sábado, 28 de novembro de 2009

"Venha e veja", se você tiver estômago.


(Uma das muitas cenas perturbadoras do filme Venha e veja, de Elem Klimov)

Há uma livraria inglesa aqui no Berlimbo que organiza, todas as terças-feiras, uma pequena sessão de cinema. Há cerca de dois anos, recebi o convite semanal para a noite em que se exibiria o filme Venha e veja (1985), dirigido pelo russo Elem Klimov (1933 - 2003).

Voltar os olhos para a história alemã no século XX é encarar o abismo, aquele que o encara de volta. A sucessão de catástrofes acontecidas neste país, ou causadas por ele em outros países, dá vertigem a qualquer lúcido. Como será que o anjo da História, de Benjamin, pôde manter abertos os olhos?

Com 146 minutos, o filme talvez seja o mais perturbador a que já assisti, com imagens simplesmente horríveis da ocupação nazista na Bielorrússia e dos massacres que aí ocorreram. Ainda há gigantescas valas comuns sendo descobertas na região. O filme é claramente dirigido sob o signo da fúria contra o que ocorreu, e é necessário estar preparado para a jornada ao fim da noite. Foi o último filme que Klimov dirigiu. É, em minha opinião, uma das obras primas mais difíceis do cinema.

Você pode assistir ao filme todo AAQQUUII. Se você estiver preparado para encarar o abismo. E receber de volta os olhos arregalados deste.



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domingo, 22 de novembro de 2009

Elogio da violência est-É-tica a partir das secreções em Hilda Hilst

Em uma literatura de moços e moças muito comportados e estudiosos como é o caso da brasileira, especialmente no pós-guerra, descobrir Hilda Hilst foi um refrigério. Saber que essa mulher ignorada havia produzido coisas assustadoras como Qadós (1973) e A obscena senhora D. (1982), além dos textos curtos reunidos em Pequenos discursos. E um grande (1977), como "Vicioso Kadek" e "Teologia natural", servia para reconciliar qualquer um com as possibilidades de algo estimulante na terrinha. Como não admirar uma mulher que escrevia, além disso, aqueles poemas, em plena época antilírica, dos mocinhos que ruminavam opiniões de Cabral como dogmas insuperáveis? Era muito reconfortante poder ler um livro como Cantigas do sem nome e de partidas (1995), uma das coisas mais bonitas da década de 90. Não quero insinuar qualquer "anticabralismo" de minha parte, como alguns entenderam meu a cadela sem Logos. Mas, meus caros, venhamos e convenhamos: não podemos deixar que uma admiração exagerada nos cegue para o fato de que João Cabral de Melo Neto é um poeta de imaginação limitada, que empalidece ao lado da abundância de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Cabral talvez tenha uma obra mais regular e constante que a destes dois, mas eu diria que a tem porque se arriscou bem menos que eles, ou mesmo que o irregularíssimo Jorge de Lima. Seus melhores poemas foram escritos justamente sob o influxo destes dois poetas, aprendizado confirmado pelo próprio Cabral, como o lindíssimo "O cão sem plumas" (1950) ou os poemas do volume Psicologia da composição (1947). Produz as alturas de O Rio e Morte e vida severina, mas o Cabral que surge a partir de Paisagens com figuras viria a se repetir indefinidamente, sem superar o que fora capaz de fazer com essa poética no estupendo "Uma faca só lâmina" (1955), momento de risco supremo que Cabral se propôs, poema que merece figurar ao lado de textos tão importantes quanto "A máquina do mundo" e "Janela do caos", dos seus dois mestres. Dessa poética repetitiva, o importante A educação pela pedra (1966) viria a ser apenas uma variação elegante. Não há variedade formal suficiente em João Cabral de Melo Neto para nutrir com seus parâmetros, de forma unívoca, todo um projeto de poesia nacional no pós-guerra. É óbvio que não se pode culpar um poeta tão forte como Cabral por toda a literatura anódina que se produziu em seu nome ou suspostamente sob seu signo. Aquele homem possuía verdadeiramente uma est-É-tica, mais do que explícita a quem lê com atenção poemas como "A palo seco", que nada tem a ver com o que se confundiu com objetividade na poética oficial dos últimos 20 anos, com a descrição de paisagens urbanas ou o uso recorrente de "pedras" e "desertos" posando como materialidade de linguagem. Como escrevi em outro lugar, o problema com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das velhas dicotomias de sempre, como interno/externo, sujeito/objeto, sua concentração sobre o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas meramente descritivos), que depende de uma espécie de unidade de percepção do poeta, que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Enquanto isso, Hilda Hilst ousava escrever e chamar de poemas, em plena época de secura e materialidade, poemas líricos que tomavam Caio Valério Catulo por mestre. Longe de mim sugerir que Hilst superou Cabral, o que talvez tenha feito, se levarmos em conta não apenas seus poemas, mas toda sua produção literária. O que nos impede, no entanto, de abrir o nosso leque de possibilidades poéticas?

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

ou

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Do desejo (1992)

Mas o assustador em sua obra e o que seguirá fazendo de Hilda Hilst um dos nomes incontornáveis na literatura deste século é seu trabalho em prosa, ou o que se convenciona chamar de prosa por simplesmente ocupar toda a página. Assim como Cabral serviu de parâmetro crítico quase único para a produção poética, a prosa brasileira nas duas últimas décadas parece ter feito de Rubem Fonseca um dos seus poucos parâmetros críticos, ou a meta de qualidade a atingir. Rubem Fonseca é um bom escritor, mas jamais seria possível ordenhar uma escola literária das tetas murchas de seu trabalho. Os que temperaram sua poética ainda com o que aprenderam de escritores como João Antônio, Campos de Carvalho, João Gilberto Noll e Sérgio Sant´Anna, além de diferentes referências de outras línguas, entregaram obras mais estimulantes. Na mesma época, Hilst enriquecia a escala com essa nota:

Teologia Natural


A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

de Pequenos Discursos. E um Grande (1977)

Trata-se de um outro tipo de violência. A violência das secreções funciona de forma distinta em Hilst. Sua tática de choque vai além da atitude malcriada de Rubem Fonseca, que tanto fascina os escritores brancos e heterossexuais da classe média do Brasil de hoje. Nesse aspecto, parece-me ainda mais claro que o escritor brasileiro com o qual se poderia comparar Hilda Hilst não é João Guimarães Rosa (o que ocorre com frequência no Brasil que também costuma meter Joyce e Stein no mesmo balaio), mas Graciliano Ramos, por mais incomum que pareça a ligação. Não o Ramos de Vidas Secas (1938), talvez, mas definitivamente o Graciliano Ramos de Angústia (1936) e, de certa maneira, mesmo o de São Bernardo (1934).

Violência esta muito mais que a temática, que Rubem Fonseca pratica por vezes com brilhantismo, mas uma violência est-É-tica que encontramos em escritores muitas vezes aparentemente díspares entre si, como a Clarice Lispector de A paixão segundo GH (1964) ou A hora da estrela (1977), sem deixar de mencionar a pancada est-É-tica que é A maçã no escuro (1951), aquela diatribe metafísica e política que até hoje não foi muito bem digerida; e, é claro, penso também no mestre de nós todos, Machado de Assis. Ou não lhes parecem brutais, livros como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899)?

O pós-guerra viu mulheres como Clarice Lispector e Hilda Hilst produzirem alguns dos artefatos (metafísicos e políticos) mais brutais de nossa literatura, numa linguagem seca e direta, mas informada por suas leituras de autores como Merleau-Ponty e Wittgenstein. A narrativa brasileira contemporânea, no entanto, com as exceções de sempre, parece ser produzida por rapazotes que cresceram lendo gibis de super-heróis, nos quais basearam seus machucados projetos de masculinidade, produzindo hoje suas narrativas ideais para um público, digamos, como o dos estudantes da UNIBAN.

No entanto, a invectiva contra nossas ilusões de "civilização" em livros como esses: Memórias póstumas de Brás Cubas, Angústia, A paixão segundo GH e Qadós é atordoante, inescapável. Testemunhos de nossa inviabilidade em meio ao inviável (que se sonha invejável) Ocidente, que já cai aos pedaços e afunda, sem que os muitos tomos das obras completas de Shakespeare e Balzac nos ajudem sequer a boiar. Esses livros nos mostram o que Euclides da Cunha estabelecera com seu anti-épico: se houver alguma sombra de justiça nessa existência, do Brasil não sobrará um dia pedra sobre pedra. Sejam estas pedras cabralinas ou não.

§


Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.

trecho de Qadós (1973)

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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Origens, fonte, ela

O título desta postagem, Origens, fonte, ela, é o título que eu um dia darei ao livro que quero dedicar exclusivamente ao trabalho de Orides Fontela. O que segue abaixo é um artigo em que retrabalho e reelaboro o que escrevi sobre a poeta paulista na Modo de Usar & Co., no ano passado, quando apresentei uma pequena seleção de seus poemas em nossa série "Sintonia de nossa sincronia".

Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista, em 1940. Mudou-se para São Paulo no fim da década de 60, ingressando na Faculdade de Filosofia e Letras da USP. Publicou seu primeiro livro, intitulado Transposição, em 1969, seguido de outras quatro coletâneas, compiladas em 2006 no volume Poesia Reunida 1969 - 1996, oito anos após a morte da poeta.

É costume descrever o temperamento de Orides Fontela em notas biográficas como esta, além de certa lenda que já se fixou em torno de sua biografia, para logo em seguida descartar esta mesma biografia em prol da descrição de sua poesia "enxuta", "concisa", "cristalina". Estes adjetivos fazem sentido em uma descrição da obra da poeta, assim como em seus poemas a primeira pessoa do singular parece estar consistentemente exilada dos verbos. A biografia de Orides Fontela importa pouco para a avaliação formal de seu trabalho, mas eu tenho certeza que haveria outra forma de pensar a conexão entre a obra e a vida do poeta. No caso de Fontela, não estariam ligados, a pobreza física e material de Orides Fontela e seu despojamento estilístico, o próprio desnudamento de sua poesia? Uma mulher sem casa, sem amores, talvez pudesse realmente louvar apenas o oxigênio. Pobreza material, veja bem, de uma poeta que negou o adorno e embelezamento poético até suas últimas consequências, e escreveu preferir, como trocas, "Um fruto por um / ácido / um sol por um / sigilo / o oceano por um / núcleo // o espaço por uma / fuga / a fuga por um / silêncio//- riquezas por uma / nudez."

Fala-se de neosimbolismo em sua poesia, por seu uso de substantivos que nos convidam a vê-los como "símbolos", freqüentes em sua poética, como "pássaros", "espelhos" e "rios" circundando o mundo. Eles convidam a isto. Mas algo muito importante separa o trabalho de Orides Fontela da poética dos neosimbolistas brasileiros, um dia reunidos em torno da revista Festa, comandada por Tasso da Silveira, dos quais hoje lemos apenas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Pois seus melhores poemas demonstram sua atenção linguística de poeta do pós-guerra, em um momento histórico que exigia, de seus símbolos, a consciência de serem signos, de uma poeta que compreendia nutrir sua simbologia pela linguagem, que a filtrava. Leia-se, por exemplo, o poema "Cisne", do livro Alba (1983):

Cisne

Humanizar o cisne
é violentá-lo. Mas
também quem nos dirá
o arisco esplendor
– a presença do cisne?

Como dizê-lo? Densa
a palavra fere
o branco
expulsa a presença e – humana –
é esplendor memória
e sangue.

E
resta
não o cisne: a
palavra

– a palavra mesmo
cisne.


Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu simbolismo "sígnico" faz Orides Fontela mais próxima, creio, da Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem (1963); não a Henriqueta Lisboa de A face lívida (1945) ou Flor da morte (1949), mas a poeta consciente dos jogos e artifícios da linguagem e dos símbolos/signos, a poeta que esta parece se tornar a partir da década de 50 (e que precisamos voltar a ler), especialmente em livros como o já citado Além da imagem ou no livro Reverberações (1976). Se pudermos aproximá-la da poesia simbolista, Fontela pareceria mais próxima de poetas com uma sensibilidade mais aguçada para a linguagem como jogo e artifício, caso de Pedro Kilkerry, o autor de poemas como "É o silêncio".

Mas este simbolismo sígnico de Orides Fontela é marca da poesia modernista do século XX, algo que também a aproxima de um poeta como Wallace Stevens, que fez da apropriação do mundo pela consciência, através da linguagem, o jogo poético por excelência. Isso viria a se tornar extremamente claro em poetas do pós-guerra como, por exemplo, Lyn Hejinian. Talvez uma aproximação possa iluminar o que tento argumentar aqui, com o poema "Anecdote of the jar", de Wallace Stevens, e "Fera", de Orides Fontela:

Anecdote of the jar
Wallace Stevens

I placed a jar in Tennessee,
And round it was, upon a hill.
It made the slovenly wilderness
Surround that hill.

The wilderness rose up to it,
And sprawled around, no longer wild.
The jar was round upon the ground
And tall and of a port in air.

It took dominion every where.
The jar was gray and bare.
It did not give of bird or bush,
Like nothing else in Tennessee.


Agora, o poema de Fontela:



Em Stevens, o mundo externo é o disforme, que a consciência humana organiza, cataloga e do qual se torna centro. Em Fontela, a linguagem passa a assumir uma posição mais ativa neste jogo entre mundo e consciência, fazendo com que a "fera", até então ausente para a percepção do que passeia na floresta, inconsciente do perigo, processe em primeiro lugar o sentido quando a fera se faz presente: a fera torna-se desta maneira o perigo de morte e também a palavra "fera". Também, se em Stevens este embate e organização do mundo pela consciência é assunto humano e apenas humano, sem sombra de transcendência, Orides Fontela manteve um fio místico em sua poesia, e seus livros possuem movimentos rotatórios, sofrendo enxugamento e pousando em concretude no chão do mundo, no poema de uma página, para logo em seguida abandonar-se em certo ambiente etéreo e simbolicamente carregado no poema da página seguinte.

Como se a poesia de Orides Fontela não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa e poesia de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico, daquele que jamais possuiu coisa alguma, era preferível. Algo deste fluxo e refluxo, entre o concreto e o abstrato, entre o símbolo e o signo, pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso.

São Sebastião

As setas
– cruas – no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
– firmes – confirmando
a carne.

A primeira vez que li este poema, estava de pé, à saída da biblioteca da Faculdade de Letras da USP, e quase tive uma vertigem. O título convida-nos à expectativa do etéreo de uma hagiografia. Nada poderia parecer mais distante de uma poética do corpóreo e do físico. As primeiras imagens ainda nos remetem à estátua do santo, do mito. Imaginamos este ser inexistente, pensamos no místico, no sacrifício impensável. No entanto, a progressão vagarosa de Orides Fontela é a de um bote de serpente, pois ela nos leva até o último verso, quando se revela não a estátua do santo, mas a carne viva do homem antes do santo. O poema parece-me de uma violência quase brutal. Sebastião deixa de ser mito e metáfora para fazer-se figura, figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados, prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados. Aqui, a poética de Orides Fontela revela-se em toda a sua crença na historicidade de seu fazer.

Em "Clima", também do livro Alba (1983), tal via de mão dupla da linguagem se faz presente com força, abstração centrífuga, concreção centrípeta, signo, símbolo: linguagem.

Clima

Neste lugar marcado: campo onde
uma árvore única
se alteia

e o alongado
gesto
absorvendo
todo o silêncio - ascende e
.............................imobiliza-se

(som antes da voz
pré-vivo
ou além da voz
e vida)

neste lugar marcado: campo
........................................imoto
segredo cio cisma
o ser
celebra-se

- mudo eucalipto
...elástico
...e elíptico.


É neste livro, Alba, que acredito que Orides Fontela encontrou seu ângulo de equilíbrio. O livro é um ponto luminoso na década de 80 (assim como Asmas, de Ronaldo Brito, publicado em 1982). Poeta contemporânea, poeta do pós-guerra, Orides Fontela sabia escrever poesia com símbolos herdados de uma tradição milenar, mas informados em um mundo que já tivera os escritos de Saussure, Wittgenstein, Jakobson. Orides Fontela sabia que o silêncio não provinha da falta de respostas, mas de nossa incapacidade e limitação no momento de fazer as perguntas através da linguagem, cujos limites são os limites do nosso mundo, nas palavras de Wittgenstein.


Esfinge


Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.


É tentador mitificar a mulher que viveu como viveu e escreveu estes poemas, que mais parecem cubos de energia concentrada, esperando para explodir no olho do leitor. Seus poemas, à primeira vista tão simples, singelos, exigem a concentração e atenção daquele que pode sussurrar, como no poema-exórdio do livro Alba:


A um passo
do pássaro
res
piro.



Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em 1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim, o século XX da poesia brasileira.











Pensando nelas uma vez mais: duas poetas incontornáveis

Havia duas poetas entre os vivos ao fim do século passado que eu sonhava um dia conhecer quando me mudei para a cidade de São Paulo, vindo do interior do estado. Talvez não necessariamente "conhecê-las", mas pelo menos sentar-me a uma mesa de uma lanchonete qualquer, próxima da mesa em que elas tomavam seu café, liam ou simplesmente olhavam pela janela. Lembro-me da descrição de Caetano Veloso sobre como Torquato Neto seguia Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues pelas ruas do Rio de Janeiro, no fim da década de 60. Creio que era um pouco dessa mesma vontade, de olhar para os esqueletos e músculos e cabelos destas duas criaturas que me fascinavam. As duas nasceram também no interior de São Paulo, como eu, e estão entre os poetas brasileiros do pós-guerra que viriam a comandar minha atenção e ter um impacto gigantesco sobre meu trabalho e minha est-É-tica.

Falo aqui de Hilda Hilst (1930–2004) e Orides Fontela (1940–1998).


Descobrira a existência de Orides Fontela quando lançou-se o seu quinto livro de poemas, Teia (São Paulo: Geração Editorial, 1996) e a situação de pobreza em que vivia a poeta chegou aos meios televisivos. Lembro-me de uma entrevista, em que ela encerrava com a leitura do poema de abertura do livro Teia, o homônimo "Teia", como era seu costume nomear seus livros por seus poemas de exórdio.



Teia

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
...................prenhe:

no
centro
a aranha espera.



Ao terminar de ler aquele "no / centro / a aranha espera", ela olhava para a câmera de um jeito que dava frio na espinha. Tratava-se de um coisismo muito diferente do que eu aprendera a admirar e respeitar em João Cabral de Melo Neto. O coisismo de Cabral é pragmático, telúrico. Em Fontela, parecia se tratar daquele "coisismo ontológico" a que Haroldo de Campos se referira em relação a um poeta como Vasco Popa. Como o de Francis Ponge? Na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, eu viria a retirar muitas vezes o volume Trevo: 1968 - 1988 (São Paulo: Duas Cidades, 1988), em que leria admirado os poemas do lindo Alba (1983), livro que me parece um milagre na década de 80, assim como Asmas (1982), de Ronaldo Brito, e, é claro, Da Morte. Odes Mínimas (1981), de nossa gigante Hilda Hilst.

Foi com muita tristeza que abri o jornal, em uma manhã de 1998, para descobrir que Orides Fontela estava morta já há uma semana, mas jornal nenhum se dignara a informar o público. A poeta morrera, praticamente como indigente, num hospital público de Campos do Jordão, a 4 de novembro de 1998. O minúsculo artigo-obituário havia sido escrito por Alcir Pécora, creio, que a conhecera pessoalmente e admirava sua poesia.

Tecnicamente, toma-se o século XX como iniciando-se em 1901, terminando no ano 2000. Historiadores usam outras datas. Em minha mente, muitas vezes, o século XX da poesia brasileira inicia-se com a morte de Cruz e Sousa em 1898, terminando em 1998 com a morte de Orides Fontela. Duas mortes indigentes. Sei que seria mais "realista", digamos, apontar as mortes de Joaquim de Sousândrade e João Cabral de Melo Neto, em 1902 e 1999, para estes limites. 1902 é ainda o ano de publicação de Os sertões. Não estou, porém, tentando criar uma hierarquia. Nem estou com isso tentando estabelecer ou impor minha própria historiografia. É apenas meu hagiológio pessoal.

Tanto Cabral como Fontela comparecem com suas mortes em meu bilhete a mim mesmo, que encerra meu primeiro livro, contra a auto-glorificação que é típica entre nós, poetas, uma tentativa de lembrar a mim mesmo que somos pó, pó, pó, e se estes morreram como morreram, por que fim melhor haveria de me esperar?

Lembrete

Cruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.

Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a C12H18N2NaO3.

Carlos Drummond de Andrade,
doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto
...................................cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.


(publicado orginalmente em Carta aos anfíbios, 2005. Versão nova)

§


Descobri Hilda Hilst quando esta lançou o romance Estar Sendo. Ter Sido (São Paulo: Nankin Editorial, 1997). Lembro-me de ler trechos, em pé, numa livraria pequena da Avenida Paulista, onde ia ler de graça pois não tinha dinheiro para comprar os livros, até chegar ao poema que encerrava o volume, intitulado "Mula de Deus", com versos como "Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Alta, dourada, me pensei. / Não esta pardacim, o pelo fosco / Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO" ou "Há nojosos olhares sobre mim. / Um rei que passa / E cidadãos do reino, príncipes do efêmero. / Agora é só de dor o flanco trêmulo. / Há nojosos olhares. Rústicos senhores." Quando cheguei aos últimos versos do poema, aquele deslumbrante "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula / (Aunque pueda parecer / Que del poeta es locura)", quase cambaleava.


Deu a febre.

Tornei-me devoto.

Nos próximos anos passei os livros de Hilst a todos que encontrava, formando um círculo de amigos que a admiravam como eu. Em 2004, decidimos: vamos a Campinas conhecê-la. Não sabíamos que a poeta estava há semanas no hospital, após uma queda que lhe trouxera complicações. Soube, mais uma vez pelos jornais, de sua morte a 4 de fevereiro de 2004. Telefonei perplexo para os amigos com quem planejava a viagem à Casa do Sol. Não queria crer. Naquela tarde, após sair do trabalho, lembro-me de caminhar para o Parque do Ibirapuera, onde queria ver uma exposição no MAM e, descendo a pé pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio, comecei a compor na mente a primeira das "Seis canções óbvias":


Sair da cama, disse,
........foi simplesmente
........uma idéia incrível
........e deliberada
De invernos frutíferos
........construíram-se
........muitos infernos na
........primavera
A cama é um inferno pessoal
........e intransferível
E a pele vestida à noite
........desprega-se para acompanhar
........outra calçada pela manhã
A transferência de corpo pratico-a
........com diligência
É tudo tão simples, dizem
Hilda Hilst havia medo da morte
........e morreu
........assim como o MASP
........é ao mesmo tempo
........museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
........simples patas


(Carta aos anfíbios, 2005)


Algum dia quero escrever sobre essa viagem à Casa do Sol, esta viagem que jamais aconteceu. Não conheci Orides Fontela, não conheci Hilda Hilst. Não as vi beber café em copo, caneca ou xícara. Tenho os poemas. Volto a eles constantemente, como quem quer matar a sede infinita.

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terça-feira, 17 de novembro de 2009

São Paulo/Berlin: Leitura/Lesung com/mit Ricardo Domeneck & Odile Kennel


Hoje à noite, às 19:00, faço uma leitura na Livraria Portuguesa, aqui no Berlimbo, ao lado da poeta alemã Odile Kennel (n. 1967), a convite d´A Livraria e da Berlin-Brandenburgiesche Buchwoche (Semana do livro de Berlim e Brandemburgo).

Odile e eu temos nos traduzido mutuamente desde 2006. A leitura consistirá de poemas de nossa autoria, traduzidos para o português e o alemão em trabalho conjunto. Iniciaremos com poemas recentes, ainda sem tradução, seguindo para textos mais antigos.

No programa desta noite:

Primeiro bloco: Poemas não muito sérios/Nicht ganz so ernste Gedichte

Odile Kennel lê "So topographisch zumute" & "Nicht aussteigen müssen in Hildesheim"
Eu leio "Corpo" em português e inglês (leia AAQQUUII).

Segundo bloco: Poemas com animais e secreções/Gedichte mit Tieren und Körperausscheidungen

Odile Kennel lê "Salbei denken und Du" (leia AAQQUUII), "Zum Glück kam der Nebel" & "Dinosaurier werfen in erster Linie Fragen auf". Em seguida, eu leio minhas traduções para o português destes mesmos poemas: "Pensar sálvia e você", "Por sorte a névoa chegou" & "Dinossauros levantam primordialmente questões"

Depois disso, leio meus 2 poemas mais recentes: "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" e "Enfim aurora-me na cachola", seguidos de "Breviário de secreções", que está no Carta aos anfíbios. Odile lê então suas traduções destes meus poemas para o alemão: "Text, in dem der Dichter des Liebhabers fünfundzwanzigsten Geburtstag zelebriert", "Endlich dämmert’s mir im Hirn" & "Kurze Abhandlung über Körperausscheidungen".

Terceiro bloco:

Odile lê os últimos poemas que traduzimos: "Und dann fing ich noch einmal mit der Zeile an" e "Auch ich finde keinen Schluss", que faz uma referência ao poema "Treze de agosto", de Angélica Freitas. Eu os traduzi como "E então comecei uma vez mais com o verso" e "Também não consigo terminar".

Para encerrar, farei minha leitura videotextual das "Six songs of causality".



Vai ser divertido.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Um dos últimos transcendentalistas americanos? Pensando sobre Terrence Malick

A duas quadras de meu apartamento no Berlimbo, há uma videolocadora para a qual caminho quase todas as noites, por volta da uma da madrugada, horário em que os filmes custam apenas € 1,50, voltando para minha cama com o filme em que submergirei para sair do mundo da poesia e da literatura. "Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade." Uma das paredes da locadora, a que está logo à porta, era organizada como "Os cinquenta diretores do século", recentemente reestruturada para "Os cem diretores do século". Revolvendo as novas seções, meus olhos caíram no espaço exíguo dedicado ao americano Terrence Malick (n. 1943). Num primeiro momento, minha mente reconheceu o nome, mas não conseguia lembrar-me de onde. Tomando as quatro únicas caixas na seção, reconheci a que continha o filme The Thin Red Line, um filme de que gosto muitíssimo, um dos melhores filmes de guerra já feitos, por ser, talvez, filme de guerra nenhum, não da maneira como o é o perturbador Venha e veja (1985), do russo Elem Klimov (1933 - 2003), um épico devastador. The Thin Red Line (1998) é de uma delicadeza incrível.





Muito já se escreveu sobre a influência dos transcendentalistas americanos sobre o trabalho de Terrence Malick. Em The Thin Red Line, ele parece realmente dirigir sob a regência de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Margaret Fuller. Em momentos de antiamericanismo acirrado, sempre procuro me lembrar deste país, o país de Thoreau, de Emerson, o mesmo país que geraria mais tarde John Cage, alguém que às vezes soa como outro "transcendentalista americano" tardio, ainda que Cage, o apaixonado por Thoreau, tenha substituído o cristianismo de seus antepassados pelo budismo.

Ontem à noite, adormeci após assistir ao segundo filme de Malick, chamado Days of heaven (1978), em que se encontra já a direção meditativa do americano.





Não é para todo estômago. Há quem considere seus filmes chatíssimos. A frequente narração em off, uma de suas marcas registradas, irrita muita gente. Os próprios transcendentalistas do século XIX receberam críticas duras. Edgar Allan Poe viria até mesmo a satirizá-los.

Eu gosto muito.

Seria interessante discutir se o "transcendentalismo" de Malick baseia-se mesmo na noção de transcendência como a conhecemos, em oposição à noção de imanência. Pois Malick parece crer na manifestação divina no mundo, ainda que o discurso de seus narradores e personagens indique o contrário.

Isso tudo sempre me pega pelo cérebro, pelo estômago, pelos pulmões. Talvez não seja à toa que meus mestres eleitos na poesia brasileira são Murilo Mendes e Hilda Hilst, e não João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, como ditou a moda e o modo de usar a tradição nos últimos 25 anos. Talvez por isso me apaixone tanto o simbolismo semiótico de Orides Fontela. É algo disso o que busco no conceito de figura, em minha pesquisa por uma poesia que se faz consciente de sua historicidade, mas talvez o conceito de figura (figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados) denote mais uma crença na imanência divina, que em sua transcendência. No cinema, há algo disso em Andrei Tarkóvski, ou em russos contemporâneos nossos, como Aleksandar Sokúrov e Andrei Zvyagintsev.

O discurso figurativo de Terrence Malick, em The Thin Red Line, distancia-se muito, por exemplo, do discurso alegórico de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979). As referências literárias destes dois filmes, que tomam a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã como pano-de-fundo e Henry David Thoreau e Joseph Conrad como referências literárias, respectivamente, já demonstram as veredas distintas por que caminham. Em ambos, no entanto, a guerra é mais que um conflito histórico. Em Malick, pelo menos, a história não é paisagem, mas o véu que separa nossos olhos de uma paisagem outra.

Talvez assista esta semana ao primeiro filme de Malick, Badlands (1973), com a linda Sissy Spacek.



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Ou em vez de assistir a outros filmes de Terrence Malick, talvez eu vá seguir um pouco a carreira esparsa (como os filmes de Malick) da atriz Linda Manz (n. 1961), que tinha apenas 16 anos quando atuou em Days of heaven, com uma performance maravilhosa em sua delicadeza e naturalidade.



Ela viria a atuar ainda (como acabei de descobrir) em filmes como The wanderers (1979), de Philip Kaufman; Out of the blue (1980), de Dennis Hopper; assim como estava no ótimo Gummo (1997), de Harmony Korine.


(Linda Manz em Out of the blue, de Dennis Hopper)

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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"Nós vivemos no inferno mas não o conhecemos por completo"

Publiquei cinco traduções minhas para poemas de Helmut Heissenbüttel (1921- 1996) na Modo de Usar & Co.

Heissenbüttel é um de meus poetas alemães favoritos no pós-guerra. Ainda quero um dia escrever algo sobre seu verso "Wir leben in der Hölle aber wir kennen sie nicht genau", ou "Nós vivemos no inferno mas não o conhecemos por completo". Na poesia germânica do pós-guerra, geralmente encontro referências mais fortes para o meu trabalho entre os austríacos, como H.C. Artmann e Friederike Mayröcker, poetas que tiveram seu impacto sobre minha escrita, assim como Peter Handke e Thomas Bernhard, mas creio que posso afirmar que Heissenbüttel estaria muitíssimo à vontade entre os poetas do Grupo de Viena. É dele um de meus poemas favoritos:

minha história bíblica começa com o cheiro do campo
.......em agosto
meu paleolítico chega apenas até minha própria infância
prosódia dos vagões ferroviários
do correr descontínuo do tempo
ontem foi há três semanas
cachos de dias penduram-se fora no passado
meu desassossego é a vista das águas que são
.......partidas pelos remos das canoas
meu desassossego é o barulho dos dados
.......que rolam sobre a tábua da mesa
Ângulos dobram-se tortos sobre minha cara

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meine biblische Geschichte beginnt mit dem Geruch der Heide
.......im August
mein Paläolithikum reicht nur bis in meine eigene Kindheit
Prosodie der Eisenbahnwagen
der unkontinuierliche Ablauf der Zeit
gestern war vor drei Wochen
Trauben von Tagen hängen aussen an der Vergangenheit
meine Beunruhigung ist der Anblick des Wassers das von den
........Ruderbooten zerteilt wird
meine Beunruhigung ist das Geräusch der Würfel die über die
.......Schreibtischplatte rollen
Blickwinkel klappen schräag über mein Gesicht



As referências destes poetas todos estão ancoradas nas duas vanguardas históricas germânicas: o grupo em torno do Cabaret Voltaire, da revista DADA e das germinações metropolitanas múltiplas dos dadaístas (Hugo Ball, Hans Arp, Richard Huelsenbeck, Kurt Schwitters, Raoul Hausmann, Hannah Höch, etc), e também os expressionistas, como Georg Trakl, August Stramm, Gottfried Benn, Else Lasker-Schüler, Georg Heym ou Jakob van Hoddis. Mesmo Brecht, de certa forma, pelo menos o Brecht de Baal (1918).

Vivendo na Alemanha, sinto na pele o que significou para estes vários grupos as possibilidades da conjunção entre estética e ética. A discussão é infindável, como sempre. Os traumas desta discussão assumem características distintas no Brasil e na Alemanha. Quem conhece, por exemplo, o debate entre Ernst Bloch e Georg Lukács sobre os expressionistas, iniciado por um artigo de Lukács em 1934, em que este condena violentamente os poetas expressionistas, gerando a defesa apaixonada de Bloch, sabe quais os abismos que cercam este dilema.



Heissenbüttel lutou no front russo como soldado, aos 20 anos de idade, onde perdeu o braço esquerdo. Retorna para uma Alemanha às voltas com o processo de Entnazifizierung (desnazificação), reconstrução tanto das cidades como da própria democracia no país, a divisão do território entre os aliados, a hipocrisia do esquecimento de crimes. Trata-se de uma geração de poetas pouquíssimo conhecida no Brasil, de poetas como o próprio Helmut Heissenbüttel, além de Heiner Müller e de austríacos como Erich Fried e Ernst Jandl, ou poetas de fala germânica do Leste Europeu, como Paul Celan, o único mais discutido no Brasil. É a geração que daria ao Brasil poetas como João Cabral de Melo Neto, José Paulo Paes e autores como Clarice Lispector ou Dalton Trevisan. É, como de costume, difícil definir gerações. No caso desta, muitos poetas mais velhos, que chegaram a estrear em livro antes da Segunda Guerra, só no pós-guerra poderiam unir-se a uma comunidade poética e publicar mais ativamente, como é o caso de um poeta maravilhoso como Peter Huchel (1903- 1981) ou ainda de Günter Eich (1907 - 1972) e Rose Ausländer (1901 - 1988), contemporâneos de Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa e Carlos Drummond de Andrade.




Como escrevi na Modo de Usar & Co., Helmut Heissenbüttel está entre os poetas de língua alemã que retomaram a pesquisa experimental destas duas vanguardas germânicas. Sua perspectiva experimental, porém, não se baseou em qualquer elefantíase semântica, desregramento ou atomização sintáticos. A antologia poética da qual foi retirado o texto abaixo intitula-se Das Sagbare sagen, ou seja: dizer o dizível. É inevitável aqui pensar na última proposição de Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus, de 1922 - o anno mirabilis do modernismo internacional, como Marjorie Perloff chegou a dizer. A última proposição do Tractatus, como todos sabem, é a famosa e mui citada "Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen" / "Sobre o que não se pode falar, deve-se silenciar." Obviamente, já se usou e abusou desta proposição, em inúmeros contextos, em geral descontextualizando-a, na verdade. Não se pode esquecer da proposição que diz: "Os limites de minha língua são os limites do meu mundo", na qual Wittgenstein investiga uma possível "sutura" (ou apenas "analgésico"?) para o dilema poético do abismo/ferida que separaria da linguagem o mundo, algo que tanto ocupara a poesia moderna a partir do Romantismo, levando quase ao esfumaçamento da linguagem entre os simbolistas (basta pensarmos em um brasileiro como Cruz e Sousa, ou num alemão como Stefan George). Algo desta proposta talvez possa ser sentida já em Mallarmé, transformando a equação "Mundo X Linguagem" em "Linguagem = Mundo". Não sei se esta proposição já foi pensada a fundo na poesia brasileira. A concentração única na chamada "função poética" da linguagem (apesar da advertência de Jakobson), ou a noção de "materialidade da linguagem" praticada pelo grupo Noigandres, levando na maior parte dos casos a uma teatralização visual do signo, não me parecem realmente levar essa proposição às consequências mais profundas.



No entanto, é justamente a Haroldo de Campos que eu recorreria para discutir um dos aspectos dos poemas traduzidos abaixo. Pois o módulo de composição de Helmut Heissenbüttel, nestes poemas específicos e em muito de seu trabalho poético, assemelha-se ao que Haroldo de Campos viria a escrever sobre a composição poética de Murilo Mendes, ou seja, o que o poeta paulista viria a chamar no poeta mineiro de uma "espécie de gerador iterativo de sintagmas, que se escandem completos e acabados", seguindo para reiterar o que Manuel Bandeira já escrevera sobre Murilo Mendes, sobre sua articulação de uma "combinatória capaz de lobrigar a concórdia na discórdia". Não iria tão longe na comparação entre Helmut Heissenbüttel e Murilo Mendes, mas o alemão também parece compor um poema "de frases inteiras", não tanto com a "violência de arestas sucessivas, arrombando com a alavanca da imagem imprevista e impressível, a porta blindada do silogismo”, mas criando uma combinatória permutativa de significados instáveis, questionando de certa maneira a noção de objetividade baseada em um conceito como o de mot juste, do século XIX. Já insinuei em outros artigos uma oposição possível entre os grupos experimentais do pós-guerra, especialmente os que floresceram em metrópoles como São Paulo, Paris, Nova Iorque ou Viena, ou seja, entre os grupos que se basearam nas vanguardas construtivistas (como é o caso dos brasileiros da revista Noigandres) e os grupos que se basearam no trabalho dos poetas da revista DADA e do expressionismo (caso, por exemplo, do Grupo de Viena e da Escola de Nova Iorque). No caso destes últimos, a materialidade da linguagem busca atingir a não-transparência do signo sem teatralizar demais seu aspecto visual, e baseia-se mais na instabilidade dos referentes que na tentativa de precisão na relação significante/significado, sem no entanto desprezá-la.

o negro da água e o pontilhado das luzes
o negro da água e o ocasional dos reflexos
regiões e regiões e paisagens
paisagens que eu tingi e paisagens que eu
.......não tingi
o ocasional das sombras e a cromática da claridade
o negro da negrura e a cromática da clara mancha
amarelo vermelho amarelho e vermelho vermelho
regiões e paisagens e ou
ou e ou ou

die Schwärze des Wassers und das Punktuelle der Lichter
die Schwärze des Wassers und das Gelegentliche der Reflexe
Gegenden und Gegenden und Landschaften
Landschaften die ich gefärbt habe und Landschaften die ich
.......nicht gefärbt habe
das Gelegentliche der Schatten und die Chromatik des Hellen
die Schwärze des Schwarzen und die Chromatik der hellen Flecke
gelb rot rotgelb und rot rot rot
Gegenden und Landschaften und oder
oder und oder oder



Esta perspectiva da "fala possível" evitaria também, por exemplo, o abuso que se pratica em resenhas de poesia no Brasil, o abuso do clichê que leva autores de artigos a descrever o trabalho de um poeta como sendo a "tentativa de dizer o indizível". Confesso que poucas expressões estimulam tanto meu reflexo faríngeo como esta. Questão de escolha. Talvez, para poetas do pós-guerra (especialmente no território realmente devastado pela Segunda Guerra), dizer o dizível parecia missão maior em termos est-É-ticos. Ouso dizer que o mesmo se aplica a Paul Celan, poeta sobre o qual usa-se com freqüência a descrição (a meu ver equivocada) do "dizer o indizível". A obra de Heissenbüttel é plural e variada. Quem se interessar, pode visitar minha postagem sobre ele na Modo de Usar & Co. , onde estão todos os poemas que traduzi.

AAQQUUII

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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Festival de Poesia Latino-Americana em Berlim (2009)

Começou este fim-de-semana a quarta edição do Festival Móvel de Poesia Latino-Americana, que ocorre na Alemanha desde 2006. As leituras, debates e performances acontecerão no Instituto Cervantes e no Instituto Ibero-americano aqui no Berlimbo. Participam este ano do evento os poetas Silvana Franzetti (Argentina, 1965), Hernán Bravo Varela (México, 1979), Gabriel Calderón (Uruguai, 1982), Liza Casullo (México/Argentina, 1981), Raúl Hernández (Chile, 1980), Maria Medrano (Argentina, 1971), Rery Maldonado (Bolívia, 1971), Antonio José Ponte (Cuba, 1964) e Victor López (Chile, 1982). Infelizmente, por falta de apoio do governo brasileiro, não há convidados do país no festival deste ano.

Participei do festival, ao lado de Douglas Diegues, no ano de abertura, 2006. Em 2007, foram convidados os brasileiros Carlito Azevedo e Angélica Freitas. Não houve convidados brasileiros em 2008.

Estou a caminho do Instituto Ibero-americano, para assistir ao debate desta noite, "TrasLados: ¿Somos todos del mismo barrio?", com os poetas Rery Maldonado, Silvana Franzetti e Hernán Bravo Varela, com moderação de Claudia Wente e participação especial da poeta alemã (e tradutora do português) Odile Kennel.

Abaixo, trechos do documentário gravado sobre o evento em 2007.



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