesse impasse
que a levou a partir, a ir-se embora,
deixando-nos à míngua, sem aquela
esperada eclosão da semente, da eclosão,
força do tigre na floresta solto,
corpo suave entre a dobras do lençol,
a cabeça encostada no meu peito,
o coração ardendo, o coração, e a luz
nos olhos sempre erguidos
na sua direção

... dela que está à espera de que alguma coisa
a surpreenda, mas se alguma coisa não for
o que esperamos, como estar a seu lado nesse instante
em que ninguém sabe ninguém
se essa espera ao menos pode ser a espera
que alguém quer alguém quis,
sem ao menos saber se algum dia

... a espera num mundo que no entanto nos permite
que se guarde a ternura colhida
em qualquer parte, mesmo aqui,
no objeto de uso mais cotidiano:
chávena chave cave cama
carta papéis antigos mapas
que orientam no escuro este vazio
escavado no meu peito
um poço um fosso
sem fundo.

Em Lisboa onde estás onde estou
o pensamento o tempo todo o calor
cada vez mais insuportável,
da janela vê-se o mar:
que paisagem esta do Rio,
dizem todos, que paisagem,
e eu com o pensamento neste quarto de hotel
onde estás à espera sem saber
e tão-só...
entre nós o oceano entre nós
o medo o medo um segredo
que aos poucos nos destrói, sou
um destroço uma coisa
jogada à areia fina, uma coisa.

De alguma forma eu talvez soubesse
e não adiantava, alta a árvore
crescia crescia e não adiantava
que soubesses que eu talvez sabia
que era inútil tentar alguma coisa;
a luz do fogo te atraía a luz do fogo
aceso na cozinha.

De algum forma todos nos queimamos algum dia;
de alguma forma mesmo sem fogo sob o frio sob a chuva
que não passa o calor é terrível
no Rio de Janeiro, quem diria,
quando morei aqui na tua idade
não era assim, agora todos sofrem,
todos dizem que calor infernal
que calor dizem todos e é tudo
muito estranho tudo...

Sou um canteiro onde floresces
e nem sabes, sou o caule
indeciso do teu intenso modo de querer,
a linha reta que jamais se alcança,
a hipotenusa de um triângulo qualquer,
o bule sobre a mesa, a música de Bach,
o pássaro pousado na videira
do fundo de um quintal ou de um jardim
onde ninguém sabe, ninguém jamais ficou sabendo,
que este canteiro existe,
que este canteiro não obstante existe.


--- Marly de Oliveira, in O mar de permeio (1997)

§

Fábrica do poema

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite da pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)

         pois a questão chave é:
         sob que máscara retornará?



--- Waly Salomão, in Algavarias (1996)

§


Q'el bixo s'esgueirando assume ô tempo

Quando cheguei ao
sanatório
em Correas com 
uma horrível
maleta
cor-de-abóbora e vi
os canteiros de
crista-de-galo
e me disse parecem
de fato cristas
de galo
isso foi
num relance que
eu estava mesmo
era com medo de morrer

semanas mais
tarde na
varanda
do quarto (na
doce luz 
da manhã) debruçado
olhando os
canteiros vi um galo
no meio das
cristas-de-
galo e me disse 
o quê? um galo? não
deve ser é só
porque aquele dia
pensei que essas
plantas se parecem com
cristas mas aí
o galo andou e saiu de entre as plantas.


--- Ferreira Gullar, in Muitas vozes (1999)

§

Teia

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
               prenhe:

no
centro
a aranha espera.


--- Orides Fontela, in Teia (1996)

§

Os deslimites da palavra

Dia Um 

1.1 

Ontem choveu no futuro. 
Águas molharam meus pejos 
Meus apetrechos de dormir 
Meu vasilhame de comer. 
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha. 
Minha canoa é leve como um selo. 
Estas águas não têm lado de lá. 
Daqui só enxergo a fronteira do céu. 
(Um urubu fez precisão em mim?) 
Estou anivelado com a copa das árvores . 
Pacus comem frutas de carandá nos cachos. 

1.2 

Eu hei de nome Apuleio. 
Esse cujo eu ganhei por sacramento. 
Os nomes já vêm com unha? 
Meu vulgo é Seo Adejunto - de dantes cabo-adjunto por
servimentos em quartéis. 
Não tenho proporções para apuleios. 
Meu asno não é de ouro. 
Ninguém que tenha natureza de pessoa pode esconder as suas
natências. 
Não fui fabricado de pé. 
Sou o passado obscuro destas águas?

1.3 

Eu vim pra cá sem coleira, meu amo. 
Do meu destino eu mesmo desidero. 
Não uso alumínio na cara. 
Quando cheguei neste lugar - 
Só batelão e boi de sela trafegavam. 
Aqui só dava maxixo e capivara. 
Mosquito usava pua de 3/4 . 
Falo sem desagero. 
Desculpe a delicadeza. 
Meu olho tem aguamentos. 
(Fui urinado pelas ovelhas do Senhor?) 

1.4 

Insetos cegam meu sol. 
Há um azul em abuso de beleza. 
Lagarto curimpãpã se agarrou no meu remo. 
Os bichos tremem na popa. 
Aqui até cobra eremisa, usa touca, urina na fralda. 
Na frente do perigo bugio bebe gemada. 
Periquitos conversam baixo. 
................................................................ 
Sou puxado por ventos e palavras.
(Palestrar com formigas é lindeiro da insânia?) 

1.5 

Eu sei das iluminações do ovo . 
Não tremulam por mim os estandartes. 
Não organizo rutilâncias 
Nem venho de nobrementes . 
Maior que o infinito é o incolor. 
Eu sou meu estandarte pessoal. 
Preciso do desperdício das palavras para conter-me. 
O meu vazio é cheio de inerências. 
Sou muito comum com pedras. 
.......................................... 
(O que está longe de mim é preclaro ou escuro?) 

1.6 

Tenho o ombro a convite das garças. 
............................. 
............................. 
(Tirei as tripas de uma palavra?) 
................................... 
A chuva atravessou um pato pelo meio. 
................................... 
Eu tenho faculdade pra dementes? 
................................... 
A chuva deformou a cor das horas. 
................................... 
A placidez já põe a mão nas águas.

1.7 

Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças. 
Não assento aparelhos para escuta 
E nem levanto ventos com alavanca. 
(Minha boca me derrama?) 
Desculpem-me a falta de ignorãças. 
Não uso de brasonar. 
Meu ser se abre como um lábio para moscas. 
Não tenho competências pra morrer. 
O alheamento do luar na água é maior do que o meu. 
O céu tem mais inseto do que eu? 

Segundo Dia

2.1 

Não oblitero moscas com palavras. 
Uma espécie de canto me ocasiona. 
Respeito as oralidades. 
Eu escrevo o rumor das palavras. 
Não sou sandeu de gramáticas. 
Só sei o nada aumentado . 
Eu sou culpado de mim. 
Vou nunca mais ter nascido em agosto. 
No chão de minha voz tem um outono. 
Sobre meu rosto vem dormir a noite. 

2.2 

Lugar sem comportamento é o coração. 
Ando em vias de ser compartilhado. 
Ajeito as nuvens no olho. 
A luz das horas me desproporciona. 
Sou qualquer coisa judiada de ventos. 
Meu fanal e um poente com andorinhas. 
Desenvolvo meu ser até encostar na pedra. 
Repousa uma garoa sobre a noite. 
Aceito no meu fado o escurecer. 
No fim da treva uma coruja entrava. 

2.3 

Escuto a cor dos peixes. 
Essa vegetação de ventos me inclementa. 
(Propendo para estúrdio?) 
O escuro enfraquece meu olho. 
Ó solidão, opulência da alma! 
No ermo o silêncio encorpa-se. 
A noite me diminui. 
Agora biguás prediletam bagres. 
Confesso meus bestamentos. 
Tenho vanglória de niquices. 
............................. 
(Dou necedade às palavras?) 

2.4 

Um besouro se agita no sangue do poente. 
Estou irresponsável de meu rumo. 
Me parece que a hora está mais cega. 
Um fim de mar colore os horizontes . 
Cheiroso som de asas vem do sul. 
Eis varado de abril um martim-pescador! 
(Sou pessoa aprovada para nadas?) 
Quero apalpar meu ego até gozar em mim. 
Ó açucenas arregaçadas. 
Estou só e socó. 

2.5 

Ando muito completo de vazios. 
Meu órgão de morrer me predomina. 
Estou sem eternidades. 
Não posso mais saber quando amanheço ontem. 
Está rengo de mim o amanhecer. 
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha. 
Atrás do ocaso fervem os insetos. 
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino. 
Essas coisas me mudam para cisco. 
A minha independência tem algemas.

2.6 

As sujidades deram cor em mim. 
Estou deitado em compostura de águas. 
Na posição de múmia me acomodo. 
Não uso morrimentos de teatro. 
Minha luta não é por frontispícios . 
O desenho do céu me indetermina. 
O viço de um jacinto me engalana. 
O fim do dia aumenta meu desolo. 
Às vezes passo por desfolhamentos. 
Vou desmorrer de pedra como um frade

2.7 

O ocaso me ampliou para formiga. 
Aqui no ermo estrela bota ovo. 
Melhoro com meu olho o formato de um peixe. 
Uma ave me aprende para inútil. 
A luz de um vagalume se reslumbra. 
Quero apalpar o som das violetas. 
Ajeito os ombros para entardecer. 
Vou encher de intumências meu deserto. 
Sou melhor preparado para osga. 
O infinito do escuro me perena. 

Terceiro Dia 

3.1 

Passa um galho de pau movido a borboletas: 
Com elas celebro meu órgão de ver. 
Inclino a fala para uma oração . 
Tem um cheiro de malva esta manhã. 
Hão de nascer tomilhos em meus sinos. 
(Existe um tom de mim no anteceder?) 
Não tenho mecanismos para santo . 
Palavra que eu uso me inclui nela. 
Este horizonte usa um tom de paz. 
Aqui a aranha não denigre o orvalho. 

3.2 

Espremida de garças vai a tarde. 
O dia está celeste de garrinchas. 
A cor de uma esperança me garrincha. 
Engastado em meu verbo está seu ninho. 
O ninho está febril de epifanias. 
(Com a minha fala desnaturo os pássaros?). 
Um tordo atrasa o amanhecer em mim. 
Quero haver a umidez de uma fala de rã. 
Quero enxergar as coisas sem feitio. 
Minha voz inaugura os sussurros. 

3.3 

Este ermo não tem nem cachorro de noite. 
É tudo tão repleto de nadeiras. 
Só escuto as paisagens há mil anos. 
Chegam aromas de amanhã em mim. 
Só penso coisas com efeitos de antes. 
Nas minhas memórias enterradas 
Vão achar muitas conchas ressoando. . . 
Seria o areal de um mar extinto 
Este lugar onde se encostam cágados? 
Deste lado de mim parou o limo 
E de outro lado uma andorinha benta. 
Eu sou beato nesse passarinho. 

3.4 

O azul me descortina para o dia. 
Durmo na beira da cor. 
Vejo um ovo de anu atrás do outono. 
................................... 
(Eu tenho amanhecimentos precoces?) 
................................... 
Cresce destroço em minhas aparências. 
Nesse destroço finco uma açucena. 
(É um cágado que empurra estas distâncias?) 
A chuva se engalana em arco-íris. 
Não sei mais calcular a cor das horas. 
As coisas me ampliaram para menos. 

3.5 

A lua faz silêncio para os pássaros, 
- eu escuto esse escândalo! 
Um perfume vermelho me pensou. 
(Eu contamino a luz do anoitecer?) 
Esses vazios me restritam mais. 
Alguns pedaços de mim já são desterro. 
...................................... 
(É a sensatez que aumenta os absurdos?) 
De noite bebo água de merenda. 
Me mantimento de ventos. 
Descomo sem opulências. . . 
Desculpe a delicadeza. 

3.6 

Nuvens me cruzam de arribação. 
Tenho uma dor de concha extraviada. 
Uma dor de pedaços que não voltam. 
Eu sou muitas pessoas destroçadas. 
............................... 
............................... 
Diviso ao longe um ombro de barranco. 
E encolhidos na areia uns jaburus. 
Chego mais perto e estremeço de espírito. 
Enxergo a Aldeia dos Guanás. 
Imbico numa lata enferrujada. 
Um sabiá me aleluia. 

Fim.


--- Manoel de Barros, in O livro das ignorãças (1993)

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sábado, 17 de dezembro de 2016

Passar a cada copo pela imigração, uma alfândega



                           
                         “Vamos voltar para a água."
                                    Murilo Mendes 

          a Guilherme Gontijo Flores

A cada copo d'água
que ergo à boca
herdada de peixes,
saúdo o oceano
que deixei no período
chamado Siluriano
para colonizar a terra,
colonos nós todos,
cada um, um imigrante,
há mais de quatrocentos
milhões de anos
obrigados várias vezes
ao dia a portar e mostrar
nosso passaporte verdadeiro
aos agentes
de imigração e alfândega
da secura da terra:
este copo d'água
que ergo
à boca de peixe
herdada,
esse traço genético
de cidadania e parentesco
a antepassados
hoje fósseis
em museus de geologia,
um copo d'água várias
vezes ao dia, a cada dia
por mais de quatrocentos
milhões de anos longe
do oceano, a cada
copo d'água
a lembrança
de ser estrangeiro
sobre qualquer terra,
há quatrocentos milhões
de anos incapaz
de naturalizar-me
em qualquer país
feito só de terra,
impedido de abandonar
de vez a água,
um estrangeiro há
quatrocentos milhões
de anos, a cada copo
d'água a certeza
de ser impossível escapar
do país primeiro,
o oceano,
que saúdo outra vez,
agora,
com este copo d'água,
meu passaporte,
chegando a minha boca
herdada de um peixe.


Berlim, 10 de dezembro de 2016.



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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Carta de um Domeneck aos Tarkóvski


O poeta russo Arseni Tarkóvski ensina o diretor Andrei Tarkóvski a nadar




      Não sei porque esta foto
de um pai
           ensinando um filho
    a nadar
             me emociona
               o caroço do coração.
Não fosse o pai
              um poeta
que amo e leio tanto
        e não fosse o filho
um diretor
            de filmes que vi
a perder a conta,
           teria menos
significado
            a mesma foto?
      Mas que raio
          de significado é este,
além de um pai
             ensinando um filho
a manter-se vivo?
                E onde e quando
esse raio significa-se,
                 torna-se digno
dos livros de História,
                a madame retroativa?
Na premência do raio
                que nasce da antetroca
de cargas elétricas
          entre o solo e a nuvem?
no relâmpago-em-si?
              no vácuo que esfaqueia
no ar? no trovão
           que assusta os cães?
Apenas nos perdemos
              nessa teia
de causas e consequências,
                        começos, meios e fins
que não sabemos distinguir.
E esta outra foto qualquer
                   de humanos ainda quaisquer,
nada mais que adolescentes
                 ridículos como todo apaixonado,
apenas namorados
                como os milhões de outros
comuns dum entreguerras
(não é todo período
                   de paz
um entreguerras,
                 se não distração
para guerras
                       em algum outro lugar?)
pergunto, por que esta fotografia
deveria ser História
                    – a madame retroativa –
por serem os jovens
                                  vocês,
Arseni Alexandrovich Tarkóvski
e Maria Ivánova Vishniákova
como se entre vocês dois
                      já estivessem contidos
os embriões
                           menos de seus filhos
Andrei e Marina,
do que de
O Espelho
e Stalker
e Solaris
e Nostalghia?
Eram só moço e moça,
             nada mais que namorados,
coisa reles que prediz prole
              nada excepcional,
e ainda não viera a guerra,
                          nem tinham vindo os filhos
promissores
                       como qualquer outra criança,
nem as primaveras, verões, outonos e invernos
            sozinhos de Maria Ivánova em Iurevets
enquanto Arseni Alexandrovich lutava
             com o Exército Vermelho
      contra o país onde eu agora vivo.
E teria que vir a guerra
                        para que Tarkóvski,
o pai,
              terminasse o poema
dos primeiros encontros
                 com Vishniákova,
a mãe futura,
                com estes versos:
"Atrás de nós o destino no encalço
feito um louco agitando a navalha"
                         ?
São sempre só retroativas
                as percepções desse teor,
iluminando a treva pesada
       do passado
que antes parecia iluminado?
                   Desde aqui,
do meu entreguerras,
amo o pai, tão lindo, e o louvo,
amo o filho, tão lindo, e o louvo,
                                    paixonite
retroativa e confessa
          por dois jovens mortos
mais a mãe, a mão
do colo e do berço
            e estas fotos de uma família
toda ela agora morta
                  e tão corriqueira
em seus afetos
              as lançam no colo da História
     – a madame retroativa –
      pela força incomum
   de suas dádivas
        e de seus dons?
Compramos com poemas
             e filmes nossa memorabília,
a nossa e de nossa família,
       nas lojas de lembranças
                       da História,
              essa madame retroativa,
    inimiga das notas-de-rodapé?
                             Eu – aqui, vivo –
obceco-me por familiares mortos
       nem sequer meus,
      mas sem ter os seus dons e suas dádivas,
hesito, não sei, duvido
                que terei a força para descrever
    e lançar no colo da madame
                  dos efeitos retroativos
         a adoração expectante
                que eu anônimo sentia
    quando minha própria mãe anônima
                emergia do quarto em sua camisola
    – azul-marinho, pontilhada de branco –
             eu que já tentei imortalizar em vocativos
     – ah, prata viva! – um lambari
            de estreia, pescado
          ao lado do meu pai,
                       se nós já sabemos
       aqui no futuro
           do presente de vocês
                que são nosso passado,
        quais estampas
              a navalha do destino carvou
                   na pele dos Tarkóvski
         mas ainda está em andamento
        a sua xilogravura
                sobre o corpo dos Domeneck,
      e se na emoção
                     dos meus caroços
       reconheço
                 apenas a esclerose precoce
       mas algo lúcida
          de saber-me Tarkóvski
                        nenhum
      e ciente de que sequer
              hão-de sair filhos das minhas coxas?



*

Berlim, 8 de dezembro em Berlim e 7 de dezembro no Rio de Janeiro do terrível 2016 (mas não para todos). Os antecedentes de um poema importam, e onde começam? Ontem postei um artigo sobre uma família que vivera perdida na Sibéria por 40 anos. Então, Tarso de Melo recomendou que eu assistisse ao documentário 'Happy people', de Werner Herzog. Ao assistir ao documentário, surge na tela por poucos minutos um caçador siberiano chamado Anatoly Tarkovsky, que Herzog anuncia em sua voz esquisita ser parente do "famoso diretor". Ao terminar o documentário, retorno a poemas de Arseni Tarkóvski e a cenas de Andrei Tarkóvski, e vou pesquisando obsessivamente na rede até cair nesta foto. Ou meu poema capenga começa no dia em que foi feita esta foto? Por esta historieta é que dedico o poema a Tarso de Melo.

O cineasta e o poeta, jogando xadrez em Moscou em 1947, quando a guerra estava ganha, a perna
do poeta já havia sido perdida, e o amor de Arseni e Maria já havia falhado.

.
.
.

"Num domingo como outro qualquer"


após um envenenamento alcoólico
porque este século anda pródigo
como o anterior em motivos
eu entrava e saía do sono
um fim-de-semana todo
e enquanto eu dormia
um atirador matava na finlândia
uma prefeita e duas jornalistas
um ambientalista vencia as eleições na áustria
contra o medo de que ganhasse o nazista
52 pessoas morriam num bombardeio na síria
a zona do euro ameaçava ruir na itália
o levante sioux em standing rock vencia
a luta contra a dakota access pipeline
em havana enterravam fidel castro
e no rio de janeiro ferreira gullar morria
mas eu dormia enquanto tudo isso
passava-se ocorria acontecia
e estas mortes e o meu sono
são a lição de que estivesse
eu na lista dos mortos
tanto faria


--- Berlim, 4 de dezembro de 2016.

.
.
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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

"Dear Meteor", colaboração com Nelson Bell


"Dear Meteor" (2016),  uma peça nova que fiz com o produtor alemão Nelson Bell. Abaixo, o texto e foto da nossa apresentação ontem no palco do evento vienense/berlinense Philosophy Unbound (em Berlim).


Dear Meteor

as a child i mourned
the dinosaurs
and their sad fate
at the end of a kiss
by a meteor
and i lay awake at night
fearing the meteor
fearing the virus
fearing the bomb
fearing the robot
and i thought of my sisters
thirsty in a global desert
and i thought of my brothers
freezing in a global arctic
and trembling with fear
in my pyjamas
i counted the mass extinctions
1
2
3
4
5
6
and so sad so sorry so silly
i wanted to hug
a dolphin
a bee
an orangutang
now i no longer fear
the meteor
as i realized the meteor
is my friend
no not exactly the meteor meteor
but my friend is the meteor
and my mother is the meteor
and my sister is the meteor
and everyone i love is the meteor
everyone i love and loved and will love
especially myself as i so especially love
myself
we are all the meteor
gaia mama gaia so wise
mama gets bored every once in a while
of the contraptions it spawned
and says in a yawn
LETS SHUFFLE THE CARDS
gaia mama gaia
so wise and economical
why wait for a meteor
why risk outside intervention
to shuffle the cards
so this time
mama gaia mama
came up
with a domestic solution
a homemade meteor
homo sapiens you lovely little meteor
in 7 billion pieces
i love you meteor
i love you homo sapiens
we are here to help
MAMA GAIA
SHUFFLE THE CARDS
AGAIN
turn to your side right now
and hug the meteor next to you
and call the meteor
who gave birth to you
and tell her and him
I LOVE YOU METEOR



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