terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Alguns poemas brasileiros: "Paupéria revisitada", de Ricardo Aleixo

Sigo com a série sobre os poetas convidados para o festival de Poesia de Berlim, lendo hoje com vocês um de meus poemas favoritos a sair da mão e garganta de Ricardo Aleixo (Belo Horizonte, 1960), o excelente exemplo de poesia satírica contemporânea que é "Paupéria revisitada", mostrando-nos claramente como a poesia pode ainda exercer algumas de suas funções milenares em meio à comunidade linguística e política a que pertence e na qual se insere. Sem perder a qualidade em sua materialidade de signos, o texto caminha ainda entre a tradição literária e a oral... ora, sequer é realmente ainda necessário fazer estas distinções dualistas, é simplesmente poesia como se fazia no Medievo, entre os Goliardos, por exemplo - escritoral. Os melhores poetas contemporâneos hoje no Brasil, em minha opinião, os que estão tomando para si o desafio de reconquistar o público de poesia que se perdeu entre os anos 80 e 90, têm conquistado seus melhores resultados justamente no campo da poesia satírica. Aqui, Aleixo consegue ao mesmo tempo exortar tanto os produtores quanto os consumidores. Parece-me um poema mui bem sucedido.


Paupéria revisitada
Ricardo Aleixo

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

Máquina Zero (2004)

§



§

Na Oficina de Tradução do Festival de Berlim, Ricardo Aleixo terá por parceira a poeta alemã Barbara Köhler (n. 1959), que estreou em livro com Deutsches Roulette. Gedichte 1984-1989 (1991), e desde então publicou sete livros, o último sendo Niemands Frau. Gesänge zur Odyssee (2007). Barbara Köhler traduziu Gertrude Stein e Samuel Beckett para o alemão, nos volumes:

Gertrude Stein: zeit zum essen. eine tischgesellschaft. objects, food and portraits by Gertrude Stein (Audio-CD, 2001)
Gertrude Stein: Tender Buttons. Zarte knöpft (2004)
Samuel Beckett: Trötentöne / Mirlitonnades. Gedichte (2005)


Como nas postagens com poemas de Horácio Costa e Jussara Salazar, gostaria de encerrar com outros poemas, mas creio que o melhor é simplesmente reproduzir aqui o artigo sobre Ricardo Aleixo, com vários poemas, que preparei especialmente para a Modo de Usar & Co. em outubro de 2008.



Ricardo Aleixo
por Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co.
20 de outubro de 2008


Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, em 1960. Seu trabalho vem crescendo e fertilizando-se nas fendas entre disciplinas da nossa ainda engessada taxinomia de gêneros, aumentando as fissuras na superfície do fixo, já que logo abaixo o campo que une as atividades artísticas do poeta é um campo comunitário, compartilhável. Assim, podemos chamá-lo de poeta, artista visual e sonoro, compositor, locutor, performador, ensaísta, curador. No entanto, acredito que o fluir poético de seu trabalho une perspectivas diversas, que acabam muitas vezes separadas no discurso crítico monológico, e ele está entre os poetas que se formaram na década de 80/90 e iniciaram um processo de renovação do conceito de Joyce/Noigandres do verbivocovisual, renovação que se manifesta em uma multiplicidade de ênfases, fazendo de seus poemas (escritos, sonoros, corporais) "quinas", ângulos dos quais se pode observar o território poético das linguagens do poeta contemporâneo, daquele que gosto de chamar de multimedieval. O próprio poeta mineiro chama seu trabalho de "reverbvocovisual".

Se podemos discutir seu trabalho concentrando-nos em cada manifestação específica, como muitas vezes se faz, lançando o foco sobre seu trabalho literário, sua escrita, seus livros de poemas, creio que no caso de Ricardo Aleixo esta prática é especialmente prejudicial para a compreensão do alcance de sua poesia.

O trabalho com a oralidade e a prática da poesia sonora, no Brasil, ainda parecem tratadas como apêndices do núcleo literário do trabalho poético. A partir da década de 80, poetas como Philadelpho Menezes, Arnaldo Antunes, André Vallias e Ricardo Aleixo entregaram-se ao trabalho de renovação poética de certos paradigmas da poesia de vanguarda, tanto do início do século como do pós-guerra, momento em que vários grupos espalhados por cidades como São Paulo, Paris, Viena, Berlim, Nova Iorque e Tóquio retomaram as estratégias de grupos como o do Cabaret Voltaire. No caso destes poetas brasileiros dos anos 80/90 (após mais um período de nova retomada destas estratégias, como no caso da revista L=A=N=G=U=A=G=E e de certos grupos berlinenses), o trabalho é feito a partir de graus e ângulos distintos, trazendo mais uma vez perturbações para o já documentado, de certa forma, com as novas tecnologias.

O caso de Ricardo Aleixo parece-me particularmente interessante pois, se ele claramente passa a fazer uso das novas possibilidades tecnológicas para esta renovação verbivocovisual, há ainda em seu caso a introdução de perspectivas de outros códigos e culturas, e o que me parece especialmente fascinante em seu trabalho é a tentativa permanente, em sua "obra permanentemente em obras", de atingir um equilíbrio entre verbo, voz e escrita, transformar o verbivocovisual em uma espécie de tríade rotativa de ênfases não-hierarquizadas. Neste aspecto, torna-se essencial compreender a importância da performance em seu trabalho, não apenas como prática artística, mas a partir de suas implicações est-È-ticas, quando um poeta decide fazer de seu corpo o eixo de rotação e translação de sua linguagem e de suas intervenções nela e através dela. É por isso que, antes de discutir os textos escritos ou as peças sonoras de Ricardo Aleixo, eu gostaria de falar sobre o seu "poema corporal", que incorpora o visual em todos os seus meandros, a partir do seu poemanto.





Conheço este trabalho, infelizmente, apenas por fotografias e vídeos, mas sinto a necessidade de iniciar este texto de apresentação de certas peças poéticas de Ricardo Aleixo com esta sua criação. No segundo fragmento do poema-ensaio "O Poemanto: Ensaio para Escrever (com) o Corpo", Aleixo escreve:

Movendo-me ali,
na exigüidade espacial
das efêmeras formas escultóricas
produzidas pelas corpografias
que improviso,
tenho vivido situações que,
por ultrapassarem
a dimensão da performance
(como gênero artístico),
projetam-me numa zona
de percepções expandidas,
em nada semelhantes a
experiências vivenciadas
no cotidiano.


Contemplar este vídeo-performance de Aleixo traz imediatamente à mente e ao corpo uma variedade de referências e implicações do trabalho poético:


(Ricardo Aleixo, "des(continuida(des # 1", poema visual e performance com poemanto)


Se pensamos imediatamente em Arthur Bispo do Rosário e seu "Manto para encontrar Deus", (artista que poderia ser visto como um dos mais espetaculares poetas-visuais do pós-guerra) outras referências inundam a mente. Pois, aqui poderíamos mencionar outro aspecto importante da obra de Ricardo Aleixo, aquele que acaba sendo descrito muitas vezes como "etnopoético", seguindo o conceito de Jerome Rothenberg. Em seu segundo livro, A Roda do Mundo (1996), Ricardo Aleixo publicara uma série de poemas para os orixás afro-brasileiros, e observar a performance poética de Aleixo no "poemanto" é adentrar o território poético-xamânico, pensar, ao mesmo tempo, tanto em orixás como Obaluaye ou Omolu, quanto em artistas como o Joseph Beuys da performance "I like America and America likes me" ou o Hélio Oiticica dos "Parangolés". O próprio Aleixo aponta para algumas destas referências em seu texto "O Poemanto...", mencionando Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e comentando a semelhança entre o "Poemanto" e o culto dos eguns.

O que mais me interessa, porém, é o grau inédito de CORPoralidade que encontramos em seu trabalho. Mesmo em Augusto de Campos (ou Arnaldo Antunes) encontramos em grande parte o trabalho "textual-sonorizável", como no maravilhoso "cidade/city/cité". O trabalho sonoro de Ricardo Aleixo afasta-se em grande parte do que eu chamaria de "tentação do transcrevível", fazendo uso da oralidade como manifestação poética em si, menos dependente da escrita que a fixa que do corpo que a produz. Sem buscar hierarquias entre oralidade e escrita, respeitando cada uma em sua manifestação e necessidade/utilidade para o poeta, Ricardo Aleixo vem produzindo uma obra em que o poético só pode ser compreendido em sua multiplicidade, sem gerar contradições entre voz e signo, sem opor a concretude de uma à concretude da outra. Em uma entrevista, perguntado sobre este possível "paradoxo" do poeta sonoro que escreve livros, Aleixo respondeu:

"Não vejo qualquer paradoxo nisso. Proponho a oralidade, ou melhor, a vocalidade, como um elemento composicional tão importante, na confecção do poema, quanto as palavras, os silêncios e tudo o mais. Voz como, ela própria, um dispositivo tecnológico, compreende? Não há, no meu projeto criativo, dicotomia entre a voz e a letra, para retomar aqui o título de uma obra fundante de Paul Zumthor. Ambas são, na melhor das hipóteses, complementares."


Na resposta, Aleixo cita outra referência essencial para o seu trabalho, o estudioso suíço da oralidade/vocalidade, Paul Zumthor. Seu estudo Introduction à la poésie orale (1983) é uma das leituras mais importantes para qualquer poeta interessado na multiplicidade poética que vai além da escrita. No entanto, ainda que Zumthor muitas vezes assuma a posição de ativista anti-literário, chamando nossa atenção para os perigos da hegemonia da escrita e o que ele vê como a consequente opressão da oralidade, Ricardo Aleixo tem buscado uma perspectiva não-hierárquica.

Uma das peças sonoras de Ricardo Aleixo que mais aprecio é o poema sonoro "Ratos podem pensar". O processo de criação deste poema ilumina alguns dos aspectos que venho discutindo. Trabalhando com a própria voz, assim como a voz do músico Benedikt Wiertz, de sua filha Flora, de 5 anos, e sua mãe Íris, o poema é um belíssimo exemplo do trabalho sonoro de Ricardo Aleixo.

Interessa também tomar esta peça para ilustrar como críticos agem, muitas vezes, de forma pueril diante do trabalho poético sonoro e oral, crendo que, ao transcrever o "texto", transportando-o do registro oral para o escrito, podem então julgar este "texto" sob os parâmetros unívocos daqueles que trabalham com o poético-literário.

Baseando-se na simples frase "Ratos podem pensar como os humanos", e trabalhando-a com sua mãe e filha, unindo estas vozes à colagem de material sonoro alheio, esta peça é uma investigação potente e tocante do processo de aquisição e perda da linguagem, pois Aleixo trabalha com sua filha de 5 anos, passando pelo maravilhoso processo de aprendizagem do arcabouço lingüístico da cultura em que nasceu e dos variados usos desta linguagem, e com sua mãe, que passa pelo doloroso processo de perda da linguagem, num avançado estágil da condição primeiramente diagnosticada por Alois Alzheimer em 1901.


("Ratos podem pensar", poema sonoro de Ricardo Aleixo, 2008)

A única fruição possível para esta peça é a sua audição, como deveria ser com toda peça poética baseada na voz, na oralidade, na corporalidade, desmascarando a discussão limitada que ainda é regida no Brasil por literatos que não compreendem a especificidade do trabalho poético-sonoro. Esta peça de Ricardo Aleixo assume forte carga conceitual, sem perder de vista o dictum poundiano de que only emotion endures, numa peça que pede ser compreendida nos termos em que foi composta, abrindo as perspectivas críticas para suas implicações.

Abaixo, a peça sonora "Margens", de Ricardo Aleixo, que trabalha a partir de outro texto conciso, parco, que passa a assumir uma multiplicidade de sentidos com as qualidades de indeterminação apresentadas pela oralidade:


("Margens", poema sonoro de Ricardo Aleixo)

Ricardo Aleixo retoma algumas da estratégias das vanguardas do início do século e do pós-guerra, em um trabalho que se baseia no que chamo de poética de implicações. O uso da colagem sonora liga-o tanto aos poetas do Cabaret Voltaire como aos Lettristes parisienses e a Henri Chopin.

Abaixo, um dos poemas visuais de Ricardo Aleixo, em que o poeta se entrega ao cultivo de texturas sonoras e visuais, cageanamente justapostas. O poeta o descreve nos seguintes termos: "Radiovideoarte. Refilmagem, por meio de dispositivos os mais diversos, de fragmentos de imagens extraídas de trabalhos anteriores do autor. Sons de rádio misturados à antipercussão gerada pela inserção de objetos como papel e isopor no espaço entre os dois microfones de um gravador digital. Finalizado em outubro de 2008."

Mobilestabile from ricardo aleixo on Vimeo.



Seu trabalho literário talvez seja o mais conhecido. Estreou com o livro Festim (1992), publicando nos anos seguintes os livros A Roda do Mundo (1996, em colaboração com Edimilson de Almeida Pereira), Quem faz o quê? (1999), Trívio (2001), A aranha Ariadne (2003) e Máquina zero (2004).

O poeta, que já declarou ter em Augusto de Campos e Sebastião Nunes dois de seus principais mestres, tem marcado seu trabalho poético pelo uso est-É-tico do parco, do pouco, em uma sensibilidade que me parece ir além do "gosto pelo objetivo", mas que parece surgir de uma necessidade espiritual implícita de aceitação e criação ética de um espaço de poesia povera. A exuberância em seu trabalho surge a partir da multiplicidade que consegue unir singeleza e veemência. Em seu primeiro livro, encontramos o poema "Linhas":

incontáveis linhas
como que dispersas
impensáveis línguas
como que dos persas
cruzam-se no infinito:
ou tornam-se linguagem
ou deixam o dito
por não dito

[de Festim, 1992]

Em seu último livro publicado, Máquina Zero (2004), esta poesia assume caráter político de resistência e indignação. Um de seus textos chama-se "Paupéria Revisitada":

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.


[de Máquina zero, 2004]


Muito poderia ainda ser dito sobre o trabalho de Ricardo Aleixo, mas o espaço de um blog não permite grandes incursões mais profundas. Melhor é disponibilizar e reunir para os leitores/espectadores/ouvintes algumas das peças escritas, sonoras e visuais de Ricardo Aleixo, este poeta "reverbvocovisual" e "multimedieval".

---nota de Ricardo Domeneck.

§

Abaixo, apresentamos poemas visuais e escritos de Ricardo Aleixo,
com três poemas inéditos.


TRÊS POEMAS INÉDITOS DE RICARDO ALEIXO:



Cabeça de serpente

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a serpente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o próprio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva adentro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a própria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a serpente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se morder. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpente morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra serpente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpente morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Estrondo

para Maria Esther Maciel


Naquele entrecho
mais lento dos
dias, aqui, onde,

não importa o
modo como os pés
pisem as folhas

ao caminhar, o
barulho quebradiço
da sombra deles

(espraiada entre
a calçada e as
pedras-escombros

da casa) bem poderia,
se ouvido por
uma detalhista

como você, ser
chamado de troar,
estouro, estrondo.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Noite


O menino viu
sair da boca

da mulher, talvez
sua mãe, uma voz

estrídula e lábil, que
logo desandou,

em cadência
de sonho, a quê?

– A enumerar desas-
tres já ocorridos

e por ocorrer,
a fecundar

harpias, a frisar
as marcas

da passagem
da pantera pelo quarto,

a aturdir relógios,
a enegrecer o sol

e outras mais
de tais proezas.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§

Poema visual-sonoro de Ricardo Aleixo:



Real irreal from ricardo aleixo on Vimeo.
("Real irreal", Ricardo Aleixo. Videopoema. Direção, câmera, edição, poema, voz e sound design: Ricardo Aleixo. 2008)

§§§


Texto de Ricardo Aleixo,
acompanhando uma tradução de Hans Magnus Enzensberger
em seu blog:



Este poema não é meu. Este é um poema escrito pelo alemão Hans Magnus Enzensberger. Este é um poema que eu não posso ler no original. Este é um poema que só posso ler em português. Este não é um poema português. Este é um poema escrito em alemão por um alemão e traduzido para o português falado no Brasil por Kurt Scharf (um alemão?) e por (um brasileiro?) Armindo Trevisan. Este é um poema que decidi postar no meu blogue. Este poema agora é meu. Este é um poema que você está lendo como se fosse seu. Este poema é seu.


§§§


Monovolume: liberdade em ângulo




Mary Vieira grafa a concreto
o discurso reto
do mito
da liberdade do homem
numa praça da cidade vazia
(com seus mais de dois milhões
de habitantes)
onde todo mundo
conhece todomundo
mas faz que não
que nunca nem viu antes, vi
vo

[de Festim, 1992]


§§§


Poética


Aprendi com Valéry
um pouco disto que faço:
“Eu mordo o que posso”
(palavra, carne ou osso)
Me acho
me acabo de vez
me disfarço

[de Festim, 1992]

§§§

Cine-olho


Um
menino
não.
Era
mais
um
felino
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros
-
um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia
-
ali
para
os
lados
do
Mercado.



[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Xangô


O que
lança pedras
de raio
contra a casa
do curioso
e congela
o olhar do
mentiroso.
Leopardo,
marido de Oiá.
Leopardo,
filho de Iemanjá.
Xangô cozinha
o inhame
com o vento
que sai
de suas ventas.
Dá um nome novo
ao muçulmi.
Ele fica vivo
quando pensam
que já está morto.
Orixá que mata
o primeiro
e mata
o vigésimo-
quinto.
Xangô persegue
o cristão
com seu grito,
nuvem
que ensombra
um canto do céu.
Leopardo
de olhar coruscante,
não permitas
que a morte
me leve
um dia
antes.

[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Mamãe grande


todas
as águas do mundo são
Dela. fluem
refluem nos ritmos
Dela. tudo que vem.
que revém. todas
as águas
do mundo são
Dela.
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem. que revém.
todas as águas
do mundo
são Dela. fluem
refluem
nos ritmos Dela. tudo
que vem.
que revém.


[de A roda do mundo, 1996]

§§§


Mesmo esta agora, é


Nunca pude escrever nem uma
única linha sobre as casas onde morei.
Nunca, para você ter uma idéia,
alguma delas amanheceu com
estrondos, fendas inexplicáveis ou um
gato degolado junto às rosas
e à pequena horta.

Eram casas, apenas. Estruturas,
antienigmas, pedras encimando
pedras. Mesmo esta, agora, é
uma mera máquina de signos –
demasiado gastos para que se extraia
dela, na melhor das hipóteses, mais
que uma outra (mera) máquina de
signos gastos.


[de Trívio, 2001]


§§§


Dedicatória


Prefiro a paciente
proeza das traças,

meu caquético rapaz,
aos versinhos

bem traçados
dos quais

te mostras capaz
(assépticos e sérios

como os de
ninguém mais).

Ah! Ler-te é
penetrar na paz

dos cemitérios.
Pelo modo como caminhas,

nota-se que ainda
respiras, mas

já entreleio,
junto aos títulos

dos teus livros,
os dois precisos

vocábulos
("Aqui jaz")

com que, um dia,
te saudarão os vivos.


[de Máquina zero, 2004]

§§§


Máquina zero


Quarto dia: entendo que o q
ue preciso, se q

uero mesmo continuar a p
erambular com alguma chance de êxito p

or uma cidade ( duas ) como Berlim, é
de sapatos de largo fôlego. Caminho ( penso e

nquanto caminho ), permeável a t
udo: ao frio sol cortante, às crianças t

urcas com seu comércio informal de b
rinquedos usados, à b

eleza sem rumo da adolescente que ( longas p
ernas abertas sobre um p

rosaico selim de bicicleta ) c
avalga o c

omeço da tarde, aos grafites que “d
ariam belas fotos”, à Topografia d

o Terror, às ruínas, ao r
asta que me saúda ( “R

asta!” ) na Wilhelmstrasse, às l
ascas do Muro na vitrine da pequena l

oja, ao a
marelo-zoom do metrô a

pontando na curva a
ntes do teatro, à

História,


[de Máquina zero, 2004]

§§§§

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Alguns poemas brasileiros: "Bestiário", de Jussara Salazar

Seguindo com minha pequena série de postagens de poemas dos autores convidados por mim para o Festival de Poesia de Berlim deste ano, compartilho com vocês um dos poemas de Jussara Salazar que estará incluído na antologia binacional a ser lançada após a Oficina de Tradução. A propósito, o parceiro alemão de Jussara Salazar já foi definido, será Christian Lehnert, nascido em 1969 na cidade de Dresden, então Alemanha Oriental, e formado em teologia pela Universidade de Jerusalém. Lehnert estreou em 1997 com o livro Der gefesselte Sänger, e tem seus livros publicados pela Suhrkamp, seis coletâneas, sendo o mais recente Aufkommender Atem (2011).

Como vocês devem saber, Jussara Salazar nasceu em 1959, no agreste de Pernambuco, e é autora de Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá - Poemas de Leticia Volpi (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (Buenos Aires, 2008) e o mais recente (e belo) Carpideiras (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011).


Bestiário
Jussara Salazar

a minha guerra será a tua guerra
não a guerra dos homens
mas a dos pássaros desgarrados

o nosso bestiário será esse
o do contrário nunca jamais
e a minha casa será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o do contrário e dos urubus diários
e a minha carne será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o dos monstros submersos que eunoé lembrará
quando a minha cruz for a tua guerra

então o nosso bestiário será esse
canto perdido sem prumo retalhado
sem dor sem beleza nem terra

e então a minha guerra será a tua guerra



Para quem conhece meu trabalho, creio que não será difícil perceber o porquê do meu apreciar. Tenho grande apreço pela escrita que adota o permutacional, especialmente quando aplicada a um texto tão marcadamente lírico. Em língua portuguesa, tal processo encontrou sua expressão magistral, por exemplo, em um livro como A Máquina Lírica, de Herberto Helder, livro e poeta sobre o qual pretendo escrever aqui em breve. Aqui, no "Bestiário" de Jussara Salazar, nada há de gratuito no uso do permutacional entregue à mimese de uma relação, já que nossa própria vida amorosa parece adotar por vezes estratégias de permutação. Algo como Frank O´Hara exclamando "Each time my heart is broken it makes me feel more adventurous (and how the same names keep recurring on that interminable list!)", em seu poema "Meditations in an emergency" - nunca deixo de admirar a escolha daquele "in" no lugar do gramaticalmente usual "on".

O último livro de Jussara Salazar, intitulado Carpideiras, retoma a tradição ibérica de uma poesia elegíaco-religiosa, remontando à poesia medieval e à milenar tradição oral. Se esta se afasta do religiosamente agônico em Hilda Hilst, talvez aproxime-a da delicadeza lírica firme de Henriqueta Lisboa. Uma carpideira, como se sabe, é uma profissional feminina contratada para prantear um morto. Seria interessante pensar se o livro de J. Salazar exerce tal função em relação à mesma tradição à qual se liga.


TYRANA CANTADA À SACRA PRECLARÍSSIMA SANTA JOANA PRINCESA EM SEU LEITO DE MORTE.
Jussara Salazar

1 Ela disse ao coração do cantor
não cante/aos corvos
ela disse ao mar profundo
jazem/as brumas da ira
ela disse não cante /apenas diga
ao silêncio/que plante
aquela flor/
e rasgando a sombra/cuja mão
ela /esguia como um longo cravo
segurava/disse ao tempo/
não espantes/o sol com a tua dor



Termino esta pequena postagem com outro poema de Jussara Salazar que aprecio em sua labiríntica sonoridade entremalhando a sintaxe.

Água celeste
ou jogos da amarelinha
Jussara Salazar

antes tarde
que nunca
entulho
antes música
e estilhaço
no ardor
aquático
deste ácido entre
a orla
sempre um cáustico
iça
funde o corpo
um tímpano
ao pólen
quem beira o lago
e o astro
rapta
o concêntrico eco
e antes refaz-se
do que nunca
hálito
enquanto ara
um palavreado
e apalpa
a teia
o átimo
ante
o acústico
caleidoscópio


.
.
.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Alguns poemas brasileiros: "Vinte anos depois", de Horácio Costa

Nos últimos dois meses, por conta de minha passagem pelo México e pelo Brasil, tive um contato muito forte com a poesia contemporânea mexicana e brasileira, além conhecer poetas contemporâneos de outras línguas residentes nestes dois países, descobrindo vários autores que me deixaram feliz e entusiasmado com o que está acontecendo na poesia neste momento. Ao mesmo tempo, minha curadoria para a Oficina de Tradução do Festival de Poesia de Berlim, dedicada este ano à poesia brasileira, levou-me a ler e reler vários poetas brasileiros das últimas décadas para chegar à minha seleção.

Já postei e escrevi aqui sobre alguns poetas que conheci nos últimos meses, como foi o caso do mexicano Alejandro Albarrán (Cidade do México, 1985), a norte-americana Robin Myers (Nova Iorque, 1987) e ainda o argentino Ezequiel Zaidenwerg (Buenos Aires, 1981) após nosso reencontro no México. Também escrevi a respeito ou simplesmente postei poemas dos cariocas Victor Heringer (Rio de Janeiro, 1988), Luca Argel (Rio de Janeiro, 1988) e Alice Sant´Anna (Rio de Janeiro, 1988) após nossas leituras conjuntas no Rio de Janeiro. Voltarei a alguns destes poetas em breve, assim como a outros que conheci no México ou revi em São Paulo.

Mas hoje gostaria de começar uma série de postagens bastante simples, tão-somente com poemas dos autores brasileiros que convidei para minha curadoria da noite de traduções no Festival de Poesia de Berlim. Abaixo, um dos poemas de Horácio Costa que mais aprecio, poeta que estará em Berlim em junho. Trata-se de "Vinte anos depois", assim intitulado na antologia Fracta (São Paulo: Editora Perspectiva, 2004), com seleção de Haroldo de Campos. Já li o poema na Rede com o título "Aniversários". Sigo aqui o da antologia. O poema foi originalmente publicado no livro Quadragésimo, primeiramente no México em 1996 e mais tarde no Brasil, pela Ateliê Editorial, em 1999. Informo aqui também que o parceiro alemão de Horácio Costa na Oficina de Tradução será o celebrado poeta Gerhard Falkner (n. 1951), que tem 14 coletâneas de poemas publicadas, entre elas so beginnen am körper die tage (1981), der atem unter der erde (1984), X-te Person Einzahl (1996) e Hölderlin Reparatur (2008), pelo qual recebeu o importante prêmio de poesia Peter-Huchel-Preis (Prêmio Peter Huchel).


Vinte anos depois
Horácio Costa

Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo ....do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos....o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Mareei morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se
.......popularizam em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte
.......curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali


§


Gosto bastante da maneira como Horácio Costa incorpora a História na tessitura do poema, prática que poderia talvez ligar o texto, sem qualquer intenção minha de insinuar hereditariedades ou hierarquias (minha mente funciona por teias), a poetas tão distintos quanto Konstantínos Kaváfis e Zbigniew Herbert. Fiz questão que este poema estivesse incluído na antologia que a oficina gerará, com 6 poetas brasileiros e 6 poetas alemães. Imagino que será interessante ler este poema em alemão, o que me faz pensar em um possível diálogo com textos de poetas como Bertolt Brecht, Heiner Müller ou o contemporâneo Hans Magnus Enzensberger.

Abaixo, dois outros poemas de Horácio Costa que aprecio.


Tire tudo da paisagem
Horácio Costa

a Milos Sovak, in memoriam

Tire tudo da paisagem,
o serpenteante rio de águas cristalinas,
a neve ocasional, os rebanhos
de branquíssimas ovelhas
que se escondem detrás
das bétulas e das coníferas,
tire as porteiras que dividem
os campos de aveia e de centeio,
tire as velhas casas de pedra
da paisagem,
tire os bulbos de narciso,
os bulbos de lírio, de íris,
os telhados, as chaminés, os pedregulhos,
pouco a pouco tire tudo da paisagem:
a irritante torre medieval,
a capela tardo-gótica,
os retábulos de têmpera sobre madeira,
as rimas, as baladas líricas,
a cozinha típica, os sapatos:
descalce a paisagem,
veja-a sem subterfúgios,
nua, reduzida, descalça.
Ainda assim, nota bem,
algo permanece
entre aquela paisagem
e a de agora:
o pio dos corvos,
o agouro dos corvos,
aquele martelar de gritos negros,
sobrevive, voa entre
a paisagem de ontem
e a que lês, queridíssimo
leitor. Não há como
tirar os corvos
deste poema.


§

Caixa de água azul
Horácio Costa

Entre a ramagem da árvore desconhecida,
Caducifólia, nem de Jessé ou genealógica,
Um volume azul sobre uma laje, caixa de água
De polietileno ou poliuretano.
Notação distante na paisagem urbana,
Obsedante recordação no agora-agora,
Calle Río Poo 108, Colonia Cuauhtémoc,
Suites Parioli, México, Capital.

O mar, não. O mar, não. O mar, não. O mar, não.
Um exagero de zéfiros, então: o expresso
Descia a serra em Simcas-Chambord tangerina,
Rumo à baía divisada entre montanhas:
Ao longe, o porto e as torres, guindastes e praias;
Ao pé a pantanosa terra, como espaguete, úmida.
O talento da oitava real quereríamos,
O seu sempre imarcessível horizonte.

Nele seguia a senhora duas vezes por ano,
Qual a ordem das vogais, dos ritos identitários,
às vilegiaturas; se lhe encolhera
o mundo à mínima possível transumância.
Para lá da paisagem, a sós uiva o engenho,
Aquilo que em linguagem transforma a língua.
A árvore que se agita em eterno lenho
Enraíza no presente o espectro que mingua.

Ia a senhora, olhos de pomba, um único anel
De coral; cruzou-se a morte entre ela e o poema.
O mar, não. Caixa de água azul entre prédios alheios.
Este o horizonte, marchetado em fragmentos,
Reduzido a um puzzle no qual o montador
A si se vê como uma das peças faltantes.
O agora não sabe o que diz: memoria vincitrix.
Desce uma vez mais o expresso a estrada de Santos.

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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Artigo de Daniel Falkemback sobre meu livro "Sons: Arranjo: Garganta" (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009)

O texto é exageradamente generoso em algumas de suas asserções, e especialmente a menção/comparação mallarmaica causará reações físicas em vários leitores, reações que irão do erguer-se de uma das sobrancelhas ao curvar-se côncavo dos cantos da boca para o sul do corpo, provavelmente em esgar, mas a discussão, por exemplo, sobre o que ele chamou de "`crise´da poesia brasileira" e ainda sobre o contexto/função das formas é algo que me interessa muito, e eu, em minha posição, posso apenas agradecer a atenção de Daniel Falkemback (Curitiba, 1989), que não conheço, por dispor-se a atravessar um livro que tantos, mesmo entre meus amigos, consideram difícil, irritante e chato.





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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Anúncio feliz: este ano serei publicado na Alemanha

Esta tarde tive a alegria de poder encontrar e conhecer pessoalmente meu futuro e primevo editor alemão, Johannes CS Frank, editor da revista Belletristik, diretor do festival Zeitkunst e fundador de sua própria editora, a Verlagshaus J. Frank | Berlin, que ainda este ano publicará minha primeira coletânea de poemas aqui na Alemanha. A tradutora será minha companheira Odile Kennel, com quem venho trabalhando há alguns anos já.

Havia recebido a notícia em dezembro do ano passado, mas estava no Brasil e achei por bem esperar até um encontro oficial na editora para anunciar esta notícia maravilhosa. Estou muito feliz, alegria aqui compartilhada.

J. Frank deu-me carta branca em relação ao livro, quantas páginas e assim por diante. Ainda não me decidi ao certo se optarei por uma antologia ou por um dos meus livros na íntegra.


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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Quarta-feira com direito à companhia de Akia.

Hoje, passei o dia resolvendo algumas coisas, entre elas a prazerosa tarefa de renovar minha carteira para poderar retirar livros na Staatsbibliothek, aquela onde os anjos de Wenders passam algumas horas da tarde. Voltei para casa com um volume de textos selecionados do místico alemão Jacob Boehme (1575 — 1624) e ainda The sound of poetry / the poetry of sound (2009), da Marjorie Perloff e do Craig Dworkin. Como ser membro da Stadtsbibliothek dá automaticamente direito a retirar livros no Instituto Ibero-Americano de Berlim (Iberoamerikanisches Institut Berlin), que funciona no mesmo prédio, aproveitei para também voltar para casa com um volume de artigos do grande e lúcido Joaquim Nabuco ( 1849 — 1910) e uma edição do Diário Completo de Lúcio Cardoso (1912 — 1968), este ser meio assustador e da raça dos que não se encaixam muito bem na mentalidade oficialesca brasileira, em suma: os que amo.

Andei pela cidade, parei em cafés, terminei de ler At the Same Time: Essays & Speeches (2007), presente do meu mamútico amigo Jonas Lieder, o livro que reúne os últimos textos de Susan Sontag (1933 - 2004), uma autora que sempre me causa ao mesmo tempo admiração e certa gastura. Mas não é hora e lugar de discutir sua visão apaixonada da função da literatura.

Escrevi um pouco, algumas linhas para uma nova canção com meu parceiro. O título: "Don´t feed the poet".

Mas hoje é quarta-feira e daqui a pouco sigo para o clube, onde hoje temos dois DJs convidados e ainda a presença de Uli Buder, mais conhecido como Akia, meu amigo e parceiro em algumas composições. Um dos seres mais quietos e calmos que já conheci. Alguém diria: "um típico alemão do norte". O vídeo abaixo é o que fez para uma de suas últimas e melhores composições, chamada "Papier". Vou tomar banho e preparar-me para passar a noite a seu lado na cabine do DJ, conversando e ouvindo música da melhor qualidade.


Vídeo e música de Uli Buder, mais conhecido como Akia: "Papier" (2011)


AKIA (Uli Buder)




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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Furando o bloqueio numa manhã de Valentine´s Day

Dessarte, ao sétimo dia, enquanto Deus dormia o sono dos justos, a Natureza, esta cavala-cã, deu-nos o amor e o instinto de sobrevivência, feito um Jano ou quiçá Mogwai-Gremlin, exigindo equilíbrio, não contradição, para que não pura e simplesmente corrêssemos à chegada do leão ou urso, abandonando nossa geringonça amorível predileta à devoração do mundo, mas ao mesmo tempo soubéssemos o instante da fuga quando esta estivesse já entre as garras e presas do predador-mor, sabendo talvez que um dia dominaríamos o ambiente fazendo-o mais seguro, e então nos legaríamos ainda o direito unilateral à separação - como pré-requisito à próxima alegria momentânea para um e morte no tempo mas não no espaço, para o outro, e impossibilitada de doar-nos o dom completo da regeneração, deu-nos a memória física dos membros fantasmas para compensar as amputações.

Ricardo Domeneck, manhã de Valentine´s Day no espaço cultural que habito no Hemisfério Norte, 14 de fevereiro de 2012.


*

Antídotos matinais, o primeiro cigarro e xícara de café, as pernas bambeiam, a cabeça fica leve, é como experimentar o primeiro amor por três segundos toda manhã.


*

it may not always be so;and i say
that if your lips,which i have loved,should touch
another's,and your dear strong fingers clutch
his heart,as mine in time not far away;
if on another's face your sweet hair lay
in such a silence as i know,or such
great writhing words as,uttering overmuch,
stand helplessly before the spirit at bay;

if this should be,i say if this should be--
you of my heart,send me a little word;
that i may go unto him,and take his hands,
saying,Accept all happiness from me.
Then shall i turn my face,and hear one bird
sing terribly afar in the lost lands.


e.e. cummings


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Não quero mais cantar feito Orfeu,
mas como se as Bacantes volvessem
seu generoso ventríloquo, no exato
momento em que o esquartejam.


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Eu já sabia que meu usual bloqueio pós-publicação terminaria hoje. Mas quanta tolice. Eu preferiria estar dançando.


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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

"He´s my mirror", canção linda e inédita de Matt Sims (Mount Sims)

Matt Sims a.k.a. Mount Sims


Matt Sims, mais conhecido por seu projeto Mount Sims, é um músico e vocalista norte-americano, nascido em Los Angeles. Ele vive e trabalha em Berlim desde 2006, quando nos conhecemos e ele tocou pela primeira vez em meu evento quarta-feirístico. Eu sou um dos cadáveres na capa de seu último disco como Mount Sims, em que o fotógrafo Pablo Zuleta Zahr reencenou a famosa foto do suicídio/assassinato coletivo perpetrado por Jim Jones no Peoples Temple.


O último trabalho mais conhecido de Matt Sims é a ópera que escreveu com Planningtorock e The Knife, chamada Darwin. Este fim de semana, ele disponibilizou na Rede um álbum que ele gravou no ano passado mas acabara não lançando oficialmente. Além de uma linda versão para a canção "You forgot to say", da Nico, e outras faixas muito potentes, apaixonei-me por esta canção, chamada "He´s my mirror", e quis compartilhar com vocês.



He's my mirror by CEl


Escute o álbum todo abaixo:


CEl


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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Black Cracker: poemas, canções


Meu caríssimo Black Cracker acaba de lançar por uma editora nova-iorquina seu primeiro livro, intitulado 40oz elephant, com poemas e desenhos feitos nos últimos 10 anos, 10 anos em meio aos quais o poeta vocal já foi duas vezes National Poetry Slam Champion, produziu canções para os duos CocoRosie e Creep, além de Bunny Rabbit, com quem viajou e colaborou extensivamente.




No mês que vem, nós dois faremos uma leitura-performance juntos aqui no Berlimbo, com outros dois poetas mais conhecidos como músicos, uma convidada dele e outra minha. Darei mais detalhes em breve.

Além de lançar seu livro de poemas para a página, no dia 1° de abril sairá seu primeiro álbum solo, com seus incríveis poemas vocais. Conheço o álbum já há algum tempo, e estou muito feliz que ele finalmente começará a circular, pelo selo Hinterhaus Records.





Aqui, você pode ouvir uma prévia do álbum. E você pode comprar o livro de Black Cracker aqui.


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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Duas palavras, que são um nome, que pertence a uma pessoa, que é minha principal interlocutora: Marília Garcia



Tenho hoje um diálogo muito forte e frutífero com vários poetas contemporâneos, debates que são importantíssimos para meu trabalho como poeta e crítico, com companheiros específicos e pontuais espalhados por vários países e línguas, no Brasil, na Alemanha, Catalunha, Argentina, México. São debates com regularidade e intensidade variadas, sobre questões que são pontos nevrálgicos, se me permitem, a unir e separar meu trabalho do destes poetas. Uma relação de grande respeito guiando os questionamentos de nossas discordâncias e concordâncias, como minhas conversas sobre forma e historicidade com autores como Érico Nogueira, Dirceu Villa e, nos últimos tempos, Ezequiel Zaidenwerg.

Há poetas com quem sinto a sorte comunal de possuir pura e estrutural afinidade est-É-tica, como é o caso de minha admiração por Angélica Freitas. É uma corrente subterrânea que carrega meus pés e talvez nos leve, quem sabe, à mesma cachoeira.

Mas, com exceção talvez do catalão Eduard Escoffet e por razões distintas, mal encontro palavras para descrever a comunhão única de preocupações, perguntas e obsessões que sinto ao dialogar com Marília Garcia. Grande parte de um debate, tornando-o às vezes tão difícil, perde-se e perde tanto na necessidade de explicarmo-nos antes de podermos realmente dialogar, e é justamente esta perda de tempo no explicar-se que raramente sinto em meu diálogo com esta poeta, por compartilharmos tantas referências, que não deixam ao mesmo tempo de ser adversativas e complementares. Minha leitura crítica tão marcada por germânicos e anglófonos, ligada ao seu conhecimento do debate francófono, por exemplo. Foi meditando sobre seu trabalho que se clarificou em minha mente a busca pelo que venho chamando de uma lírica analítica, que já intuíra, no Brasil, em Marcos Siscar na década de 90 e poderia elaborar melhor para mim mesmo ao pensar sobre o trabalho de Juliana Krapp, cuja pequena obra, declarada pela própria autora como já encerrada, parece ter sido aquela que, no Brasil, mais claramente assumiu certos questionamentos que eu declararia encontrarmos apenas em poetas como Lyn Hejinian, Rosmarie Waldrop ou Rae Armantrout, dentro do meu limitado campo de visão, audição e pensamento.

Questionamentos, no entanto, aos quais acredito que Marília Garcia também uniria sua consciência do debate tão culturalmente específico sobre o lirismo que foi empreendido na França, por poetas tão diversos quanto Emmanuel Hocquard e Nathalie Quintane, talvez já germinado no trabalho de Gertrude Stein, que Marília Garcia vem traduzindo belamente para o português, e eu incorporava por implicações através de minha leitura obsessiva de Ludwig Wittgenstein.

Com Marília Garcia, a paixão quase obsessiva por esta Gertrude Stein, nosso interesse por uma textualidade que tantos dizem "não ser poesia", aquela que amamos nos trabalhos talvez inclassificáveis da própria norte-americana, ou ainda de John Cage, David Antin, Emmanuel Hocquard, como em certos textos de Barthes e artistas visuais que se embrenham na floresta de signos da textualidade, como o interesse de Marília por Guillermo Kuitca e Alfredo Prior, o meu por Gary Hill e Martha Rosler, e o nosso amor comum por Mira Schendel.

Ter tido a honra de lançar no Rio de Janeiro meu Ciclo do amante substituível (7Letras, 2012) ao lado de seu engano geográfico (7Letras, 2012) não é apenas a alegria de compatilhar um momento bonito com uma companheira. É como uma figura (em seu sentido teológico) pessoalíssima, dos caminhos que sinto partilhar e palmilhar com esta poeta, embrenhando-nos por uma poesia lírica desbragadamente nua, protegida do frio crítico de um país tão apaixonado pelo antilirismo apenas pelo aquecimento único dos pelos de seu próprio corpo.

A apresentação de Marília Garcia no evento que organizamos, ao lado de Marta Mestre no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, foi uma das experiências mais fortes que já tive com um poeta de carne e osso, vocalizando seu texto. Houve leituras que me entusiasmaram ou divertiram muitíssimo, mas nenhuma que tenha me emocionado tanto, este ato tão fora de moda como é o emocionar-se. Graças ao jovem poeta carioca Ícaro Lira, há um registro em vídeo da apresentação, com um excerto da intervenção de Marília sobre a peça que fez em colaboração com o músico Rodolfo Caesar, e sua própria intervenção sobre seu poema "é uma lovestory e é sobre um acidente".

Antes do vídeo, uma última asserção apaixonada: se eu morrer um segundo depois da postagem deste artigo, que o mundo saiba que Marília Garcia é a única com autoridade total e irrestrita para decidir o destino do que eu, com riso contido, chamaria de meu espólio. Hoje, basicamente, um amontoado de cartas ridículas de amor e um ou outro artigo.



Leitura dos poemas "Aquário" e "é uma lovestory e é sobre um acidente"
no evento Textualidade: modos de usar, organizado pela Modo de usar & co.
em parceria com o MAM, através da Marta Mestre, que teve lugar no próprio museu.
Quanto ao primeiro poema, trata-se da parte final da intervenção
na peça musical "Aquário", de Rodolfo Caesar.
Vídeo filmado e editado por Ícaro Lira.

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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Adelaide Ivánova, minha companheira no vale do rímel borrado, em retrato do fotógrafo alemão Jakob Ganslmeier.


Adelaide Ivánova por Jakob Ganslmeier (2012).

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Os dois fotógrafos

Jakob Ganslmeier

&

Adelaide Ivánova

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E nestes dias de frio insuportável no Berlimbo, um poema apropriado da última:

tulipas
Adelaide Ivánova

meu parapeito
não tem flores,
meu apartamento
não tem geladeira,
ponho os saquinhos
de mussarela do lado
de fora da janela
para não estragarem
e assim prescindo
de tulipas.


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domingo, 5 de fevereiro de 2012

Colaboração com Ezequiel Zaidenwerg: vídeo meu para seu poema "Murió el terror de las escandinavas", especial para a revista mexicana "Chilango"

Ezequiel Zaidenwerg por Valentina Siniego


A revista eletrônica mexicana Chilango convidou o poeta argentino Ezequiel Zaidenwerg (Buenos Aires, 1981), meu caríssimo amigo, a participar do projeto "Poeminuto", unindo textos vocalizados a vídeos preparados para tal. Zaidenwerg perguntou-me se eu faria algo com sua vocalização para um texto recente, bastante irônico e mordaz, intitulado "Murió el terror de las escandinavas". Aceitei o convite-desafio, trazendo minha própria ironia para a peça. Talvez o resultado seja um verdadeiro quebra-cabeças em questões de política de gênero. Parti de uma colagem com material existente e em domínio público.

Fiquei feliz com esta colaboração e quis compartilhá-la com vocês, vocês todos que, assim espero, já leram La Lírica Está Muerta (Bahía Blanca: Vox Senda, 2011), do nosso caro Zaidenwerg. Se ainda não tiveram a chance, baixem o livro, que foi disponilizado pelo autor na Rede. Foi uma das leituras de poesia que mais me deram prazer no ano passado. Abaixo, "Murió el terror de las escandinavas":


Ezequiel Zaidenwerg - "Murió el terror de las escandinavas" - texto y voz.
Video de Ricardo Domeneck. Ciudad de México / São Paulo / Rio de Janeiro. 2012.


Murió el terror de las escandinavas
Ezequiel Zaidenwerg

Murió el terror de las escandinavas,
ése que echaba espuma por la boca
no bien veía una melena rubia
vagamente foránea. Sus amigos
lo imaginan ahora entre los fiordos
del cielo, persiguiendo a las valkirias
a un Valhalla nudista junto al sol,
con su falo de cera, inofensivo.
Poco a poco se fue descascarando,
igual que una cebolla hecha de carne,
y quedó expuesta, capa a capa, toda
la geología de su desviación
(el púgil fracturado, el libertino
púdico, el cocainómano amateur),
hasta que al fin la imagen de su crimen,
como un puño de odio palpitante,
se hizo visible al estallar la cáscara
que lo cubría: un fauno enloquecido
que, apretando del cuello a una doncella,
la flagelaba con su verga bífida
y abría surcos de copiosa sangre
de cocodrilo sobre el cuerpo trémulo;
luego se lo llenaba de gargajos
y de insultos y, armado con un fórceps
al rojo vivo, abría sus caderas
para implantarle en la matriz profunda
algún objeto no identificado
de látex, con higiene y precisión.
Después, para humillarla, le decía:
“La princesa está triste, ¿qué tendrá
la princesa?”, al oído con ternura
fingida, y explotaba de repente
en una carcajada demencial;
y, a fin de hacer completo el aquelarre,
traía a algún secuaz para vejarla.

Ya no existe el terror de las noruegas,
nativas o becadas; lo borraron
ráfagas bienhechoras de silencio,
que, deshaciendo aquella ruina humana,
muscular y moral, trajeron paz
definitiva. Ahora, como antes,
mancebos y muchachas pueden creer
que es posible un amor, en este mundo
cruel, puro como el agua del deshielo;
otra vez pueden respirar las madres
aliviadas (ya nadie grita: “¡Viene
el lobo!”) y pueden regresar los chicos
a jugar a las plazas, sin temer
la presencia furtiva en los arbustos:
murió el terror de las escandinavas.


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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Descanse em paz, querida Wislawa

Há poetas que tiveram papéis tão importantes na minha vida mental, que suas mortes, mesmo jamais os tendo conhecido, me deixam de luto verdadeiro, tristeza gigante. Foi assim quando Hilda Hilst morreu, em 2004, ou Robert Creeley, em 2005. Há dois dias, sucumbiu a um câncer no pulmão (ela, famosa chain smoker) a poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923 - 2012), em sua Cracóvia de eleição. Como homenagem a esta mulher que me ajudou literalmente a manter a sanidade em alguns momentos, reproduzo aqui duas postagens que dediquei ao trabalho de Szymborska, entre tantas outras nais quais ela compareceu como personagem importante. Obrigado por tudo, mulher fantástica e generosa.


§

As holotúrias dos poetas
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009



Em 2001, que geralmente chamo, com os lábios sobrevoando xícaras de café e copos de vinho tinto, de "um dos piores anos da minha vida", sofrendo como um camelo por uma daquelas hemostasias vagarosas de uma sangria desatada, quando ainda não sabia que (sim) se sobrevive a certa amputação de ilusões, houve alguns poemas que me acompanharam nas calçadas de São Paulo, como tubos de oxigênio ligados a um lugar-nenhum, cartografado sob um sol imaginário qualquer, provendo luz, ainda que artificial.

De poemas que nos mantêm vivos, a gente nunca esquece.

Há aquele início tenebroso do poema de Robert Creeley, que eu ainda repito em momentos de sufoco: "If night´s the darker / closer time, / days come", para culminar na luminosidade do trecho:

"let light
as air
be relief.
"

E, se a garganta se engarrafava e os lábios rachavam, era sempre possível recorrer àquele

"...e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
"

de Carlos Drummond de Andrade. Havia a lição de Bishop: "Lose something everyday. Accept the fluster...", nos ensinando a fingir, a fingir.

"Faz de conta, minha filha. Faz de conta." - JGR.

Um dos poemas que mais forneceram oxigênio à minha cabeça naquele ano foi "Autotomia", de Wislawa Szymborska, que eu lera no número 10 da revista Inimigo Rumor, e que me serviu algumas vezes de kit-sobrevivência para terminar o dia.

Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

(tradução coletiva, publicado em Inimigo Rumor 10)

Poemas podem ter as causas, os efeitos mais diversos. Não é todo dia que se quer passar uma temporada no Inferno; ou em Duíno; ou mesmo em Pasárgada, ou no País das Maravilhas. De um lado o sertão, de outro o mar. Seja Lear (1812 - 1888) no absurdo em riso, ou Lear (1603 - 1606) no absurdo de todas as perdas, a cada instante seu malheur, seu bonheur. O do poema na gargalhada e o poema do franzir de todos os cenhos.

"Tempo de atirar pedras,
e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar,
e tempo de se separar."


Recentemente, lendo a antologia Revolution of the Word: A New Gathering of American Avant Garde Poetry 1914 - 1945, editada por Jerome Rothenberg, li um poema de Kenneth Rexroth em que ele também recorre à holotúria (ou pepino-do-mar), usando quase o mesmo fraseado de Szymborska, levando-me a perguntar se seria uma colagem ou fragmento de que Szymborska e Rexroth se apropriaram a partir de alguma enciclopédia. O poema de Rexroth chama-se "Fundamental disagreement with two contemporaries", um texto longo de cerca de 6 páginas e várias partes, no qual se encontra o seguinte fragmento em prosa e entre aspas:

"The sea cucumber when in danger of being eaten, eviscerates itself, shooting out its soft internal organs as a sop to the enemy while the body wall escapes and is able to regenerate a new set of viscera."

Pensando no texto de Szymborska, li outras páginas sobre estas holotúrias que já se enroscaram em minha mente, encontrando textos parecidos:

"When threatened, some sea cucumbers discharge sticky threads to ensnare their enemies. Others can mutilate their own bodies as a defense mechanism. They violently contract their muscles and jettison some of their internal organs out of their anus. The missing body parts are quickly regenerated.

ou

"A remarkable feature of these animals is the catch collagen that forms their body wall. This can be loosened and tightened at will and if the animal wants to squeeze through a small gap it can essentially liquefy its body and pout into the space. To keep itself safe in these crevices and cracks the sea cucumber hooks up all its collagen fibres to make its body firm again.[3]

Some species of coral-reef sea cucumbers within the order Aspidochirotida can defend themselves by expelling their sticky cuvierian tubules (enlargements of the respiratory tree that float freely in the coelom) to entangle potential predators. When startled, these cucumbers may expel some of them through a tear in the wall of the cloaca in an autotomic process known as evisceration."


§

Mutilar-se como sistema de defesa contra ilustríssimo predador. Expelir certos órgãos supérfluos em dissimulação, baile de máscaras de uma sexta-feira em filmes de medo, medo. Plano de fuga: ejetar-me as vísceras. Que holothuroidea formidável.

Pequenos pedaçoilos de moi-même em tupperwares ao honorável monsenhor predador, a tapar o ar que desperdiço do seu ambiente.

Meu Jack the ripper, com os cascos sobre o meu crânio, permaneça sempiterno no andar de cima da cadeia alimentar, enquanto a sustento com meus ombros e outras partes de minha anatomia renovável.

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Poemas que continuam salvando minha vida: "Autotomia", de Wislawa Szymborska
segunda-feira, 12 de setembro de 2011


Alguns talvez digam que é exagero, ora, como assim um poema salvar a vida de alguém? Mas não se trata de glamourização de poeta, nem conversa pseudo-xamânica sobre mágica arcaica ou qualquer falcatrua soteriológica. Em minha vida, é a mistura de fato e ato. Nesta série, quero repostar – já discuti vários deles aqui – poemas que lateral e literalmente salvaram minha cota de oxigênio e seguem mantendo minha sanidade em um nível aceitável de equilíbrio diante de certas catástrofes. Quando descobrimos um poema com este poder, ele praticamente entra em nosso sistema de defesa e passa a ser parte dos nossos anticorpos contra os demônios ensandecidos, contra os inimigos da lucidez, contra o vírus do suicídio. Hoje, no parque minúsculo e favorito aqui no meu bairro berlinense, sentado na grama, com o vento meio gelado embaraçando os cabelos que já começam a ficar brancos, eu fechei os olhos e sussurrei de novo, várias vezes, como fizera em outros momentos de necessidade:


"Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou."


São versos do poema "Autotomia", da polonesa Wislawa Szymborska. Não se trata de um de seus mais famosos, algo que nunca entendi. Tenho antologias de poemas dela em alemão e inglês que não trazem este poema específico. E, no entanto, eu já não sei se seria capaz de viver sem ele na memória. Nada que as beatas da materialidade possam entender, já que não compreendem como hedonismo e ascese se confundem em nossa miséria extrema.



Autotomia
Wislawa Szymborska

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o
Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.



(tradução coletiva, publicada na revista Inimigo Rumor número 10)


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Soube através de Carlito Azevedo que a Companhia das Letras está lançando a primeira antologia de Wislawa Szymborska no Brasil, uma notícia que é simplesmente radiante.




Em novembro de 2008, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem sobre a poeta polonesa, ganhadora do Nobel em 1996 (quando a descobri), para a Modo de Usar & Co., da qual vocês podem ler o artigo introdutório abaixo.



WISLAWA SZYMBORSKA

Wislawa Szymborska nasceu em 1923, na cidade de Kórnik, na Polônia. Quando ainda criança, sua família mudou-se para Cracóvia, um dos mais ativos centros culturais da Polônia, e a poeta cresceria e permaneceria toda a sua vida nesta cidade. Sua vida literária e artística inicia-se durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto segue com sua educação nos anos subterrâneos da resistência cultural polonesa contra a ocupação nazista. Com o fim da guerra, passa a estudar sociologia, além de língua e literatura polonesas, na Universidade de Cracóvia.

Seu primeiro livro é proibido pela censura do regime comunista por não estar de acordo com os regulamentos da literatura socialista. Tenta conformar-se às regras para conseguir publicar, rejeitando mais tarde, a partir da década de 50, a ideologia político-estética socialista. Nega seus dois primeiros livros e “reinicia” sua obra com o volume Wołanie do Yeti (Chamando Yeti), de 1957. Em 1962, chama a atenção da comunidade poética polonesa com o pequeno volume Sól (Sal). Desde então, seu trabalho espraia-se por pouco mais de 10 volumes de poemas, o último tendo sido publicado em 2005, com o título Dwukropek, “Dois pontos”, como no sinal de pontuação (nota: desde então, a poeta publicou em 2009 o volume Tutaj, "Aqui"). Wislawa Szymborska era uma discreta poeta polonesa até tornar-se mundialmente conhecida em 1996, ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura.



Para contextualizarmos o trabalho de Wislawa Szymborska em seu momento histórico-poético, teríamos que compreender que este surge em um período confuso e de classificação ainda polêmica quando, no pós-guerra, muitos poetas modernistas ainda estavam vivos e produzindo suas maiores obras, e uma nova geração começava a formar-se, alguns buscando ser ainda "altos modernistas", outros seguindo tendências menos conhecidas dos movimentos de vanguarda e retaguarda do início do século XX. Wislawa Szymborska é contemporânea de poetas como João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Frank O´Hara, Robert Creeley e Ingeborg Bachmann, que retomam o trabalho literário dos primeiros modernistas. Ao mesmo tempo, é contemporânea de poetas experimentais como Henri Chopin e Bob Cobbing, mostrando a pluralidade poética do pós-guerra como algo muito mais complexo do que nossa tentativa de abarcá-la sob a sombrinha do conceito de "pós-modernismo".

Talvez seja uma das últimas representantes de algumas das tendências do que geralmente chamamos, no singular, de Alto Modernismo. Com um humor muitas vezes auto-depreciativo, a ironia é uma de suas ferramentas favoritas. Há um texto interessante de W.H. Auden em que ele discute traduções do trabalho de Konstantínos Kaváfis para o inglês, comentando o módulo de pensamento do poeta grego que, segundo Auden, permitia reconhecermos um poema de Kaváfis em qualquer língua, não por um estilo específico do que nós hoje chamaríamos de materialidade sígnica de sua linguagem poética, mas por certo tom e forma de pensamento que tornavam seus poemas únicos e ao mesmo tempo compreensíveis em outras culturas e línguas. Sem conhecer polonês, torna-se impossível julgar a materialidade sígnica da poesia de Wislawa Szymborska. Pergunto-me, porém, se poderíamos falar de seu trabalho em termos parecidos aos de Auden sobre Kaváfis. Tendo lido traduções para poemas da polonesa em português, inglês, espanhol e alemão, e reconhecendo sempre este "módulo de pensamento", este "tom" inconfundível, poderia dizer que Szymborska é um belíssimo exemplo do "verso livre" que depende de um talento poético invulgar em seus mais sutis artifícios.


Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 3 de novembro de 2008

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PEQUENA ANTOLOGIA DE POEMAS DE WISLAWA SZYMBORSKA


A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.


(tradução de Regina Przybycien)

§

Gente na ponte

Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:

Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.

A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.

É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.

Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.

Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:

Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.

Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.

(tradução de Regina Przybycien)

§

Abaixo, poemas em tradução de Júlio Sousa Gomes

Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

§§§

Estação

Foi com pontualidade
que não cheguei à cidade de N.

Uma carta por enviar
te avisara.

Conseguiste não chegar
à hora prevista.

O comboio parou na linha n. 3.
Saiu imensa gente.

Seguiu na multidão para a saída
a minha ausência.

Tomou apressadamente o meu lugar
um grupo de mulheres
em toda aquela pressa.

Correu para uma delas
alguém que desconheço,
mas que ela reconheceu
de imediato.

Trocaram então ambos
um beijo que não nosso
durante o qual levou sumiço
a mala que não minha.

A estação da cidade de N.
passou sem problemas o exame
de existência objetiva.

Permaneceu no seu lugar o todo,
moveram-se os detalhes
pelos carris previstos.

Chegou mesmo a efectuar-se
o combinado encontro.

Fora do alcance
da nossa presença.

No paraíso perdido
da verossimilhança.

Noutro lugar.
Noutro lugar.
Como elas vibram, estas palavritas.


§§§


Na torre de Babel

Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças.
— Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões.
— Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar.
— É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza.
— Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo.
— Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
E é tudo? — De ninguém como de ti.
Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui.
— Tens umas mãos tão bonitas.
É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas.
— Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.


§§§


Alguns gostam de poesia

Alguns —
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escolas onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil, haverá duas.

Gostam —
mas gosta-se também de sopa de espaguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia —
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.

§§§

Gente na ponte

Estranho planeta e nele estranha gente.
Cedem ao tempo e não o querem reconhecer.
Têm maneiras de mostrar como se opõem.
Fazem desenhos como o que se segue:

Nada de especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma de suas margens.
Uma canoa que com dificuldade avança na corrente.
Sobre a água uma ponte e gente nessa ponte.
Gente que nitidamente acelera o passo
porque de uma nuvem negra
a chuva desatou forte a fustigar.

O que há nisto de especial é que isto é tudo.
A nuvem não muda de forma nem de cor.
A chuva não cai mais forte nem se interrompe.
A canoa navega imobilizada.
Essa gente na ponte vai correndo
no exacto lugar de há um bocado.

É difícil deixar de comentar:
Não é de modo algum um desenho inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixaram de contar com os seus direitos.
Privaram-no de influência sobre os acontecimentos.
Menosprezam-no e insultaram-no.

Por conta de um rebelde,
um tal de Hiroshige Utagawy
(ser este que de resto
já há muito e como devia ser se foi)
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez se trate só de uma partida insignificante,
um cisco apenas à escala das galáxias,
pelo sim, contudo, e pelo não
acrescentemos o que segue:

Revela-se aqui ser de bom-tom
apreciar devidamente este desenho,
fascinar-se a gente com ele e comover-se há gerações.

Há aqueles para os quais nem isto basta.
Chegam até a ouvir a chuva murmurar,
sentem-lhe o frio nas costas e pescoços,
olham a gente e a ponte
como se também se vissem nela,
no mesmo correr para o que nunca é mais que isso,
uma estrada sem fim, a vencer pelos séculos,
e crêem na sua desfaçatez
que é isso na realidade o que acontece.



Traduções de Júlio Sousa Gomes, publicadas no livro Paisagem com Grão de Areia, Lisboa: Relógio d’água, 1996.

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