quarta-feira, 22 de setembro de 2021

"Regresso ao agreste", um poema-canção de Makely Ka

Makely Ka é um trovador contemporâneo brasileiro, nascido em Valença do Piauí, em 1975.

REGRESSO AO AGRESTE Regresso ao agreste Esse reverso de floresta E do pouco que ainda resta Esse progresso ao revés Regresso ao agreste Do eucalipto ao cipreste Entre a transgênica semente E a hidrelétrica da vez E hoje a meta-resposta É talvez Um deserto, essa réstia De través Hoje tudo que pasta É a rês E um trator que arrasta Tudo ao rés Nessa terra de xerife Onde tudo se decide Na base do cassetete Não duvide O sujeito te agride Um sozinho contra sete Você pensa no revide E arremete DDT e neocide Com a monsanto quem compete Com o imposto que incide Quem resiste Qual o custo desse bife Qual o lucro dessa thread Isso tudo é muito triste E só regride Regresso ao agreste Seguindo por essa reta Onde aponta uma seta Leio a placa em português Regresso ao agreste Onde a commodity reveste Todo lucro que se investe Do que vende-se ao chinês E hoje a meta-resposta É talvez Um deserto, essa réstia De través Hoje tudo que pasta É a rês E um trator que arrasta
Tudo ao rés 

 
 

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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Seminário de Poesia Contemporânea na UFPR e a homenagem à poeta pernambucana Tereza Tenório

DESTA VEZ, AQUI, AGORA: VOZES DA POESIA CONTEMPORÂNEA.



Terceira edição. Organização de Sergio Maciel, Guilherme Delgado, Renata Mocelin e Luciane Alves. Universidade Federal do Paraná.
DIA 1 (14/09)
Wellington de Mello
Henrique Provinzano Amaral
Anelise Freitas
DIA 2 (21/09)
Paulo Henriques Britto
Diego Alves Amancio
Margarida Vale de Gato
DIA 3 (28/9)
Edimilson de Almeida Pereira
Ronald Augusto
Márcia Brito
POETA HOMENAGEADA: Tereza Tenório (Recife, 1949–2020).

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POEMAS DE TEREZA TENÓRIO
CORPO DA TERRA Pela janela o verde nos revela o coração da mata acesa o úmido veio das aromáticas resinas dentre nossas raízes enlaçadas a destilar a essência do teu hálito em mim corpo da terra desvelado * A FACA SOBRE A ÁGUA Existe o duplo silêncio: o da flauta e do tempo (que há mundos paralelos). Há o movimento rítmico: o do pêndulo no silêncio partido do hemisfério. E foi teu último engano: a ferida rubra e sangrenta. A branca madrugada transformou-te de louca suicida em clara manhã de pássaros e fadas. Houve também a faca sobre a água com o brilho mortal das escamas rápidas e houve o encontro da terra com os astros na rota dourada do fim de tarde. * A CASA NA COLINA Quem sempre quis uma casa na colina pra que pudesse namorar as árvores Tanto sonhou o rosto de uma menina sua cabeleira a refletir as vagas Eu que amarguei a solidão da sina de uma infância sofrida além da margem de tanto amar o amor como a saudade transformei-me ao sol dessa menina Tendo na boca o gosto da menina do crescer na paisagem do silêncio degustando a palavra enquanto sina transformando o silêncio enquanto tempo em meio ao sonho que a estrela move em meio à sina que se mofe ao vento * CASO O meu primeiro amor morreu de fome O meu segundo amor não teve jeito O meu terceiro amor se fez amante recebendo-me à tarde radiante Até hoje vivemos do seu jeito como meu último amor fatal perfeito * VIRTUAL No epicentro das ondas invisíveis edifiquei mandalas para os celtas habitantes dos últimos milênios guelras de peixes e barbatanas retas Onde o mar arrastara nossas redes para morder-nos tênues fios de espera o fluir das espumas retalhou os tecidos da carne contra as pedras nos módulos lunares dissolvi toda a sombra da superfície líquida seus cardumes de tubarões-martelo entre indormidos teoremas míticos arremessei ao lume destes versos nossa imagem virtual de estranhos ritos * TRÍPODES Queimados os corações no sacrifício dos remos sobre a pedra dos oráculos reedificamos o templo Marujos noutro avatar fomos mortos ao relento entre carvalhos e trípodes no temor ao deus sangrento No corolário da lenda filha dos quatro elementos fertilizamos a terra na fenda ao sul do oriente ao fim do embate mortal a seiva do sol no zênite .
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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Carla Diacov - "o burro trota tão lentamente"

Carla Diacov (São Bernardo do Campo, São Paulo, 1975)




[O BURRO TROTA TÃO LENTAMENTE]
o burro trota tão lentamente
perdido do nome gritado
carrega ovos nas mãos escondidas nas
mangas do casaco extralargo
coitado do burro com mãos
perdido da moldura antiga
pacífico de sua própria demência
bonito tão bonito pacífico tão lindo
lentamente ruma
já a casa de fé nos olhos de burro
parece um peixe coitado pacífico
tem esse jeitão de aquário trincado
gosta de cadeiras em geral
mas é boa gente
gosta de leite quente e de cadeiras
em geral
chega ao templo das irmãzinhas castanheiras do último dia
deixa os ovos no altar
faz carinho nos porcos
pega o microfone e repete
quase porque quase porque quase
tudo empilhado
quase porque quase porque quase porque
é mesmo um burro
queria ser pianista
tem muita fé quase porque tudo empilhado
mas é mesmo um lento burro de carregar ovos
pacífico todo pacífico demente e lindo
tão bonito tudo empilhado

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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

André Capilé - "Kuzuela"

Para mim, trata-se de um dos grandes poemas do nosso tempo. Merece um ensaio alentado, mas como o incluí no dossiê de poesia brasileira contemporânea que estou organizando para uma revista do âmbito germânico, terei que enfrentá-lo em breve. 


KUZUELA
André Capilé

ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero

papagaio ê!

seja bem vindo
gostamos de recebê-lo

mas não nos garantimos boas novas

os maridos ainda recusam a voz das esposas
os pais renunciam a voz de seus filhos

nossos avós saíram da raiz faz tempo
mas o tronco resiste apesar dos inventos

esta é a terra e o que se tornou

veja
estamos sempre prontos a nos repetir

viemos a esta terra
comemos desse esterco

em um mundo
que não devia ser tão espalhado
em um mundo
que se distrai por trair ser pacífico
em um mundo
que é apenas um lugar de mercado

uê papagaio uê!

será possível que se instale um vau
que se preciso atravessemos juntos?

e o que virá depois do salto, o óbvio?

de um lesa-majestade ouvi a prece
nem todos voltarão pra casa um dia

até que dê ciência a concha ao molde
é o estéril que engravida o caracol

viemos até aqui
agora chamamos de casa

ó há terra para todos

talvez devesse um elogio
que te fizesse mais feliz

ó há terra para todos

e me escutasse o que rezava
e respondesse cada reza

ó há terra para todos
é de lá meu papagaio

uê que espalha o mundo no lajedo
tão grande, tão poderoso

que não pode vencê-lo a calma
a violência de teu silêncio

quem ousar eiá eu vos digo
enxaguará as mãos pra comer terra

quem ousar eiá eu vos digo
entrará pelo duto ó cu dos céus

e quem ousar eiá que aproxime
mil e um passos contados pra trás

hoje não vou ousar ser tão rude com ele
são mais de mil passos à frente do rei

ó colorido com a tintura do açafrão
patrono dos tapetes sem tamanho

esta terra deve ser pacífica
esta terra deve ser prolífica

a terra deve ser boa pra nós
a terra deve nos favorecer

não botamos nossos ovos pra guerra
nós que somos testemunhas do luto

não merecemos castigo
não devemos ser roubados

papagaio ê!
venha ouvir nossas súplicas

papagaio ê!
prestamos homenagens ao senhor

ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero

seja bem vindo
gostamos de recebê-lo

não ouça amanhã nossos gritos
não nos garantimos boas novas

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in Muimbu (Juiz de Fora: Macondo Edições, 2019)

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