sábado, 29 de dezembro de 2012

"Hugh MacDiarmid: A Portrait by Margaret Tait" (1964).


Hugh MacDiarmid: A Portrait, by Margaret Tait (1964). 

Hugh MacDiarmid (1892 – 1978) foi um dos grandes modernistas escoceses. Seu longo poema A Drunk Man Looks at the Thistle (1926) seria provavelmente considerado um dos grandes textos modernistas, mas, escrito em scots, não encontrou a mesma recepção, por bloqueio linguístico, das grandes obras em inglês, como Tender ButtonsThe Waste Land ou The Cantos. Ao mesmo tempo, como nos acostumamos a pensar o modernismo anglófono como negócio dos americanos, MacDiarmid acabou obscurecido e com a mesma recepção parca de outros modernistas, como os britânicos David Jones (1895 – 1974) e Basil Bunting (1900 – 1985). Precisamos descobri-los.

Hugh MacDiarmid (1892 - 1974)

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Excerto de vídeo da minha performance no Museo del Chopo, na Cidade do México.


Vocalizando a peça "Entrañas de las Soledades". 
Museo del Chopo, Cidade do México, setembro de 2012. 

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 A peça foi composta por colagem de palavras ou fragmentos exclusivamente tirados do poema "Soledades" (1613), de Gôngora, e criada a convite do Festival "Poetas del Mundo en Córdoba" para as celebrações dos 450 anos de seu nascimento, na sua cidade natal, Córdoba, Espanha. Paisagem sonora composta por meu colaborador alemão Uli Buder, mais conhecido como Akia.

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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Álbum do ano, seguido das 10 canções favoritas em 2012

Dez canções ouvidas obsessivamente em 2012, lançadas este ano. A lista não é hierárquica. Começo, no entanto, com aquele que me parece o grande lançamento do ano.

Álbum do ano: Godspeed You! Black Emperor - Allelujah! Don't Bend! Ascend! (2012)

   

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 10 canções favoritas em 2012

Grimes - "Oblivion"


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 Planningtorock - "Patriarchy (Over and Out)"
  
   

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 Keaton Henson - "You Don´t Know How Lucky You Are"

   

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 Frank Ocean - "Lost"

 

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 Beach House - "Myth"
  
   

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 Trust - "Heaven"

   

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 Anika & Obi Blanche - "Fitter Happier" (Radiohead cover)

   

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 The XX - "Missing"

   


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 Bradien + Eduard Escoffet - "Terra"

   

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 A última é uma canção antiga que eu ouvi muito em 2012: 
Kate Macgarrigle - "Go leave"

   

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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Uma mensagem de Natal, de Rasputin

Autorretrato como Rasputin. Feliz Natal.

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domingo, 23 de dezembro de 2012

Meus 2 filmes favoritos em 2012

Emmanuelle Riva


Na maioria das listas de fim de ano que li nos últimos dias, todos os autores começam por desculpar-se por fazer uma lista de fim de ano. O que posso dizer aqui, pretendendo fazer o mesmo pelos próximos dias, é que minhas listas de filmes, álbuns, concertos e livros são apenas recomendações a partir do que me emocionou ou entusiasmou nos últimos doze mezes. Não sei se são "os melhores". 

Começo com uma lista bastante curta, resumindo-se aos dois filmes que mais me entusiasmaram em 2012. São, devo avisar, dois dos filmes que vi mais recentemente, e o impacto deles ainda gira na minha cabeça, trazendo-os à frente. Haveria certamente outros que mereceriam estar aqui. Os dois filmes são francófonos, e foram feitos por diretores que sigo há muito tempo. São, também, muito diferentes e com abordagens estéticas quase opostas em seus estilos. :

 
Amour (2012), Michael Haneke

Sigo o trabalho de Michael Haneke desde que assisti, em 1998, ao seu filme Funny Games (1997), a versão austríaca. O filme fez com que eu detestasse o diretor por muito tempo, pela náusea que me causou e à época não compreendi. Quando mais tarde assisti a Code Inconnu (2000), em 2001, passei a perceber melhor seu projeto e admirá-lo por sua intransigência. Mas nada me preparou para o impacto violento, marcante e detonador de est-é-tica que seria causado em mim por seu filme La Pianiste (A Professora de Piano, 2001), baseado no romance de Elfriede Jelinek. Fui ao cinema inadvertidamente, sem saber de quem era o filme. Saí da sessão entusiasmadamente em frangalhos. Voltei ao cinema mais 10 vezes para ver o filme antes que saísse de cartaz. Sim, vi o filme 11 vezes no cinema, e outras vezes mais em vídeo. É, para mim, uma das maiores obras est-é-ticas do século XXI. Teve um impacto fortíssimo sobre meu próprio trabalho, pois nutria ainda mais minha obsessão pelo corporal, pelos impactos políticos da separação tão ocidental entre corpo e mente, matéria e espírito, dicotomias que, já àquela época, havia tomado para mim com a missão de destruí-las, ou, hoje mais humilde, ao menos questioná-las.

Amour é um filme que nos traz Haneke em sua forma mais generosa e delicada, apesar de não diminuir a violência com que enxerga a existência. O único outro filme em que demonstra tal delicadeza brutal é  Les Temps du Loup (2003), no qual também permite ao menos a visão em relance de alguma forma de esperança, ou, quem sabe, redenção. De, e só consigo expressar em inglês, certa kindness. A soteriologia não é exatamente seu forte. As performances em Amour são brilhantes, como sempre em seus filmes por escolher tão bem com quais atores trabalha, e para mim foi emocionante ver Emmanuelle Riva tão em boa forma. Amo-a desde Hiroshima Mon Amour (1955), de Alain Resnais (outro filme importantíssimo para minha lírica), e sua interpretação como mãe senil em Trois Couleurs: Bleu (1993), de Krzysztof Kieślowski, já havia gerado em mim a figura / metonímia da amante esquecida = mãe senil em meu poema-em-série "Dedicatória dos joelhos", do livro a cadela sem Logos (2007):


recusa-se a tocar a
mãe desta expectativa
que desperdiça
tantas secreções
em seu sistema
de produtos
mensais emanuelle
riva em hiroshima 
mon amour
& bleu o esquecimento
da amante
ontem a esclerose
da mãe amanhã
azul a água
dissolução da
memória ah! a
memória deixe-a
à mercê da
manhã
no entanto
sabe que só
a expectativa
fertiliza
a perda a
predileção

in a cadela sem Logos (2007).

A quem ainda não assistiu a Amour, de Haneke, aqui minha recomendação entusiasmada.

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Holy Motors (2012), Leos Carax


O primeiro filme de Leos Carax a que assisti foi Les Amants du Pont-Neuf (1991), com o mesmo gênio, Denis Lavant, deste filme, Holy Motors. O filme de 1991 tem algumas das cenas mais marcantes da vida de minhas retinas nada fatigadas, como a dos fogos de artifício e a dança das personagens de Lavant e Binoche na ponte, a cena da queima dos cartazes, e outros fragmentos de um discurso amoroso. Além deste, conheço apenas Boy Meets Girl, de 1984. Não posso dizer que sigo seu trabalho como o de Haneke, mas foi um artista importante na minha formação.

Holy Motors é muito diferente da abordagem hiper-realista de Haneke, mas tão genial quanto este. É crítica e homenagem ao cinema (em um filme tão alegórico, não pode ser coincidência que a personagem de Lavant chame-se Monsieur Oscar), exposição de nossa espetacularização da experiência, atualização da estética dos tableaux vivants, e algumas de suas cenas, como a do cemitério, nasceram clássicas. Denis Lavant é hoje, possivelmente, um dos melhores e mais completos atores em atividade.




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ADENDO:

Recomendo, pensando no cinema lusófono, o filme de Miguel Gomes, Tabu (2012).

 
Tabu (2012), Miguel Gomes.


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sábado, 22 de dezembro de 2012

Há 34 anos, no dia 22 de dezembro de 1978, Bernadette Mayer escrevia seu longo e belo "Midwinter Day"



Publicado pela primeira vez em 1982, Midwinter Day é um longo poema em 6 partes, escrito por Bernadette Mayer no dia 22 de dezembro de 1978, em Lenox, Massachusetts (EUA), onde vivia à época e onde escreveu alguns de seus mais belos poemas, como "Eve of Easter", que já mostrei aqui (leia minhas traduções para os poemas "Eve of Easter" e "The port"). O poema é a crônica de suas experiências naquele dia, e me parece um verdadeiro tour de force. Abaixo, um excerto.


"I write this love as all transition
As if I'm in instinctual flight,
                                    a small lady bug
With only two black dots on its back
Climbs like a blind turtle on my pen
And begins to drink ink in the light
                                             of tradition
We're allowed to crowd love in
Like a significant myth
                              resting still on paper
I remember being bitten by a spider
It was like feeling what they call
                                          the life of the mind
Stinging my thigh like Dante
                                     this guilty beetle
Is a frightening thing
When it shows its wings
And leaps like the story of a woman who
                                                     once in this house
Said the world was like a madhouse
                                              cold winds blowing
And life looks like some malignant disease,
Viewed from the heights of reason
Which I don't believe in
                              I know the place
Taken by tradition is like superstition
And even what they call the
Literary leaves less for love
                                    I know
The world is straight ice
I know backwards the grief of life like chance
                                                          if I can say that
I can say easily I know you
                                    like the progression
From memory to what they call freedom
Or reason
             though it's not reason at all
It's an ideal like anarchism though it's not an ideal
It's a kind of time that has flown away from causes
Or gotten loose from them, pried loose
Or used them up, gotten away
                                       no one knows why
Nothing happens
There is no reason, there's no dream
                                               it's not inherited
Like peace but it's not peace
                                     there's no beginning
Like religion but it is not God
It's more like middle age or humor
Without elucidation
                         like greeting-card verse
This love is a recognized occasion
I know you like I know my times
As if I were God and gave you birth
                                               if I can say that
I can say I am Ra who drew from himself
To give birth to Geb and Nut, Isis and Osiris
Though it isn't decorous today to say this
                                                     instead I say
You are the resource for my sense of decorum
Knowing you as Ra knew the great of magic,
His imaginary wife,
                         and without recourse to love
Men and women are like tears
                                       I would lose my memory,
I would sleep twelve hours, I would wake up
And get into my boat with my scribe,
I would study the twelve hours of the day
Spending an hour in each
                                 I would have a secret name
I would rush upon the guilty without pity
Till the goddess of my eye in her vengeance
Overwhelmed my own rage
                                    as you and I take turns
In love's anger like the royal children
Born every morning to die that night
                                                I know you speak
And are as suddenly forgiven,
It's the consequence of love' having no cause
Then we wonder what we can say
                                            I can say
I turn formally to love to spend the day,
To you to form the night as what I know,
An image of love allows what I can't say,
Sun's lost in the window and love is below
Love is the same and does not keep that name
I keep that name and I am not the same
A shadow of ice exchanges the color of light,
Love's figure to begin the absent night."

Bernadette Mayer, Midwinter Day (1982).


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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Algumas coisas que aconteceram no dia 20 de dezembro de 2012

Algumas coisas que aconteceram no dia 
20 de dezembro de 2012.

1- Friederike Mayröcker, para muitos a maior poeta viva da língua alemã, completou 88 anos.

Friederike Mayröcker


Não sei se foi um dia feliz, já que ela vive só desde que o amor de sua vida, o poeta Ernst Jandl, morreu no ano 2000. Mas eu espero que tenha sido um dia feliz, com alguns amigos ao seu redor. Eu amo o trabalho dela e espero poder conhecê-la antes que um de nós parta.


Às vezes por quaisquer movimentos
acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja no verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

Manchmal bei irgendwelchen zufälligen 
bewegungen 
streift meine Hand deine Hand deinen Handrücken
oder mein Körper der in Kleidern steckt lehnt fast ohne es zu wissen
einen Augenblick gegen deinen Körper in Kleidern
diese kleinsten beinahe pflanzlichen Bewegungen
dein abgewinkelter Blick und dein Auge absichtlich ins Leere
wandernd
deine im Ansatz noch unterbrochene Frage wohin fährst du im Sommer
was liest du gerade
gehen mir mitten durchs Herz
und durch die Kehle hindurch wie ein süszes Messer
und ich trockne aus wie ein Brunnen in einem heiszen Sommer


§

2 - Eu tomei café da manhã com meu amigo Black Cracker, e planejamos algumas coisas para 2013, como uma leitura conjunta em fevereiro e colaborações sonoras.



Black Cracker

§

3 - Por causa do auê sobre o calendário maia, eu fui pesquisar a poesia deste povo e descobri o Livro dos Cantares de Dzitbalché, atribuído a um poeta chamado Ah Bam. Como escrevi na Modo, "Ah Bam é o nome do poeta a quem são atribuídos os Cantares de Dzitbalché, livro descoberto na Vila de Dzitbalché em 1942, e pertencente à cultura maia da região de Puuc e mais especificamente do cacicado de Ah Canul, jurisdição maia que floresceu nos séculos XV e XVI. O próprio livro refere-se ao ano de 1440, e acredita-se que este fora o ano de sua composição. Foi publicado pela primeira vez em 1965, por Barrera Vásquez (1900 - 1980). É a maior compilação de poemas líricos dos maias."

Com base nas traduções de John Curl e do próprio Barrera Vásquez, tentei uma interpretação do pequenino "Bin in tz'uutz' a chi", ou "Eu beijarei tua boca". Os tradutores seguem caminhos distintos. John Curl não respeita a repetição no último verso, "Y an y an a u ahal", que Barrera Vásquez traduziu com o imperativo do verbo "ter". Imagino que Curl quisesse manter algo da métrica. O que Curl traduziu como "shimmering beauty" aparece como "belleza blanca" em Vásquez. Imagino que a cor aqui seja apresentada como efeito físico de percepção da luz, permitindo a John Curl a escolha de "shimmering". Fiz minhas opções a partir das duas traduções. Traduções para o inglês de poemas mais longos, feitas por John Curl, podem ser lidas no link logo após os poemas.


"Eu beijarei tua boca"

Eu beijarei a tua boca
por entre a milpa.
Beleza que cega,
tens, tens que acordar.

:

"Bin in tz'uutz' a chi"

Bin in tz'uutz' a chi
Tut yam x cohl
X ciichpam zac
Y an y an a u ahal

:

"I will kiss your mouth"

I will kiss your mouth
between the plants of the milpa.
Shimmering beauty,
you have to hurry.

(tradução de John Curl)

:

"Besaré tu boca"

Besaré tu boca
entre las plantas de la milpa.
Belleza blanca,
tienes, tienes que despertar.

(tradução de Barrera Vásquez)

/

LEIA OUTRAS TRADUÇÕES PARA O INGLÊS, POR JOHN CURL.

§

4 - Eu jantei com aquele que tenho a sorte de chamar de meu melhor amigo, o sr. Jonas Lieder. Reposto aqui um poema que escrevi e dediquei a ele.

Jonas Lieder


Fazendo reservas para a pança da baleia
ou Poema para Jonas

                    (a Jonas Lieder)

Amontoar escombros
sobre escombros
e então dispersá-los
sob meus saltos altos.
Imputando talvez
aos gregos e às novelas
a culpa por este meu gosto
pelo glamour das tragédias,
esta queda literal,
como quem espera
desenovelar a trama
da intriga e trazer o último
ato à nossa peça.
A ansiedade legítima
do último episódio.
Esqueci-me, querido,
de assinar o contrato
para o papel de protagonista
nesta comédia, sem chance
agora de um final
feliz em tecnicolor,
se nem catas troféus
ou mísero Oscar
de efeitos especiais.
Como figurantes
em nossos próprios épicos,
sabemos que a morte
chega
a todas as personagens.
Só exijo ser tão provável
quanto necessário,
registrar as últimas palavras
de qualquer um antes
do grande sono,
mesmo se de um segundo,
ou depois dos hematomas
de prazeres
desconhecidos com desconhecidos.
O que é causalidade
senão beber água
quando com sede
ou a confusão de pronomes
diante do espelho?
Mostro
à mosca
a saída
do Chianti.
Lição de contentamento
no contexto alheio,
calma no próprio carma,
estou chucro e feliz
como se respondesse
em chinês
a perguntas em islandês, não
mais esta mula
colérica lambendo
teus olhos de Cassandra,
de peste mista.
Desconheço alienígena
que se aninhe
em meu peito,
hóspede
ou hospedeiro.
E se evadíssemos,
Jonas? As entranhas
desta baleia
entediam-me.
Ou, que tal se roubássemos
automóveis e cruzando fronteiras
e alfândegas
do Oriente ao Ocidente
nos tornássemos
metecos
em qualquer centro?
Não há, por fim, elixir
contra exílios,
a não ser nos delírios
de cidadania, esta coisa
que ao fim sabemos
que não existe
a quem a Eros se exibe.

in Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012)

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5 - Meus amigos do duo Easter lançaram agora há pouco seu segundo disco, intitulado Split And Fly Towards, e o concerto foi muito bom. O duo é formado pela poeta norueguesa Stine Omar Midtsæter e o músico alemão Max Boss.



Easter - "Alien Babies"

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6 - Já passa da meia-noite em Berlim e em Palenque. Por enquanto, ainda estamos aqui.

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"Texto em que o poeta começa a sentir, em meio à escrita, os sintomas da Síndrome de Estocolmo" - poema novinho em boca




Texto em que o poeta começa a sentir, em meio à escrita, os sintomas da Síndrome de Estocolmo

Quem lucra com a crise
do verso? Que governo
central? Quem compra
a lavoura e a queima
para evitar o excesso,
temido tão-só por quem
vive de certo prestígio
que vem da escassez?
Qual a moeda única
que se põe em perigo
por tal inflação? Por que,
se tantos forem poetas,
claudicaria a prática? Se
muitos são escolhidos,
por que tão poucos são
chamados? Se há fome,
língua, quem monitora
o monopólio da seca?
Investe em mercado
central quando cada
aldeia semeia e ara?
E se o poeta federal
só tira ouro do nariz
em meio a povoados
com população menor
a 1.000.000 de almas?
E se o poeta estadual
não produz o quitute
local? De quem é o
pesadelo de prejuízo
por superávit? Tanto
tempo nesta penúria
de cela, começa até
a parecer bonitinho
o que se cria inimigo.
Quão bela e sublime
aquela calça da Gucci.
Como gastar em Gulag
se se os pode, tão fácil,
silenciar em discursos
da auto-comiseração
por sua insignificância
alardeada? Alarmes,
se eles calam-se a si
quando estão em OFF
os holofotes? Se o povo
já está entre os lupinos
quando eles adentram
a vila gritando "Lobo!"?
Stálin era um estúpido,
bastava propagandear
tal mallarmaica crise,
sem estes marxismos
hoje tão macaqueados.
Ora, até eu trabalho, tu
trabalhas, ele trabalha,
nós trabalhamos muito,
mesmo vós trabalhais,
e eles não trabalham?
Que se adaptem, aptem,
mascates, à mercancia!
Triste Poesia! Ó quão
dessemelhante estás!
Vão catar Cocteauinho!
Para que poetas em
tempo de abundância,
se tantos romancistas
já entretêm muito bem
as classes dominantes?
Se a Folha já disse
que a poesia em crise,
vão ciciar suas elipses
por outro pantanal,
que isso aqui é urbe
que ama o insalubre
apimentado de Pré-Sal.
Poetas, hoje? Ao Xingú.
Que emigrem ad libitum.

Ricardo Domeneck, estocolmada, 19 de dezembro de 2012, a tempo do fim do mundo.

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Minha mãe não lê a sorte, ora, porque isso é coisa do diabo.

A mãe de Victor Heringer lê a sorte no açúcar, se for ficção a realidade. Minha mãe não lê a sorte, ora, porque isso é coisa do diabo. Tanto que, em minha casa, só se referia àquele-que-não-deve-ser-mencionado como "o Inimigo". Somos povo prascóvio. Cuidem-se os que têm sonhos. Eu não jogo na Telesena.

 

Victor Heringer nasceu em 1988, no Rio de Janeiro, onde ainda vive. O poeta é autor de duas plaquetes de poesia, Quando você foi árvore (2010) e canção do sumidouro (2010), disponíveis em seu site: http://automatografo.org. Seu primeiro livro foi publicado em 2011, intitulado Automatógrafo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011), seguido do ótimo romance Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012).



No momento, o poeta está pesquisando imagens em domínio público para um livro de memórias ao estilo do Itinerário de Pasárgada, mas de um poeta fictício. 



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domingo, 16 de dezembro de 2012

Traduzindo Lorine Niedecker: uma homenagem

Às vezes, quando penso no famoso verso de Allen Ginsberg, "I saw the best minds of my generation destroyed by madness starving hysterical naked", eu me pergunto se em alguma outra geração isso fora diferente, ou se algumas gerações não sofreram coisas ainda piores. Penso na elegia de Roman Jakobson para Vladimir Maiakóvski em A Geração que Desperdiçou seus Poetas (1930), ou nos poetas que o próprio Jakobson desperdiçou em seu lamento, talvez porque estivessem vivos, talvez porque não estivessem, em sua opinião, à altura de Khlébnikov e Maiakóvski, mas que estavam também sendo desperdiçados na fome, exílio, perda, detrimento, como os grandes Mandelshtam, Tsvetáieva (aquela rainha que, como poucos, conjugou violência e controle), Pasternak e Akhmátova. Mas eu com frequência penso em Lorine Niedecker, poeta maravilhosa que passou a vida ganhando seu pão, às vezes, limpando e fazendo faxina em escolas onde deveria estar sendo celebrada e ensinada.




Lorine Niedecker (1903 - 1970)
Especial para a Modo de Usar & Co., publicado a 2 de setembro de 2009.

Lorine Niedecker nasceu em uma ilha, a Black Hawk Island, no estado americano de Wisconsin, uma região rural razoavelmente isolada. Passaria toda a sua vida ali. Seus primeiros poemas seriam publicados, por intervenção de Louis Zukofsky, em revistas como a importante Poetry. Sua estréia em livro viria apenas em 1946, quando a poeta já tinha 43 anos, com o título New Goose. A próxima coletânea apareceria somente quinze anos mais tarde, intitulada My Friend Tree (1961), sendo seguida por North Central (1968), T&G: The Collected Poems 1936-1966 (1969) e os livros de publicação póstuma Blue Chicory (1976) e Harpsichord & Salt Fish (1991).

§

Poema

O varal está posto
mas totem nenhum diferencia a tribo Niedecker
das outras; a cada sete dias vão às águas:
veneram o sol; temem a chuva e, dos vizinhos, os olhos;
erguem aos céus as mãos desde o solo
e penduram ou despencam pela brancura de seu todo.

(tradução de Ricardo Domeneck)

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Poem
Lorine Niedecker


The clothesline post is set

yet no totem-carvings distinguish the Niedecker tribe
from the rest; every seventh day they wash:
worship sun; fear rain, their neighbors' eyes;
raise their hands from ground to sky,
and hang or fall by the whiteness of their all.


§

Lorine Niedecker foi contemporânea de poetas como Henriqueta Lisboa, para citar um exemplo de autora brasileira que necessitamos redescobrir, especialmente seus livros das décadas de 60 e 70, assim como seria tentador traçar alguns paralelos biográficos e estilísticos entre Niedecker e Orides Fontela (1940 - 1998).

Isolada das rodas literárias e poéticas de cidades como Nova Iorque ou San Francisco, a poeta passaria a vida lutando contra a pobreza e pela publicação de seus poemas. Recebendo atenção para seu trabalho poético apenas no fim da vida, quando alguns poetas mais jovens a redescobrem (como Cid Corman, que viria a editar um de seus livros), a poeta escreveu a maior parte de sua obra sem encontrar possibilidade de publicação, ganhando a vida durante anos em um hospital, limpando o chão e os sanitários, enquanto escrevia alguns dos poemas mais bonitos da primeira metade do século poético americano.

Lorine Niedecker é frequentemente comparada a Emily Dickinson, por certos paralelos entre suas vidas - o isolamento, a relação com um "mentor", Higginson no caso de Dickinson, Zukofsky no caso de Niedecker, o jogo poético com nursery rhymes (ou o que nós chamaríamos de "cantigas de roda") e o hinário protestante. Alguns críticos têm, no entanto, questionado esta comparação, como Gloria Frym no ensaio "Lorine Niedecker’s Plain (Language)".

A poeta é geralmente associada a um grupo específico de poetas da década de 30 americana que, por causa de uma antologia organizada para um número da conhecida revista e já mencionada Poetry, ficaria conhecido como o grupo dos Objectivists. Louis Zukofsky - o organizador da antologia do grupo, sob aconselhamento de Ezra Pound (que já havia praticamente inventado dois grupos para a revista, os Imagists e os Vorticists), George Oppen, Carl Rakosi e Charles Reznikoff são os mais conhecidos. Niedecker leria este número da revista, de fevereiro de 1931, e escreveria uma carta para Louis Zukofsky, iniciando uma das correspondências mais frutíferas daquelas décadas.

§

Quando o êxtase é inoportuno

Finja uma grande calma;
todo enlevo logo termina.
Cante: quem sabe -
se fim ou início do vôo
para a gaivota em pouso?

Coração, aquiete-se.
Diga: dinheiro há, mas com ferrugem;
diga: luar não é propício para fugas.
É a cor no baixo firmamento
espargindo cores largas
ou, em minha gravata, o vento.

Saiba em espanto como
se toma a própria loucura
nas mãos
e a guarda.

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

When ecstasy is inconvenient
Lorine Niedecker


Feign a great calm;
all gay transport soon ends.
Chant: who knows—
flight's end or flight's beginning
for the resting gull?


Heart, be still.
Say there is money but it rusted;
say the time of moon is not right for escape.
It's the color in the lower sky
too broadly suffused,
or the wind in my tie.



Know amazedly how
often one takes his madness
into his own hands
and keeps it.


§

No Brasil, a discussão e tradução de poetas como Lorine Niedecker ou outros Objectivists, em especial George Oppen e Charles Reznikoff, poderiam iluminar vários aspectos de alguns dos debates da poesia brasileira contemporânea, como o questionamento sobre a melhor aplicação dos parâmetros de qualidade baseados em concisão e objetividade; a conjunção entre ética e estética e a implicação política do trabalho formal de todo poeta; assim como o trabalho destes poetas poderia ter efeitos frutíferos no país que viu surgir, a partir da década de 90, um grande interesse por poetas como Robert Creeley e os autores reunidos na revista L=A=N=G=U=A=G=E (leia todos os números da revista AAQQUUII).

Nos Estados Unidos, os últimos anos têm presenciado um interesse crescente pela obra de Lorine Niedecker e seu trabalho foi reeditado em 2002, com o título Lorine Niedecker: Collected Works.


--- Ricardo Domeneck

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sábado, 15 de dezembro de 2012

Angélica Freitas recebe prêmio da APCA por "Um útero é do tamanho de um punho": celebração com poemas

O segundo livro de Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho (São Paulo: Cosac Naify, 2012) é eleito o melhor livro de poesia de 2012 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), e, quando um livro como este ganha, todos nós ganhamos.

Poemas de Um útero é do tamanho de um punho (São Paulo: Cosac Naify, 2012)


da série "uma mulher limpa"


porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

§

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

§

da série "mulher de"

mulher de vermelho

o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho
sou euzinho o que ela quer
só pode ser euzinho
o que mais podia ser

§

mulher de respeito

diz-me com quem te deitas
angélica freitas

§

querida angélica

querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magirus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar







sábado, 8 de dezembro de 2012

Programa da Rede Minas sobre o Festival Zeitkunst (vídeo completo)



"25/11/2012 - O Harmonia exibe cobertura do Festival Internacional de Música e Literatura Contemporânea Zeitkunst, que realizou sua 1ª edição no Brasil. O evento, que homenageou o compositor John Cage, passou por três capitais brasileiras: Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba."

Programa da Rede Minas sobre o Festival Zeitkunst, com entrevistas de Luiz Gustavo Carvalho, Johannes CS Frank, Caspar Frantz, Julian Arp, Die. Puntigam e minha. Conversas sobre o trabalho de John Cage, a relação entre música e poesia, e sobre o Festival.

O Zeitkunst 2012, que homenageou John Cage em seu centenário, contou com a participação dos poetas Johannes CS Frank (Inglaterra), Max Czollek (Alemanha), Maya Kuperman (Israel); dos músicos: Luiz Gustavo Carvalho (Brasil, piano e piano preparado), Caspar Frantz (piano preparado) e Julian Arp (violoncelo); e do artista visual Die. Puntigam. A direção foi de Lilly Jäckl.




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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Tradução para um poema de Horst Bienek (1930 - 1990)

Descobri o trabalho de Horst Bienek em uma gigantesca antologia que recolhia a poesia germânica desde os seus primórdios. Este poema, que traduzi para o segundo número impresso da Modo de Usar & Co., tornou-se um dos meus favoritos. Em janeiro de 2011, preparei a postagem abaixo para a franquia eletrônica da revista. Este poema me veio à mente hoje, reli-o e quis compartilhar sua tradução também aqui.





Horst Bienek foi um poeta e romancista alemão, nascido em 1930 na cidade de Gleiwitz, na região da Silésia, quando esta ainda pertencia à Alemanha. Com o fim da Segunda Guerra, grande parte da região é incorporada à Polônia, a língua alemã é proibida e a maioria dos alemães é expulsa. Horst Bienek tinha 16 anos quando a família fixa residência na Alemanha Oriental. Em 1951, Bienek conhece o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht e é convidado a lecionar no teatro Berliner Ensemble, mas, neste mesmo ano, é preso pela Stasi (a Polícia Secreta da Alemanha Oriental) sob acusação de agitação anti-soviética e é condenado a 25 anos de prisão. O poeta tinha 21 anos. É deportado para o campo de trabalhos forçados de Vorkuta, em uma região da Rússia que fica ao norte do Polo Norte, parte do que Alexander Soljenítsin viria a chamar de "Arquipélago Gulag". Quatro anos depois recebe anistia e emigra para a Alemanha Ocidental, onde passa a trabalhar como jornalista para a rádio estatal do estado alemão de Hesse, coeditor do jornal blätter + bilder, e ainda lector da editora Deutsche Taschenbuch Verlag (Editora Alemã de Livros de Bolso) e diretor do setor literário da Academia Bávara de Belas Artes em Munique. Horst Bienek morreu em decorrência da AIDS em 1990, na capital bávara.

Sua estreia literária em livro foi com Traumbuch eines Gefangenen (1957), algo como "diário de sonhos de um prisioneiro", ao qual se seguiram peças de teatro, roteiros cinematográficos, crítica, poemas e romances. Em 1970, escreveu e dirigiu o filme Die Zelle.

O poema apresentado e traduzido abaixo chama-se "Die Zeit danach", algo como a época seguinte, na mesma construção sintática que usaríamos para o filme de catástrofe nuclear "O Dia Seguinte". O cenário apresentado pelo poema é justamente o de uma catástrofe histórica, escrito por este poeta que sobreviveu à brutalidade da Segunda Guerra e às brutalidades do pós-guerra, nos campos de concentração do Gulag.

Horst Bienek foi contemporâneo de poetas e intelectuais germânicos como Hans Magnus Enzensberger, Heiner Müller, Thomas Bernhard e Ingeborg Bachmann que, tanto na Alemanha como na Áustria, herdaram de seus pais países em ruínas (a Alemanha estava arrasada) e moralmente em frangalhos. Acusar e ao mesmo tempo buscar redenção onde a maioria não a merecia representaram dilemas est-É-ticos gigantescos para esta geração de poetas. Bienek parece-me tê-los enfrentado com brilho, inteligência e delicadeza.


--- Ricardo Domeneck


§


POEMA DE HORST BIENEK
em tradução de Ricardo Domeneck, publicado originalmente
na segunda edição impressa da Modo de Usar & Co.

A época seguinte

I

Há uma época
........e a época seguinte
sobre qual época gostaríamos de conversar?

II

Quando o cervo pastou junto ao leão
quando amadureceu a maçã para aquele que adubara a macieira
quando àquele que pescou o peixe permitiu-se também comê-lo
era uma época
....................época paradisíaca
..........................sobre a qual nossos ouvidos
apreciavam o sermão

Quando nos apertamos de bruços em catres de madeira
quando a escuridão trancafiou nossos corpos em suor
quando a fome esmigalhou-nos os sonhos e o sono
era uma época
....................época tenebrosa
..........................que não desejávamos
aos nossos inimigos

Quando os vigias berravam no pátio para nossa contagem
quando cavamos da terra o carvão com ferramentas cegas
quando buscamos uma resposta nas petrificações negras
por que essa época
....................assim era
...........................sobre a qual preferiríamos
haver lido nos manuais escolares

Quando voltamos sem lembrança às cidades natais
quando – incógnitos – misturamo-nos entre os habitantes
quando arrombamos suas portas e deixamos voltar a desconfiança
era uma época
....................época dolorosa
...........................em que transbordamos
em nossa aflição

III

Nós estamos no caminho de uma época
para outra
..............................mas aonde nos encaminhamos
..............................não haveremos de chegar
..............................às vezes nossos joelhos partem-se
..............................e a chuva molha nossos rostos
nós cantamos
.............ninguém nos ouve
.............(pois o cansaço
.............cola-nos de suor os lábios)
nossos gestos são trémulos
.............ninguém os compreende
.............(pois o desespero
.............rebenta-nos os braços do tronco)
nós continuamos
no caminho que leva de uma época
...........................à época seguinte

IV

Por compaixão jogam-nos palavras no colo


:


Die Zeit danach: / I / Es gibt eine Zeit / und die Zeit danach / von welcher Zeit wollen wir reden? // II / Als das Reh neben dem Löwen weidete / als der Apfel reifte für den der den Apfelbaum düngte / als wer den Fisch fing ihn auch essen durfte / das war eine Zeit / paradiesische Zeit / von der wir gerne / predigen hörten. // Als wir zusammengedrängt lagen auf hölzernen Pritschen / als die Dunkelheit unsere schwitzenden Leiber einsperrte / als uns der Hunger den Schlaf und den Traum zerspellte / das war eine Zeit / finstere Zeit / die wir unseren Feinden / nicht wünschten // Als der Schrei des Wachmanns uns auf den Appellplatz jagte / als wir mit stumpfen Geräaten die Kohle aus der Erde gruben / als wir in den schwarzen Versteinerungen eine Antwort suchten / warum diese Zeit / so war / von der wir lieber / in den Lesebüchern gelesen hätten // Als wir heimkehrten in die Städte ohne Erinnerung / als – unerkannt – wir uns unter ihre Bewohner mischten / als wir einbrachen in ihre Häuser und den Argwohn zurückliessen / das war eine Zeit / schmerzliche Zeit / die wir unserer Trauer / zuschütteten // III // Wir sind auf den Weg von der einen Zeit / in die andere / doch wohin wir auch gehen / wir kommen nicht an / machmal brechen wir in die Knie / und der Regen nässt unsre Gesichter / wir singen / man hört uns nicht / (denn die Müdigkeit / schweisst uns die Lippen zusammen) / unsere Gesten sind zaghaft / man begreift sie nicht / (denn die Verzweiflung / schlägt uns die Arme vom Rumpf) / wir gehen weiter / auf dem Weg von der einen Zeit / ind die Zeit danach // IV // Mitleidig wirft man uns Wörter in den Schoss


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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

"Deixem-me recitar o que a História ensina" - Original & Deutsche Interpretation von Odile Kennel



Ontem à noite fizemos a última performance do Zeitkunst 2012, na Villa Elisabeth, aqui em Berlim. Posto aqui o poema que escrevi para a performance e que vocalizei com a peça "In a landscape" (1948), de John Cage, para a sua "Homenagem". Unten: Deutsche Interpretation von Odile Kennel.


Deixem-me recitar o que a História ensina

“Let me recite what History teaches”
Gertrude Stein

Nada, talvez. Não
se arde com a febre
alheia, só se aprende
com a faca e o fogo
na própria pele,
não contemplando a foto
da cicatriz
dum antepassado. Trágico
ou banal, tudo
parece fadado a repetir-se,
mesmo os discursos
sobre o sangue
que nos precede, nossa dívida
com seu derramamento.
Mas, mal há tempo
para justiçar os mortos
cumulativos, quiçá o sangue
se predestine, década
a década, a jorrar fora
de veias e artérias,
como se o chão invejasse,
por ser inanimado, os cinco
litros que insistimos
em manter selados,
(quase) herméticos
em nossos corpos. Fraturas
em esqueletos
de outros séculos? Fêmures,
úmeros de avós não
nos asseguram o aumento
da resiliência dos ossos,
não a curto prazo, os erros
de mães não nos valem
como cartilha.

Talvez Waterloo
ensinara algo a Napoleão,
mas certamente não
aos que ali morreram, a nós
são relatos tão próximos
quanto o das Termópilas,
e os soldados
em posição de descanso
em ambos os solos
ali estão, obedientes
ainda às ordens.
“Ilustríssimo senhor transeunte,
vem-se por meio desta requerer
que informe aos honrados
cidadãos de Esparta
que, por ocasião
da ressurreição dos mortos,
aqui estaremos, ainda
de uniforme, todavia prontos
para mutilar, pilhar e tolher.”

E no tempo começam
a distanciar-se
Canudos e Babi Jar,
Darfur e Bagdá
deitam-se tão longe
dos mapas do meu bairro.
Fronteiras unem, separam,
e nós, na fila de espera
entre passado e futuro,
nos confundimos,
sem passaportes,
como se as paredes
móveis de uma armadilha –
retrocedem, avançam,
não em velocidade
equilibrada e mal
as sabemos prestes
a esmagar-nos. Reprises
das quais esquecemos
invariavelmente os finais
ou os confundimos
com os começos de novos
episódios, ao advento
das represálias não sabemos
quais os crimes
originais, se somos o que vinga
ou o que incinera com ares
de uma mítica defesa legítima.

Toda morte
é uma queima de arquivos.
Aulas de História, mas não
da História. Esta, nada mais
que uma lista de revanches
infindáveis e não importa
se nossa brutalidade
é edênica ou endêmica,
se culpamos o ovo
ou o galo.

Com sorte, para nós o dénouement
funcionará como um desnudamento,
seguido de extinção, oxalá
sem muitos gritos.


Ricardo Domeneck, 2012.

:


Lasst mich vortragen, was Geschichte lehrt

                   Let me recite what History teaches
Gertrude Stein

Nichts, womöglich.
Man glüht nicht
von fremdem Fieber
man lernt nur
vom Messer und Feuer
an der eigenen Haut
nicht beim Betrachten
der Narben auf Fotos
von Vorfahren. Tragisch
oder banal, alles
scheint zur Wiederholung
bestimmt, sogar die Reden
übers Blut, das uns voranging
und unsere unbeglichene
Schuld an seinem Vergießen.
Wir haben keine Zeit
die angehäuften Toten
zu rächen, kann sein
Blut ist dazu bestimmt
Dekade um Dekade
aus Kapillaren
zu quellen, als würde
der unbelebte Boden
die fünf Liter uns neiden
die wir beharrlich
und (fast) hermetisch
in unserem Körper
verschlossen halten. Brüche
an Skeletten aus Großvaters
Zeiten? Oberschenkel-
Oberarmknochen
von Großmüttern
garantieren uns keine
größere Knochendichte, nicht
kurzfristig, die Irrtümer
der Mütter dienen
uns nicht als Fibeln.

Vielleicht hat Napoleon
aus Waterloo gelernt
doch sicher nicht die
die starben, und für uns
sind das Berichte
kaum näher als die Schlacht
bei den Thermopylen, Soldaten
in Ruhestellung bergen
beide Böden, sie gehorchen
noch immer Befehlen.
„Werter Wanderer,
hiermit bitten wir, die aufrechten
Bürger von Sparta
darüber in Kenntnis
zu setzen, dass wir
bei Auferstehung
der Toten bereit sein werden
zum Plündern, Verstümmeln, Verwüsten.“

Canudos und Babi Jar
rücken in die Ferne
Darfur und Bagdad liegen
außerhalb meines Stadtplans.
Grenzen vereinen, trennen
doch wir stehen Schlange
zwischen Vergangenheit
und Zukunft, kommen
durcheinander ohne Pass
als ob die beweglichen
Wände einer Falle –
sich auf dem Vormarsch
auf dem Rückzug
befinden, doch nicht
gleich schnell, wir ahnen
sie werden uns zermalmen. Reprisen
deren Ende wir grundsätzlich
vergessen oder
mit dem Anfang neuer
Episoden verwechseln.
In Erwartung von Repressalien
wissen wir nicht
was das Erste Verbrechen war
und ob wir Rächer sind
oder alles abfackeln
mit einem Ausdruck
mythischer Notwehr.

Jeder Tod
bedeutet Niederbrennen
von Archiven. Unterricht
in Geschichte, nicht
der Geschichte. Diese besteht
aus einer nie abreißenden Kette
von Vergeltungen, müßig
die Frage ob unsere Brutalität
edenisch oder endemisch ist
ob wir die Schuld beim Ei suchen
oder beim Hahn.

Mit etwas Glück besteht die Auflösung
für uns in Entblößung
und wir sterben aus, hoffentlich
ohne viel Geschrei.


(Deutsche Interpretation von Odile Kennel)
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domingo, 25 de novembro de 2012

Primeira noite do Zeitkunst 2012 em Berlim: textos que li



Ontem foi a primeira noite do Zeitkunst 2012 em Berlim, com um programa diferente do que apresentamos no Brasil. Com o título "The Human Voice", leram, além de mim, os poetas Björn Kuhligk (um dos poetas alemães mais respeitados da Geração 90 do país), Birgit Kreipe e a israelense Tal Nitzan. O Ensemble Meitar tocou composições de contemporâneos como Fabian Panisello, Toru Takemitsu, Hadas Pe'ery e Sivan Cohen Elias. Eu li 5 fragmentos do poema-em-série "Dedicatória dos joelhos", incluído a´a cadela sem Logos (2007). Hoje será o encerramento, com a "Homenagem a John Cage" que apresentamos no Brasil. Abaixo, os texto que li e as respectivas traduções de Odile Kennel para o alemão.


falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com “forgive
me the personality“

§

sprechen verlangt heute
die eigene Stimme
zu sperren der findige
Handel zwischen
Innen und Außen
setzt voraus
dass der Grund
zutage tritt die
Oberfläche tief
wie Geschichte
ist Wucht
die Zentrifugales
zeigt öffentlicher
Körper den
ich als Bühne
ausstelle Frucht
der Furcht
des Absenders
Inneres in der Ferne
der Haut
wie Emily
Dickinson die einen
Brief voller Kleinigkeiten
beendet mit "forgive
me the personality"

§

para provar seu
entusiasmo e assegurar
a destruição de tecidos
no pedágio
da alegria
apagou o
cigarro no próprio
pulso que revidou
latejando
e mordendo a
brasa lambendo
as cinzas a
semente da
maçã inaproveitável
devolva-me
o caroço como exige
o mel do rei ao mesmo
tempo que o depõe
a prover dor ao fingimento
alheio

§

um seine Begeisterung
zu beweisen und die
Zerstörung von Stoffen
an der Zahlbox
der Freude
zu gewährleisten
drückte er die
Zigarette auf dem
eigenen Puls
aus der zurückschlug
in die Glut
biss Asche
leckte die immer
nutzlose Apfel-
saat gibt mir den
Kern zurück mein
Liebster will
den Honig des
Königs und bietet
ihn feil versieht
mit Schmerz das Heucheln
des anderen

§

difícil convencer todas
as partes do meu corpo
do sentido
de uma ação e
assim pôr em
movimento as roldanas
da corpulência em
direção ao
abstrato cruzar
o oceano tantas
vezes umedece
os propósitos faz
querer uma cama
no fundo
não não
é irônico
que bas jan ader in search
of the miraculous afunde
desapareça em meio
oceano

§

schwierig alle
Teile meines
Körpers vom Sinn
einer Handlung zu
überzeugen und
so die Flaschenzüge
der Fettleibigkeit in
Richtung Abstraktheit
in Bewegung zu
setzen so oft das Meer
zu überqueren wässert
die Absicht weckt
den Wunsch nach
einem Bett
am Grund nein
das ist keine Ironie
möge Bas Jan Ader in Search
of the Miraculous versinken
verschwinden mitten im
Meer

§

o que é uma língua
perdida se
encontra saliva
em estranhos como se
vai de são paulo a
berlim nomear esta
relevância morta
vício de memória horror
à memória horror do
esquecimento uma foto
é irrespirável a catedral
da cidade do méxico
afundando no antigo
lago bombeie bombeie
concreto até reter as
águas é preciso
cruzar o oceano
para ousar
falar de
água

§

Was ist eine verlorene
Sprache Speichel
finden in Fremden
wie man von Sao Paulo
nach Berlin
geht diese tote
Bedeutung benennen
Laster der Erinnerung Horror
für die Erinnerung Horror
des Vergessens ein Photo ist
uneinatembar die Kathedrale von
Mexiko Stadt versinkt
im Ursee Beton
Beton das Wasser
zu bremsen
man muss das Meer
überqueren bevor
man von Wasser
zu sprechen
wagt

§

em minha boca ele
alcança o meio-dia
mas a intermitência o
apreende como em
qualquer música
cúmplice do acaso a
pessoa começa a
afastar-se desde que
se aproxima a distância
existe entre pele e
pele cada imagem
dobrando a esquina
não configura
sua chegada
ele
só chega quando seu
corpo chega carregado
pelas próprias pernas
e jamais falha que
eu o reconheça
de imediato
como dono de
certos lábios voz
nome e um modo
de apresentar-se
ele
chega o mundo
assume uma nova
forma: a do
equilíbrio precário do
mundo

§


§

in meinem Mund erreicht
er den Mittag aber
die Unterbrechung um-
klammert ihn wie
eine Musik die Komplizin
des Zufall ist die
Person beginnt
sich zu entfernen sobald
sie sich nähert Entfernung
existiert zwischen Haut und
Haut jedes Bild
das um die Ecke biegt
zeigt nicht
seine Ankunft
er
erscheint nur
wenn sein Körper
erscheint getragen
von seinen Beinen
und nie bleibt
es aus, dass ich
ihn gleich erkenne
als Besitzer von
Lippen Stimme
Name an seiner Art
sich vorzustellen
er
erscheint die Welt
nimmt eine neue Form
an: die des heiklen
Gleichgewichts der
Welt


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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Tendo acabado de deixar Curitiba, dois poetas ligados à cidade





[um dia]
Paulo Leminski

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores

§

Plegária
Jussara Salazar

Verde, âmbar as
pedras,
e as violetas rosadas –
eternas e o humo que
cobria o chão negro
como a noite, e quisera
falar-lhe em seu idioma
antigo
e recordar os lobos
correndo ao redor da
casa e a hera selvagem
cobrindo os vestidos e
os animais, pequenos,
nos bordados coloridos e
ramitos a entreabrir-se
brancos e escuros, cristal
de la luna ao reflexo
como a aparição das
lebres e das ovelhas
correndo os campos sob
as nuvens e a subterra
profunda do horto na
pele do ar em minutos
precisos, envolvendo o
tempo quando vi morrer
o sol, e o vento girando,
soprando mirações da
cor da água, nas rosas e
nos insetos. Quisera falar
seu idioma antigo e
guardar-lhe nas luzitas
do espelho como os
cravos também tão
antigos sobre a toalha
branca, e uma lua de
seda derrama um rosário
de ouro mais os rumores
de um sonho, quisera.


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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Curitiba: Performance no Museu Oscar Niemeyer : Hoje à noite, 20:00



HOMENAGEM A JOHN CAGE - Zeitkunst 2012 - CURITIBA

Em Curitiba esta noite, 20/11: última performance brasileira da "Homenagem a John Cage", parte do Festival Zeitkunst 2012. A apresentação será no Museu Oscar Niemeyer, às 20:00.

Com os poetas Johannes CS Frank (Inglaterra), Max Czollek (Alemanha), Maya Kuperman (Israel) e Ricardo Domeneck (Brasil). Músicos: Luiz Gustavo Carvalho (Brasil, piano e piano preparado), Caspar Frantz (piano preparado) e Julian Arp (violoncelo). 

No programa, peças de Cage como "A valentina out of season" e "Dream", além de uma homenagem a ele, composta pelo húngaro György Kurtág (n. 1926).

20 de novembro, às 20:00
Museu Oscar Niemeyer
Rua Marechal Hermes, 999 
Curitiba




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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Oito poetas mineiros, estando em solo mineiro



                               Oito poetas mineiros, estando em solo mineiro


Soneto V
Cláudio Manuel da Costa

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

§

Grafito numa cadeira 
Murilo Mendes

Cadeira operada dos braços
Fundamental que nem osso

Não poltrona com pés de metal
Knoll
Ou projetada por um sub-Moholy Nagy
Com nota didascálica

Antes cadeira no duro
Cadeira de madeira
Anônima
Inânime
Unânime
Cadeira quadrúpede

Não aguardas
Nenhuma "iluminação" particular
Nem assento e clavícula de nenhuma deusa
Que te percutisse — gong —
Nem de nenhum Van Gogh
Que súbito te tornasse
Eterna

§

O enterrado vivo
Carlos Drummond de Andrade

É sempre no passado aquele orgasmo,
É sempre no presente aquele duplo,
É sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra,
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre no meu lábio a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim o inimigo
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

§

De súbito cessou a vida
Henriqueta Lisboa


De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.

O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.

Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.

Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.

Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.

Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.

Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.

Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...

Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)

Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.


§

patrulha ideológica
Affonso Ávila


te alerta poeta que a p/i te espreita
         desestruturou o discurso e embaralhou as letras
te aleart paeto que o pc te recrimina
         barroquizou a linguagem e descurou da doutrina
te alaert peota que o sni te investiga
                   parodiou o sistema e ironizou a política
te alaret poate que o women´slib te corta o genitálio
         glosou o objetou sexual e teve orgasmo solitário
te alerat peato que a puc te escanteia
         foi tema de mestrado e não quis compor  mesa
te areta petoa que a cb não te reedita
         gastou muito papel e ouço sangue na tinta
te alrate petao que a abl te indexa
                   fez enxertos de inglês e sujou a água léxica
te arealt patoe que a cnbb te exorciza
         macarronizou o latim e não aprendeu a nova missa
te alatre potae que o esquadrão te desova
                   traficou palavrinha e não destruiu a prova
te atrela ptoea que o doicodi te herzoga
         suspeito sem suspeição e enforcado sem corda

i must be gone and live                          or stay and die


§

Paupéria revisitada
Ricardo Aleixo

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

§

Aula
Edimilson de Almeida Pereira

Fala de vendedor ambulante
é signo em rotação. A gente
lança no ar o que tem de ser
dito e colhe — nem sempre —
o fruto de algo vendido.
Repetimos as falas aceitas
para garantir a venda, mas
o risco do improviso é o que
há. Três por dois, duas por
uma — essa sintaxe apraz.
A gente lança no ar. Se der
ritmo ganhamos a feira, se
não, fazemos fina de baile.

§


Aparador
Ana Martins Marques

Sonho que estou de volta
ao primeiro apartamento
quando éramos jovens e tínhamos
muito menos coisas
e nem sabíamos que já éramos
felizes como pensávamos que seríamos
estás na minha memória
jovem e alegre como numa fotografia
talvez ainda mais jovem e mais alegre
mais jovem do que jamais foste
e mais alegre
usas uma presilha
no cabelo castanho e comprido
invejo a presilha
que está tão mais próxima do que eu
do teu pensamento
e dos teus cabelos
da tua cabeça de cabelo e pensamento
e invejo a fotografia
que se parece tanto contigo
talvez mais ainda do que tu mesma
ouço as juntas que estalam
como portas batendo
sou hoje uma chaleira, uma pá, uns óculos
esquecidos sobre o aparador
sou o aparador
esquecido de mim mesmo
sobre o aparador está tua fotografia
que nos sobreviverá


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