segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O artesão e o interventor

Publiquei este fim-de-semana um artigo na Modo de Usar & Co., apresentando a peça "The atomic alphabet" de Chris Burden, e usando-o como referência para discutir minha distinção entre o artista como artesão e o artista como interventor. Confesso não ter apreço particular pelo trabalho de Burden, mas o extremismo de suas propostas ajuda a deixar mais clara a distinção que procuro fazer. De qualquer forma, não quero gerar mais uma dualidade para um mundo já tão cheio delas. Uso os termos "artesão" e "interventor" apenas como dois dos extremos de uma estrela de muitas pontas.

Trata-se de uma distinção importante, em minha opinião, pois muita saliva crítica se perde em atacar poetas e outros artistas pelo fato de que não fizeram exatamente aquilo que se recusam a fazer. Pound exprime isso de forma pontual em seus conselhos para críticos no ABC of Reading, por exemplo.


(Yoko Ono, "Cut piece")

Como escrevi na Modo de Usar & Co., seria obviamente ocioso e inútil buscar uma crítica do trabalho de executores de performances como Chris Burden no conceito grego da tekhné, ou buscando analisar o trabalho artístico apenas como pesquisa formal. Para não voltar a Burden, mencionaria o trabalho de outros homens e mulheres do pós-guerra, que tiveram grande impacto em minha formação, como o alemão Joseph Beuys, a japonesa Yoko Ono, a servo-croata Marina Abramović ou a brasileira Lygia Clark (em seus trabalhos finais), que se afastam dos conceitos e parâmetros clássicos greco-latinos para a prática artística.

(Marina Abramović, reprodução da performance "Rhythm 10", de 1973, para o filme de Pierre Coulibeuf, de 1999.)

Meu argumento é que, a partir do trabalho da vanguarda histórica ligada ao Cabaret Voltaire e à revista DADA, assim como o de artistas e poetas independentes como Marcel Duchamp e Pierre Albert-Birot (mas não o de vanguardas ligadas ao construtivismo), o trabalho artístico no século XX se bifurca entre a missão do artista como artesão e a do artista como interventor. Este último afasta-se de certa leitura da tradição greco-latina, a tradição neoclássica, em prol de tradições outras em que o papel do artista se afasta da analogia que se faz entre este e o artesão, e se aproxima, por exemplo, de uma possível analogia entre o artista e o xamã nas sociedades arcaicas. Jerome Rothenberg argumenta algo parecido em suas antologias de etnopoesia há anos. No trabalho poético, gosto de usar o termo "poeta-Cassandra", já que este se mostra em geral incapaz de impedir as catástrofes.

O artesão busca a produção de objetos que possam "permanecer", enquanto o interventor usa ações e busca criar situações que tenham efeitos transformadores sobre a comunidade em que vive. Não se pode recorrer facilmente à tekhné grega para analisar trabalhos como "I like America and America likes me" ou "Como explicar imagens a uma lebre morta", de Joseph Beuys; trabalhos como "Cut piece", de Yoko Ono; a "arte terapêutica" de Lygia Clark; ou todo o trabalho de Marina Abramović .



(Joseph Beuys, "Como explicar imagens a uma lebre morta")

Muito já foi escrito sobre a comparação com o xamã em críticas ao trabalho de Beuys, por exemplo. O próprio artista cunhou o termo "escultura social" para o que buscava atingir. Sei que o uso da palavra "xamã" pode ser perigoso e levar a mal-entendidos, é por isso que insisto que traço um paralelo entre o xamã das sociedades arcaicas e o interventor contemporâneo, que nos avisa dos perigos imediatos e dos cataclismos vindouros (como dizia Pound das "antenas da raça"), não por algum misticismo cafona de hippies que se recusam a amadurecer desde 1968. Trata-se do trabalho est-É-tico dos que nos lembram da utopia e ao mesmo tempo nos alertam da distopia em que já vivemos, mesmo que muitos não percebam.

O efeito terapêutico e aspecto quase místico das performances de Joseph Beuys, por exemplo, nas quais se fazia curandeiro da comunidade, ficam claros em muitas de suas peças. Sua definição de arte era: "Curar a faca que abriu o corte."

(Joseph Beuys, "I like America and America likes me")

Poucos eventos tiveram tanto impacto sobre a minha formação inicial quanto a minha visita à retrospectiva de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1999. Sua chamada para uma arte que possa envolver o expectador, tornando-o participante, a partir dos "Bichos" (quando começa a se afastar do construtivismo das vanguardas brasileiras) e sua crescente radicalidade até os trabalhos terapêuticos do final de sua vida, ligam-na claramente a esta tentativa de uma parcela da arte do século XX, de afastar-se dos parâmetros neoclássicos que se tornaram hegemônicos a partir do Renascimento.


(Lygia Clark, "Baba antropofágica")


O que estes artistas-interventores recusaram é aquilo que Marshall McLuhan descreveria como "The Renaissance Legacy":


"The Vanishing Point = Self-Effacement,
The Detached Observer.
No involvement!

The viewer of Renaissance art is sistematically placed outside the frame of experience. A piazza for everything and everything in its piazza."


Não são caminhos que se excluem, o do artesão e do interventor. Houve poetas e artistas que souberam combinar os dois, mas não exatamente ao mesmo tempo ou na mesma peça. Se Duchamp se faz interventor na famosa "Fonte" de 1917 ou na criação de Rrose Sélavy ("Eros, c'est la vie"), o mesmo Duchamp renovaria as possibilidades dos parâmetros envolvendo de certa maneira a tekhné grega em trabalhos como Étant donnés. O caso de Pound é interessante. Poeta da técnica e da composição, poeta que poderia ser incluído na tradição construtivista, seu poema talvez mais influente (pelo menos nos Estados Unidos) afasta-se desta tradição; refiro-me, obviamente, aos "Cantos Pisanos", escrito em um momento de antecâmara da morte.

A fronteira, no século XX, segue sendo a proposta pelos poetas-artistas do Cabaret Voltaire e da revista DADA, com parâmetros que os afastam das vanguardas de caráter construtivista. O que não significa que estes artistas descuidavam da técnica ou não possuíam olhos atentos para a composição, como qualquer análise de suas colagens demonstraria. DADA se tornaria uma das mais frutíferas das vanguardas históricas, desaguando no pós-guerra em vários grupos.

Na poesia, a tradição alternativa que se afasta da hegemonia neoclássica renascentista está em vários destes grupos, em Isidore Isou e Gil J. Wolman com os Lettristes ou Guy Debord com a Internacional Situacionista em Paris, poetas como H.C. Artmann e Gerhard Rühm com o Grupo de Viena na capital austríaca, Guérasim Luca e seu grupo de poetas em Bucareste, o Fluxus de Yoko Ono e George Brecht, o Punk dos Sex Pistols e o Glam Rock de David Bowie, os poetas da Escola de Nova Iorque, como Frank O´Hara e John Ashbery, os Beats, etc, etc, etc.

Repetindo o que escrevi no artigo sobre Chris Burden, criar uma oposição entre o artesão e o interventor geralmente leva-nos a perder de vista os aspectos extremamente necessários, nos dias de hoje, para cada uma das duas práticas, dependendo de que lado da trincheira alguém se encontra ou se coloca.

No entanto, é o que se faz diariamente na crítica brasileira.

O trabalho e missão do artista-artesão, aquele que resiste pela negação da realidade destrutiva, como queria Adorno em "Lírica e sociedade", e o trabalho do interventor, como apregoava Allan Kaprow, são visceralmente distintos e ambos necessários. Cada um deles precisa ser julgado por parâmetros específicos. Opor performances de Chris Burden, Joseph Beuys, Yoko Ono, Marina Abramović ou Lygia Clark a trabalhos como as esculturas de Alberto Giacometti, as pinturas de Alfredo Volpi ou os romances de James Joyce é simplesmente mostrar-se cego às óbvias diferenças de propósito de cada um deles.

O problema é que a veemência ética de cada um obriga-os muitas vezes a querer provar que a crença na prática de um exclui a fé na prática do outro. No entanto, cada um precisa ser julgado por parâmetros específicos, insisto.

.
.
.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Dez dias para a literatura no Berlimbo

Terminou no último domingo o Internationales Literaturfestival Berlin, que trouxe algumas dezenas de homens e mulheres das letras do globo para o Berlimbo, algo como a FLIP alemã. Como o foco recai sobre o que nossos queridos contemporâneos chamam de Literatura e esperam que haja ouvidos presentes nas salas de leituras, há todos os anos pouquíssimos poetas entre os convidados, prosadores em sua maioria. Sejamos justos: como Berlim já tem o seu próprio festival de poesia, o Poesiefestival Berlin, considerado o maior da Europa, talvez seja natural que o festival de literatura traga mais prosadores. Entre as jovens "estrelas", compareceram o italiano Paolo Giordano, a alemã Judith Hermann, a indiana Arundhati Roy, o irlandês Colm Tóibín, entre outros tantos que eu não saberia reconhecer.

Percorrendo a lista de convidados, naturalmente minhas pupilas se dilataram em frente dos nomes de dois poetas: a americana Susan Howe e o francês Jacques Roubaud que, por coincidência ou não, liam na mesma noite, Roubaud às 18:00 e Howe às 19:30.

Jacques Roubaud nasceu em 1932, é poeta, ensaísta e matemático. No Brasil, foi publicado um de seus livros mais conhecidos, o Quelque chose noir (Paris: Gallimard, 1986), lançado pela Editora Perspectiva, com tradução de Inês Oseki-Depré sob o título Algo: preto. Nos Estados Unidos, o livro foi traduzido por Rosmarie Waldrop e publicado como Some thing black. Já conhecia a tradução brasileira e a americana, mas não havia lido o "original" francês, portanto comprei a simpática edição da Gallimard sendo vendida à entrada da sala em que Roubaud leria.




Não se tratava de uma leitura solo, no entanto. O evento trazia, na verdade, escritores franceses ligados ao OuLiPo, como é o caso de Roubaud. Estavam ainda presentes os autores Hervé Le Tellier, Frédéric Forte, Olivier Salon e Marcel Bénabou.

Onde estás :
............................quem?

Sob a lâmpada, cercada de preto, disponho-te :

Em duas dimensões

Preto cai

Sob os ângulos. quase uma poeira :

Imagem sem espessura voz sem espessura

A terra

............................que te esfrega

O mundo

............................do qual nada mais te separa

Sob a lâmpada. na noite. cercado de preto. contra a porta.



(Jacques Roubaud em tradução de Inês Oseki-Depré)


Susan Howe nasceu em 1937, é artista visual, poeta e ensaísta. Associada ao grupo ligado à revista L=A=N=G=U=A=G=E, estreou em livro em 1974, com o volume Hinge Picture, mas viria a se tornar muito conhecida a partir da publicação do lindíssimo My Emily Dickinson, um dos livros de crítica mais criativos e apaixonados que já li, em um país onde os poetas dedicam grande parte de seu talento poético à crítica de seus mentores, como é o caso de Louis Zukofsky com Bottom: on Shakespeare (1963) ou Charles Olson com Call me Ishmael (1947).


Trecho de My Emily Dickinson (1985):

Emily Dickinson once wrote to Thomas Wentworth Higginson; "Candor--my Preceptor--is the only wile." This is the right way to put it. In his Introduction to "In the American Grain" [1925], William Carlos Williams said he had tried to rename things seen. I regret the false configuration--under the old misappellation--of Emily Dickinson. But I love his book.

The ambiguous paths of kinship pull me in opposite ways at once.

As a poet I feel closer to Williams' writing about writing, even when he goes haywire in "Jacataqua," than I do to most critical studies of Dickinson's work by professional scholars. When Williams writes: "Never a woman, never a poet.... Never a poet saw sun here," I think that he says one thing and means another. A poet is never just a woman or a man. Every poet is salted with fire. A poet is a mirror, a transcriber. Here "we have salt in ourselves and peace one with the other."

When Thoreau wrote his Introduction to A Week on the Concord and Merrimack Rivers, he ended by remembering how he had often stood on the banks of the Musketaquid, or Grass-ground River English settlers had re-named Concord. The Concord's current followed the same law in a system of time and all that is known. He liked to watch this current that was for him an emblem of all progress. Weeds under the surface bent gently downstream shaken by watery wind. Chips, sticks, logs, and even tree stems drifted past. There came a day at the end of the summer or the beginning of autumn, when he resolved to launch a boat from shore and let the river carry him.

Emily Dickinson is my emblematical Concord River.

I am heading toward certain discoveries....


(Susan Howe, My Emily Dickinson, 1985)


Escrevi sobre Susan Howe para a Modo de Usar & Co., por ocasião do lançamento da tradução de Antonio Sergio Bessa para o volume Pierce-Arrow. Você pode ler meu artigo e outros poemas de Howe AAQQUUII.


Em Tintagel Iseult apruma-se
no meio da escada a meio
simbolismo chiaroscuro
Revelaria ela o matiz fónico
humano por marginália o
amor mêdo atração relutante
cansaço bruto real
fato predestinado pela
queda fobia sem diálogo
Tintagel miséria de filosofia
aqui óbvia mudança aqui
mudança vem como crua
onda adorno determinista
Sua alma sua vala


(Susan Howe em tradução de Antonio Sergio Bessa)


Tomei a oportunidade para comprar alguns livros de Howe, quase todos reuniões de livros anteriores. Agora tenho em mãos os volumes Frame Structures (1996) ::: que reúne seus primeiros livros: Hinge Picture (1974) , Chanting at the Crystal Sea (1975), Cabbage Gardens (1978) e Secret History of the Dividing Line (1979):::; The Europe of Trusts (1990) ::: que reúne os volumes Pythagorean Silence (1982), Defenestration of Prague (1983) e The Liberties (1983) :::; The Nonconformist’s Memorial (1993) ::: que reúne o textos "The Nonconformist’s Memorial", "Silence Wager Stories", "A Bibliography of the King’s Book, or Eikon Basilike" e "Melville’s Marginalia" :::; e, finalmente, The Midnight (2003) ::: que reúne os livros Bed Hangings I + II (2001 e 2002), os inéditos Scare Quotes I + II e Kidnapped (2002):::.

Delícia.

.
.
.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Alguns pensamentos sobre a escrita de João Filho, sob o efeito da cafeína

A editora P55 Edições lançou há pouco o volume Ao longo da linha amarela, reunindo sete contos recentes do escritor baiano João Filho. Nascido em Bom Jesus da Lapa, em 1975, o autor chamou a atenção geral pela primeira vez com a publicação de Encarniçado (São Paulo: Baleia, 2004). Em seus trabalhos, João Filho demonstra sua capacidade incomum de aliar à experimentação em prosa uma espécie de ventriloquismo da naturalidade da fala, com uma mescla de registros distintos, que navega a braçadas de distância do prosaísmo e coloquialismo de grande parte da prosa contemporânea brasileira, sem despencar em artifícios pouco convincentes dos que se sonham esquisitos. Muitos paralelos têm sido traçados ao comparar o trabalho de João Filho com o de outros autores contemporâneos ou modernistas, como João Guimarães Rosa entre os mortos e Evandro Affonso Ferreira entre os vivos, mas a prosa de João Filho parece-me muito diferente dos experimentos calculadíssimos de Rosa, assim como muito mais tesa que a escrita insistentemente onomatopaica de Ferreira. Há no Brasil, de qualquer maneira, a tendência de agrupar quaisquer escritores que se distanciem da sintaxe ou vocabulário da prosa jornalística sob a mesma aba da "experimentação com a linguagem", apagando todas as mil-e-uma sutilezas em diferença ou até mesmo oposição entre eles, como os que forçam sob o mesmo lacre tanto James Joyce (1882 - 1941) como Gertrude Stein (1874 - 1946), estes antípodas da prosa em língua inglesa.

Em seus melhores momentos, penso na escrita de João Filho como próxima à de minha idolatrada salve salve Hilda Hilst, que demonstrava talento semelhante em fazer com que seus experimentos vocabulares e sintáticos soassem como o fluxo tagarelo inspirado do nosso querido próximo, aquele que você deveria amar como a si mesmo. Neste Ao longo da linha amarela, um exemplo estaria no texto "Cicerone cego", um dos meus textos favoritos em prosa lusófona, dentre os lidos nos últimos tempos.


55 anos de urbe e paisagem palpável. Sou rico, rigoroso e lírico. Te desagrada um guia cego? Como disse, já fiz uso de tudo que um corpo-espírito pode sentir pra saber sua cidade. Mas filhadaputamente sou cego de nascença. É o único sentido. Tragicômico, não? No tragicômico do mundo há o instante neutro? O azeitado? O nada-acontece? Possibilidades estatísticas. ----- João Filho, no texto "Cicerone cego"


Com isso, é natural que João Filho escolha, com frequência, a narrativa em primeira pessoa, permitindo que sua escrita jorre tesa como um pé-do-ouvido, ditado ao pé do ouvido, deixando à vontade de descrever apenas a opção da escolha dos impropérios. Em minha opinião, os melhores parâmetros para julgar a qualidade da escrita de João Filho nós encontramos naquela estante mental em que habitam trabalhos como Qadós, de Hilda Hilst (1930 - 2004) ou Catatau, de Paulo Leminski (1944 - 1989), mas também trabalhos como Abraçado ao meu rancor, de João Antônio (1937 - 1996).


1º deduragem –

Cabral casquetou – cogitas o quê, bostinha? décadas de coió e pretendes a lábia? desembuxa! do camburão no aperto. cataram-me na porta de casa, Xotinha inda encostou e França rosnou – circula, circula. dei de mal. também só apareceu patente: tenente dois, major um, pra me pegar. sexta'carnavalesca, eu mão na massuda, tirando anos, enroupando um e as patentes fecho'cercaram – se esticar no pé, esticado fica, seu bostinha! obedeço. a mana'caçula vacilou numa quebra do Morro, o degas-bostinha aqui que deu a presença e se samba-treiteou. peguei purga. a mana e a amiga, necas.
----- João Filho


Mas confesso que a referência a Hilda Hilst, em um texto que pretende ser apenas o pequeno relatório de algumas considerações pessoais sobre o trabalho de João Filho, por ocasião da publicação de seus últimos contos, surge aqui pontualmente também pela relação entre a prosa do autor baiano e a sua poesia. Assim como a escrita de Hilst surpreende ao parecer eleger, para a sua prosa, os parâmetros do assim-chamado Alto Modernismo e das vanguardas, e, para a sua poesia, os de poetas da tradição clássica (unindo Catulo a Beckett), também a escrita de João Filho parece por vezes dividir-se claramente entre modelos distintos, respeitando ainda os gêneros que muitos vêem cada vez mais como obsoletos.

Os dias grandes
João Filho


Manhã dissipadora,
azul e antifantasmas,
seu vasto lençol de luz
protege sem esconder,
materna como quem nutre.
Se todo o entorno aclaras
também a alma, ex-pavor,
deambula pela casa
menos dor e inflamada.
Nesta quarta-feira austera,
nítida como uma culpa,
ajuda-me a destecer
os caminhos começados,
quantas vezes a malha
no novelo esgarçada,
o linho-dádiva e sujo
nos quintais, campos e praças
e nas ocultas cisternas
que do berço à cova nos
dessedenta e maltrata,
como convém a essa doença -
mais tratada mais se espalha,
saúde que escalavra.
Manhã inédita e arcaica,
reverência contemplada,
apesar do dia sólido
em folha sorvendo sol:
totem desmistificada.



Assim, unindo à publicação de textos em prosa com trechos tais: "Baby-me, rasga-rasga, meu inevitável fantasma. que matéria-nome é passível de devastação? nada de retornança ao chão originário que com os séculos novamente seres. quero a dissolução sem indícios: termo outro que indique... nada! quero a negança do grafar disso. agora-manhã e o que fazes, dádiva-desgraça? assola esta perrengue carcaça com ruas por onde vagara de mãos dadas, lanchonetes onde maternalmente consolara e AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. só berro: a imagem sonora que mais se aproxima dessa intensa, Baby-me, trauma. só", João Filho nos traz a escrita e composição de sonetos como este:


Das elegias: resoluta
João Filho


Não mais memória, não mais a vaidade
de durar em qualquer ponto do espaço;
agora a simples luz sobre a cidade,
conforto de mistério sem cansaço,

não fácil. A bendita brevidade
vivida, que cintila no meu braço
onde pousa veloz em raridade
canta e parte azulando o sanhaço que

cruza o parque e o círculo de clareza;
nos ipês altos, tão velhos, o vento
é apenas o vento, e na pobreza

digna dos vendedores atentos
os níqueis dão os pães da certeza, que
os pombos migalham no pavimento.



Assim, João Filho parece estar entre os vários talentosos poetas-escritores brasileiros que dedicam admiração (eu diria inexplicável, mas compreensível) ao Bruno Tolentino de A imitação do amanhecer, talvez sem perceber com clareza que são autores mais interessantes que o equivocado poeta carioca, como é o caso, por exemplo, também de Érico Nogueira, que eu considero muito melhor poeta que Tolentino. Prova de que, na poesia, não vale o ditado do "diz-me com quem andas que eu te direi quem és."

João Filho demonstra a melhor aplicação do soneto, eu creio, em seus textos satíricos e eróticos, nos quais poderíamos dizer que sua qualidade poética excede também a de Glauco Mattoso, como neste exemplo:

Cagando grapho o rigoroso ranço,
Ensebo o rabo da palavra cachorra;
Gláucico, merdoso melo e tranço
Um modo-merda: não corra.

Repare: não é na tripa seca o avanço
Que propala a pura-palavra-porra,
Nem posta postura de poeta panço,
Pois a forma é fixa e o tema é borra.

Tampouco é tara, mas peço engulho
(Por favor, purista permaneça atônito)
Bosta só presta se motiva vômito.

Sei. Nada revelo e não ganho tusta
E ainda guloso galo buça e bagulho,
Pois cagando grapho e muito me gusta.



Pessoalmente, prefiro e admiro os poemas de João Filho em que ele se aproxima dos caminhos entre caminhos trilhados por sua prosa, como no ótimo "Três ponteados e uma sabença":


Fragmentos de Três ponteados e uma sabença
João Filho

É Ojasso Margoso
farinhando seu sustento
na curva da duna
alinhavando lamento
na lombada da ponte
todo esforço é nulo
bovinamente bolando
a touceira e o pulo.



É fundura de cova
que tatu não se arrisca
e todo o seu incêndio
no meu capim é faísca
escancarada feito retina
em noite defunta
chumbo espalhado no ar
quenãoseajunta.


(...)


Intoca seu sal e adaga
no fojo que o sol atiça
sabe na brenha a fonte.
Lá fora esperneia à tarde
sem seiva, acama e arde
nos baixios depois do monte.



Mas mantrichã amou curiango
numa peleja sem valia
e despencou na incerteza.
Lá onde o vento encurva
pra vista ficar mais turva
e o corpo ser fera presa.


(...)


Porisso no tabuleiro o caniço físsil,
agulhando. Nas beiras o tato é cortante;
seco, apesar de parado, procura rixa:
no plástico, no flandres, no instante
em que areia é moída por sede errante,
deixando sedenta até lagartixa.



Seco grimpa na grés, o quê? só Deus sabe,
seco negreja na nascença, desampara;
reduz o fóssil a ferrugem, desnorteia;
(veja a linguagem – ao poeta é cara)
seco é áspero, a própria planície vara,
antes que vingue, ele disseca a veia.



.
.
.

domingo, 20 de setembro de 2009

Algumas Elisabeths: para gargalhar sem ser frívolo e lamentar sem ser maçante



Trilha sonora para a postagem.

"Turn Turn Turn", The Byrds.
Particularmente interessado em: "A time to weep, and a time to laugh; a time to mourn, and a time to dance;" ou "Tempo de chorar e tempo de rir; tempo de lamentar e tempo de dançar;"

Para voltar àquela minha insistência de que há propósitos diversos para o trabalho poético, com parâmetros e exigências específicas. E se Orfeu desceu ao Hades, ele também dava suas aulas de agricultura. Parece haver quem imagina que a poesia pode ser "respeitável" apenas como o relatório de uma noche oscura del alma, o que varreria do mapa Edward Lear, Christian Morgenstern, e.e. cummings, Hans Arp, Oswald de Andrade e vários outros. E estou tratando aqui apenas dos poetas escritores e poetas visuais. Se pensarmos nos poetas orais ou poetas cantores, torna-se ainda mais complexa a teia de propósitos.

Precisamos do órfico e dos que estão dispostos a molhar os dedos dos pés no Lete, mas Eurídice não requer resgate todo dia útil. Os hinos de Novalis, os cantares de Hopkins e as elegias de Rilke têm o seu momento e o seu preço, mas venerar o monumento que é o choro de Lear (1606) não nos impede de apreciar os chistes de Lear (1812 - 1888).

Há aquelas horas da noite em que o peito pesa (e não me refiro aqui a sagging breasts) e buscamos algo nas palavras de poetas como Gerard Manley Hopkins:

I am gall, I am heartburn. God's most deep decree
Bitter would have me taste: my taste was me;
Bones built in me, flesh filled, blood brimmed the curse.
Selfyeast of spirit a dull dough sours. I see
The lost are like this, and their scourge to be
As I am mine, their sweating selves; but worse.


Há também as manhãs ensolaradas em que o peito está airado e preferimos palavras de poetas como Edward Lear:

On the top of the Crumpetty Tree
The Quangle Wangle sat,
But his face you could not see,
On account of his Beaver Hat.
For his Hat was a hundred and two feet wide,
With ribbons and bibbons on every side
And bells, and buttons, and loops, and lace,
So that nobody every could see the face
Of the Quangle Wangle Quee.


§

O celestial Antônio Vieira e o infernal Gregório de Matos compartilharam oxigênio. Tampouco se trata de uma tentativa de encurralá-los em esquinas opostas do ringue.

O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome?

Antônio Vieira, "Sermão da sexagésima".

.

Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar
por quem de mim não tem mágoa?
verdades direi como água
porque todos entendais,
os ladinos e os boçais,
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?


Gregório de Matos, "Senhora Dona Bahia"

§

Muitos momentos históricos permitem a existência de bons poetas com propósitos e parâmetros distintos. Não estou pregando "ecletismo" ou louvando algum tipo de "crítica democrática". Há muita baboseira sendo publicada no Brasil hoje, e já deixei muito claras e fiz públicas minhas discordâncias mais veementes. Estar criticamente alerta implica também saber em que momentos nossos parâmetros críticos nos impedem de reconhecer a qualidade existente fora da cerca do nosso quintal.

Vieira e Matos no Brasil, John Donne com os metaphysical poets e Robert Herrick com os cavalier poets na Inglaterra do mesmo século, há vários exemplos de coteries isoladas de poetas.

A hymn to love

I will confess
With cheerfulness,
Love is a thing so likes me,
That, let her lay
On me all day,
I'll kiss the hand that strikes me.

I will not, I,
Now blubb'ring cry,
It, ah! too late repents me
That I did fall
To love at all--
Since love so much contents me.

No, no, I'll be
In fetters free;
While others they sit wringing
Their hands for pain,
I'll entertain
The wounds of love with singing.

With flowers and wine,
And cakes divine,
To strike me I will tempt thee;
Which done, no more
I'll come before
Thee and thine altars empty.


Robert Herrick

.

trecho de "Farewell to love", de John Donne:

Whilst yet to prove,
I thought there was some deity in love
So did I reverence, and gave
Worship, as atheists at their dying hour
Call, what they cannot name, an unknown power,
As ignorantly did I crave:
Thus when
Things not yet known are coveted by men,
Our desires give them fashion, and so
As they wax lesser, fall, as they size, grow.


§

As "Duineser Elegien" (Elegias de Duíno) tiveram um grande impacto sobre mim quando as li, seguem sendo textos muito importantes no meu espaço mental. Mas penso também, em vários momentos, com muita graça em Hans Arp, que escreveu, no mesmo período em que Rainer Maria Rilke compunha a duras penas suas 10 elegias, aquela que é a maior sátira da vanguarda contra o "elegíaco", em sua série "Die Schwalbenhode", que traduzi como "Textículos do pássaro", publicada na Modo de Usar & Co. impressa e mais tarde na eletrônica (leia AAQQUUII).

§

Pessoalmente, sigo apreciando poemas que destilam tristeza com um tipo de humor baseado em self-deprecation. Não é qualquer um que o pode fazer. Algo como o poeta que finge que não é dor a dor que talvez até sinta.

§

Postei hoje na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. um artigo sobre a poeta carioca Elisabeth Veiga (n. 1941), que publicou em 2002 um dos livros acordados dos últimos anos, intitulado Sonata para pandemônio (Aeroplano: Rio de Janeiro, 2002). Li seus poemas pela primeira vez na antologia Pontes/Puentes, que reunia textos como este "Algias":

Algias

Elegia 1

Já repeti o antigo encantamento
e só o cimento respondeu,
rastro de cinzas de maçã vencida,
desvestígio de gosto,
estanque julho que moeu vindimas
e deixou no espaço seu vinagre branco.
Onde havia um deus
os dias emboloram nuvens
de estrita agonia antepassada
que se olha no espelho
antes do adeus.
Inexiste, não soa, o que havia
fixou-se atrás da mente:
fim estalado de fotografia.
É agosto seco. É hoje e nunca houve.

Alergia 2

Já repeti o velho encantamento
e o antigo deus Xipanto não azarou
na minha gleba de piche solferina.
Peguei o convescote, as sandálias murchas
e mudei de travesseiro lírico,
para afinar meu sambão em outros infernos.


Elisabeth Veiga, Sonata para pandemônio (Aeroplano: Rio de Janeiro, 2002)

§

Ela é uma das "Elisabeths" no meu poema "Drag queen", que está incluído no meu Sons: Arranjo: Garganta, no eterno prelo.

Drag Queen

na aprendizagem dos ganhos

pela arte da subtração

(oh, how

elizabeth bishop

of you)

acordei meio porta-luvas

& todas as mãos

compareceram à cerimônia

(oh, how

elisabeth veiga

of you)

ao confiar-me aos sete

dias de jericó

desmoronando aos pés

do sim e de las vegas

(oh, how

elizabeth fraser

of you)

pois

ninguém me arranha

ninguém me cospe

ninguém me chama

de kate moss

(oh, how

elisabeth chamber

of you)



Ricardo Domeneck, Sons: Arranjo: Garganta, no prelo.

§

O que por sua vez me traz à memória uma outra Elisabeth desaparecida, em um texto que eu gostaria muito de ouvir sendo oralizado, imagino que seja a melhor aplicação para ele:

A Elisabeth foi-se embora

Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
por que é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu anti-séptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida


Adília Lopes, Obra (Mariposa Azul: Lisboa, 2000)

§


Você pode visitar a página dedicada a Elisabeth Veiga na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. clicando AAQQUUII.

§

Encerro esta postagem, com a esperança de mais oxigênio crítico e poético no debate de hoje, com uma outra Elizabeth, esta de outro temperamento, mas tão isabela quanto as outras.


Cheerfulness Taught By Reason

I THINK we are too ready with complaint
In this fair world of God's. Had we no hope
Indeed beyond the zenith and the slope
Of yon gray blank of sky, we might grow faint
To muse upon eternity's constraint
Round our aspirant souls; but since the scope
Must widen early, is it well to droop,
For a few days consumed in loss and taint ?
O pusillanimous Heart, be comforted
And, like a cheerful traveller, take the road
Singing beside the hedge. What if the bread
Be bitter in thine inn, and thou unshod
To meet the flints ? At least it may be said
' Because the way is short, I thank thee, God. '

Elizabeth Barrett Browning

.
.
.

sábado, 12 de setembro de 2009

Vídeo com trechos de minha leitura na Eslovênia


(Leitura de "corpo" e trechos de "Breviário de secreções" e "Linear". Medana, Eslovênia, 28 de agosto de 2009)

§

Breviário de secreções



A um canto do quarto, meu corpo

             operava sua fábrica

                      de relações

Decisões não são auto-explicativas,

                        resistem ao questionário

         do prazer

                  e são

    obrigadas a ignorar

                     conseqüências de causas,

         como movimento e encontro

As mãos em concha erguem-se

      ao rosto ao mesmo tempo

    que este dirige-se a elas

                  sem que se percam

no caminho


               Respirando pela boca, sem

tempo a perder entre a

          oxigenação do próprio

                    cérebro e a

        do ambiente

               em geral, ele

     falou alto e preciso:

o teso súbito que percorre

                 a linha da boca

                 do peixe à mão

           do pescador, anzol:

                         isca, peixe


Mas esta imagem não

        encontra equivalência

           em meu organismo e

        volto a olhar 

        meus pés


               Sozinho e vazio

               como quem acaba

               de parir como quem

               acaba de ejacular

               vazio e sozinho


e só me acalmei

       ao repetir duração duração

                           duração movimento


passe as cartas por baixo

da porta se as há


Infelizmente não poderei

ir a São Paulo por

enquanto mas com

certeza nos veremos

antes da sua

partida beijos


em vigas de partir

nas vias do por vir


O esvaziamento progressivo

     dos pulmões e recomeçar

                           em seguida


Não há transição mais

                    sutil que a esquecida

            à meia-noite


e entre epiderme

derme músculo

osso esperam

todos

uma gradação

dos espetáculos

do mundo


apague a luz cavaleiro digo cavalheiro


Breviário das secreções

                  da manhã:


§     salivação comum mesmo 

em meio à 

desidratação recente

§    ejaculação de hábito 

antes do desjejum

§    sangramento normal 

à pia do banheiro

colore-me a boca

sensação de frescor e medo



do livro Carta aos anfíbios (2005)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cânone s.m.

cânone. s. m.. 1. Regra, preceito. 2. Decisão conciliar sobre matéria de fé ou disciplina católica. 3. Catálogo, relação, lista. 4. Quadro que contém as palavras que o sacerdote diz durante a consagração. 5. Foro. 6. Mús. Nota que mostra onde começa outra voz em fuga. 7. Ant. Fórmula matemática.

Torna-se fechado e inalterável. Infalível? De acumulação periódica, os mistérios da canonização. Que milagre se espera do autor? A vida eterna é pré-requisito para receber a carteira de membro do clube ou esta gera a fonte da juventude?

Seleção artificial.

"Lista de textos e/ou indivíduos adoptados como lei por uma comunidade e que lhe permitem a produção e reprodução de valores (normalmente ditos universais) e a imposição de critérios de medida que lhe possibilitem, num movimento de inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do heterodoxo, do herético ou do proibido." - João Ferreira Duarte

Quem está no poder? Discurso normativo e dominante num determinado contexto. O cânone como hegemonia.

O genuíno e verdadeiro contra o não-autêntico, "impuro", extra-oficial. A ofensa imperdoável do apócrifo.

§

O que é o que é um cânone?
Poetas com marinha exército aeronáutica.

§

Cânone e tradição são a mesma construção?

§

Qual a relação entre cânone e vanguarda? Podemos realmente seguir usando a noção de "tradição da ruptura", de Octavio Paz? Poderíamos ver todo momento de vanguarda como um despertar para o-que-já-não-é-mais? Talvez muito menos ter "olhos novos para o novo" do que ter "olhos atuais para o atual". Pois este "novo" poderia ser visto como resposta a necessidades e condicionamentos culturais (econômicos, sociais, científicos), todos refletindo-se e debatendo-se dentro do poema, que não apenas os espelha passivamente, mas reage a eles e também condiciona nossa percepção destas mesmas transformações, sem podermos separar quanto os poetas precipitam estas mudanças do quanto eles apenas as podem prever antes que se tornem óbvias para todos os outros.

§

A construção da realidade operada por um poeta (ideologia da percepção), com material de construção de seu tempo e métodos acumulados ao longo da história, levam-no portanto a moldar a realidade, não apenas sua própria ("...o mundo é o meu mundo", escreveu Wittgenstein) mas, por usar a linguagem que compartilha com toda a sua comunidade, lança em ondas concêntricas esta lente sobre os olhos dos atentos e dos desatentos.

§

A própria escolha da forma de um poema não deveria apenas relacionar-se com seu conteúdo, como Charles Olson e Robert Creeley propuseram, (de forma válida para a década de 50 americana) pois isto seria de certa forma ainda nos mantermos na dicotomia que as opõe, não mais apenas FORM IS NOTHING MORE THAN THE EXTENSION OF CONTENT, como nas palavras de Creeley, mas que forma e conteúdo são uma única estrutura-enunciado, inseparável (proponho à minha geração a deformação ideológica de FORM IS NOTHING MORE THAN THE INTENTION OF CONTEXT) e nossa percepção de que a materialidade da linguagem precisa ser acompanhada pela consciência do condicionamento do seu suporte, até mesmo nas implicações político-ideológicas de seus métodos de distribuição e divulgação. Bruce Andrews, um dos poetas ligados ao movimento L=A=N=G=U=A=G=E da poesia americana na década de 70 e início da 80, expôs de tal maneira a questão: "What's social here is not some separable content, but the Method of writing & of editing."

§

Segundo o Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus, "Ética e estética são uma só."

§

MAKE IT NEW & MAKE IT NECESSARY. Não se trata de opor os dois princípios. Acredito que eles estão ligados intimamente pelo processo histórico de um contexto comum. São as transformações históricas que exigem dos artistas transformações e invenções formais. O desgaste das formas poéticas dá-se menos pela hipertrofia de seu uso que pela atrofia do contexto que as gerou.

§

Não se trata de atacar o USO do soneto, por exemplo, por esta forma dita fixa já ter sido usada tantas vezes, mas porque o soneto estaria intimamente ligado ao contexto histórico em que surgiu, com crenças bastante específicas de interligação entre os elementos do cosmos, fé em uma possível transcendência espiritual e na harmonia do universo. Estas crenças animariam portanto a metáfora, a rima ou o enjambement?

§

O perigo da idolatria do Doríforo ou como a busca pela proporção perfeita pode levar à distorção da realidade. De qualquer forma, reproduzir doríforos hoje não nos traz perigosamente próximos à est-É-tica de Leni Riefenstahl? Não seria essa est-É-tica a mesma de Joseph Goebbels? Será blasfêmia de socio-ideólogo tal preocupação no âmbito artístico, uma afronta à sua autonomia?

§

Cada vez que uma “forma” é usada em um contexto histórico distinto, ela assume nova “função”. Não são apenas invenções formais, como se fossem meras ferramentas para efeitos imutáveis. Desta forma, inovação passa a ser compreendida em seu contexto histórico específico. Nesta relação entre forma e função pode-se falar em qualidade. Se um poeta escreve 500 sonetos “tecnicamente perfeitos” hoje, em 2009, ele atinge qualidade? Para muitos, sim. Eu acredito, porém, que isso precisa ser entendido em seu tempo histórico e ter suas implicações questionadas. É por isso que diria que precisamos unir, à discussão da Forma, uma noção de Função.

§

Não está na hora de abandonarmos esta busca por um “Grande Poeta Nacional“? Resquícios de nosso messianismo. Esta relação com a poesia é coisa do passado, de uma época em que o número de poetas em atividade era menor, e de uma época em que o absolutismo político permitia universalidades fictícias. Mesmo a noção de uma “poesia nacional“ começa a se flagrar impraticável.

§

Há porém a possibilidade de um debate nacional sobre os parâmetros e sobre as decisões est-É-ticas de poetas e grupos de poetas. Em uma passagem do ABC of Reading, Pound diz que um estudante de música certa vez perguntou a ele se não havia um poeta, um único poeta, em que fosse possível encontrar todo o espectro do trabalho poético, como (segundo o estudante de música) era possível encontrar todo o espectro musical em Bach. Pound responde muito simplesmente que NÃO, não era possível encontrar tudo em um único autor. No Brasil, isso é esquecido às vezes, pois se busca o Encoberto, o Escolhido, o Maior Poeta Vivo, o "Poeta Nacional".

§

Precisamos encontrar a melhor maneira de garantir aquilo que Charles Bernstein chama de diversity, mas isso tampouco significa o "ecletismo de segunda categoria da poesia contemporânea", nas palavras de Augusto de Campos, sem debate, sem discussão formal, um mero vale-tudo em nome da liberdade de pesquisa. Temos que defender a liberdade de pesquisa, mas sem um debate amplo há apenas mudez e batalha por hegemonia, para garantir um lugar ao sol do cânone.

.
.
.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Último relatório do festival e outros poetas

Nas duas últimas postagens, comentei sobre o festival de Medana, postei poemas do cíprio Mehmet Yashin (n. 1958) e do russo Aleksandar Skidan (n. 1964), além de mencionar o poeta esloveno (e tradutor das Obras Completas de Platão) Gorazd Kocijančič (n. 1964). Nesta última postagem sobre o festival esloveno, gostaria de comentar rapidamente sobre alguns outros poetas que chamaram a minha atenção.

§



É claro que se torna mais fácil apreciar o trabalho de poetas ativos em línguas que dominamos. Entre os poetas anglófonos em Medana, senti muito apreço pelo trabalho permutatório de escrita da canadense Angela Carr. A poeta vive em Montreal e publicou em 2006 a coletânea Ropewalk. No fim deste ano, deve lançar o volume The Rose Concordance. O poema a seguir está na antologia do festival, com o qual Carr abriu sua leitura. Pretendo traduzi-lo para a Modo de Usar & Co., mas por enquanto o mostro a vocês aqui no original:

Of the middle
Angela Carr

Our language with no body, nor less breath running.
Our language less in motion than motion.
Our tongues between properties, dividing,
nipples, the centrelanguage, heartbeat.
By the middle of September I had no body,
I was centrelanguage dividing the missing heartbeat,
my heartbeat, from the present.
By the middle of September I had no property, no body.
By the middle.

I bled language until I had no body.
Between our properties dividing turnips
from snow in the cold bare
vicinity of our language.
By the middle of winter
our story was less motion, language bled from me.
By the middle, I was missing
dividing months from the human
language with no body
honeycombs
frozen
honed
shhhh
but
I cannot breathe nor run with this less language.

I bled language until I had no body.
Bled between turnips and snow
Bled the cold bare language.
By the middle
Our story was less
Language had bled from me
So our story was less.


§

Angela Carr e eu conversamos muito sobre a relação entre gênero e gêneros (GENDER/GENRE), também sobre poetas como Susan Howe e Rosmarie Waldrop.

Esta última foi o ponto de contato, o gosto comum que iniciou uma boa conversa com outro poeta anglófono, ainda que este tenha na verdade nascido na antiga União Soviética, escapando com os pais quando ainda era muito pequeno, hoje poeta americano e tradutor do russo: Matvei Yankelevich. Publicou os livros The Present Work (2006) e Boris by the Sea (2009). Traduziu amplamente para o inglês o poeta russo Daniil Kharms (1905 - 1942), um iconoclasta amante do absurdo em um regime que não favorecia tais pesquisas poéticas.



O trabalho de Yankelevich liga-o à poesia produzida na cidade de Nova Iorque nas últimas décadas, e aos muitos grupos ligados àquele primeiro grupo específico de poetas da década de 50, que ficaria conhecido como Escola de Nova Iorque (New York School of Poets): Frank O´Hara, John Ashbery, James Schuyler, Barbara Guest, Kenneth Koch. Há pontos de contato também entre a poesia deste tradutor dos poemas "absurdistas" de Daniil Kharms e o trabalho dos poetas conhecidos hoje como flarfistas.

Interessei-me também pelo trabalho da jovem sueca Linn Hansén. Nascida em 1983, Hansén acaba de publicar o livro Ta I trä (a tradução do título para o inglês parece ser Touch Wood). Não consigo deixar de me interessar por esta pesquisa textual que leva a um "deflacionar da linguagem poética", jogando também com as expectativas do gênero.

Seria muito difícil escrever sobre todos os poetas. No debate sobre as possibilidades utópicas para a poesia, foi muito interessante ouvir o poeta e professor de filosofia bósnio Senadin Musabegović (n. 1970), que lutou como soldado em Sarajevo e leu poemas pungentes sobre a guerra, durante a qual foi correspondente também para certas agências internacionais.

Ficarei ainda atento ao trabalho do holandês Bas Belleman, da finlandesa Saila Sasiluoto, da argelina Samira Negrouche e do eslovaco Valerij Kupka. Tenho certeza que estes dias na Eslovênia gerarão frutos que ainda não posso ver claramente.

.
.
.

domingo, 6 de setembro de 2009

Pequeno relatório de uma viagem e um poeta russo

O festival de poesia em Medana ocorre todos os anos desde 1996. Convidando sempre poetas entre os 25 e 40 anos de idade, edita a cada ano uma antologia/catálogo com poemas dos autores na língua original, em inglês e esloveno, com uma seleção que inclui muitos poetas do Leste Europeu, entre franceses, britânicos e alemães, assim como norte-americanos, tendo como base uma pequena vila de vinicultores na fronteira com a Itália, a cerca de 150 km da capital, Liubliana. Com sua duração de quase uma semana, o festival, que em esloveno se chama Dnevi poezije in vina (Dias de poesia e vinho), é bastante conhecido entre os vários que ocorrem regularmente aqui na Zooropa. Nos últimos anos, alguns poetas mais velhos passaram a ser convidados, como o britânico Paul Muldoon e o sueco Lars Gustafsson. No ano que vem, já confirmaram a presença do holandês Cees Nooteboom.

Cada festival traz as suas lembranças, os seus contatos com poetas interessantes de países com tradições poéticas que muitas vezes desconhecemos por completo. Jamais me esquecerei dos dias no Festival Latino-americano de Poesia de Buenos Aires, o Salida al Mar, do qual participei em 2006, passando alguns dias preciosos na cidade, com o argentino Cristian De Nápoli e a brasileira Angélica Freitas, além de nossa viagem de ônibus a Bahía Blanca, no sul da Argentina, a leitura com Lucía Bianco e Mario Ortiz que deveria ocorrer no café universitário e acabou acontecendo num bar do outro lado da rua; o festival em Barcelona, quando conheci Nora Gomringer, Monika Rinck e Ann Cotten, três das poetas germânicas mais interessantes da atualidade, também a primeira vez em que fui convidado para um festival como "poeta alemão", o que sempre me pareceu engraçadíssimo; a experiência surreal que foi o Festival de Poesia de Dubai.

Medana foi especial, a hospedagem na casa de famílias dos vinicultores, a organização mais rústica de tudo, os muitos copos de vinho, as leituras ao ar livre, tudo contribuiu para uma experiência menos formal.

Vou tentar comentar alguns dos poetas convidados nas próximas postagens.

Entre os poetas que mais me impressionaram, mencionaria com certeza o russo Aleksandar Skidan, nascido em 1964 na então Leningrado, hoje São Petersburgo. Skidan publicou três coletâneas de poemas e dois livros de ensaios. Por seu último livro de poemas, recebeu o Prêmio Andrei Biéli. Conversamos sobre a poesia brasileira contemporânea, sobre a poesia russa contemporânea, falamos muito sobre Arkadii Dragomoschenko, a quem Skidan chamou de mentor e amigo. Ele ficou muito feliz quando lhe disse que Dragomoschenko era um dos poucos poetas russos contemporâneos conhecidos no Brasil hoje. Especulamos se a relação de tradução que ele mantem com a americana Lyn Hejinian influenciava nisso, já que muito do que conhecemos sobre os russos é filtrado pela tradução para o inglês e francês. Segundo ele, Dragomoschenko seria uma figura de influência subterrânea, uma espécie de outsider, mas muito respeitado na Rússia. Ele disse também coisas interessantes sobre as diferenças entre a cena poética em Moscou e a cena em São Petersburgo. Quando ele me perguntou sobre outros poetas russos vivos conhecidos no Brasil, mencionei Ievgeny Ievtushenko, mas ele então disse, e essas foram as suas palavras, que a Ievtuschenko "ninguém mais leva a sério na Rússia".

Skidan presenteou-me com uma cópia de sua antologia poética lançada no ano passado nos Estados Unidos, publicada pela Ugly Duckling Presse (que tem se dedicado a divulgar a poesia do Leste Europeu), intitulada Red Shifting, com prefácio de Arkadii Dragomoschenko. Seus poemas são longas séries, transcrevo a seguir dois fragmentos que se interligam:

the corpse of idleness
labor´s axe

and something of the blood
as though the cup on Easter

and the beloved is knocking with her staff
but when you get a whiff she smells like an old hag

and this is how the motherland mutters and reeks
mutters and reeks

like the unprintable Word
in the black tabloid

*

the true salt of embraces
the scalpel of the scalp

don´t go away
your kisses

and you´re no longer plying out the nails of pages
no stranger gnawing with night´s teeth along the spine

nor the brain blazing
nor the tender smoke

but the earth´s turf
into which - pulling it apart - you enter

let mouth remember mouth
and lips - lips

bitten



Aleksandar Skidan, do poema "Kondratievsky Prospect", translated by Genya Turovskaya,
Red Shifting (New York: Ugly Duckling Presse, 2008)

.
.
.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Primeira parte do pequeno relatório de uma viagem

Foram dez dias fora do Berlimbo, passando pela Áustria, Eslovênia e Itália, recheados de encontros com poetas bastante interessantes nos vinhedos de Medana, na fronteira eslovena e italiana. Já participei de vários festivais desde a publicação do meu primeiro livro em 2005, posso dizer com segurança que este foi um dos mais interessantes, com uma seleção muito boa.

§ - Klagenfurt, Áustria

Cheguei a Klagenfurt num domingo e a cidade estava completamente deserta. Decepcionei-me em minha crença na famosa cultura-do-café austríaca. Talvez ela se aplique apenas a Viena. Imagino que Ingeborg Bachmann possa ter tido uma infância dos sonhos por aqui na década de 30, com o lindíssimo Wörthersee ao lado, mas entendi, em Klagenfurt, a fúria anti-nacionalista dos melhores escritores austríacos, em especial no pós-guerra. Basta pensarmos em Thomas Bernhard, no Grupo de Viena ou os artistas/interventores do Aktionismus.

Klagenfurt é a capital da Caríntia, no extremo sul do país, região onde nasceram dois outros poetas austríacos de que gosto muito, a obscura Christine Lavant e o influente Peter Handke. Na verdade, tanto aqui como na Eslovênia, há a sensação de ainda estarmos num ambiente cultural que um dia esteve politicamente unido sob a dinastia da Casa de Habsburgo. Europa Central (o termo é controverso) ou portal entre o oeste e leste europeus, os países desta região ainda me parecem irmanados, mesmo que o período comunista se faça sentir na Eslovênia, não apenas na arquitetura.

§- Liubliana, Eslovênia

Tive apenas um dia em Liubliana (Ljubljana), infelizmente não pude ver muito. A cidade é bastante pequena, com pouco mais de 250.000 habitantes, muito bonita, com muito pouco de arquitetura soviética monstruosa, claramente uma antiga cidade que pertenceu ao Império Austro-Húngaro. A cidade tem como ponto central a estátua de seu poeta nacional, France Prešeren (1800-1849). A letra para o hino nacional esloveno foi tirado de uma estrofe deste poeta romântico, que imagino ter sido uma espécie de Gonçalves Dias deles ou, como disse um dos poetas russos: "Deve ter sido o Pushkin deles."

Antes desta viagem à Eslovênia, conhecia pessoalmente apenas dois poetas do país: Tomaž Šalamun (n. 1941), um dos poetas europeus vivos mais conhecidos e traduzidos hoje, e o mais jovem Aleš Šteger (n. 1973), envolvido com a organização do festival. Šalamun é um ótimo poeta e um cavalheiro, um homem muito gentil. Tive a honra de ler com ele três vezes, pela primeiro vez no Festival de Poesia de Berlim, em 2008, no festival European Voices do mesmo ano, também na capital alemã e, em março deste ano, no primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, onde conheci Aleš Šteger pessoalmente. Já conhecia a poesia de Šteger, havia lido vários poemas seus em um antologia de poesia eslovena contemporânea traduzida e editada aqui na Alemanha.

Šalamun estava em Medana na noite em que li e na seguinte, sempre muito educado e encorajador, com comentários críticos pontuais sobre o trabalho de outros poetas. Abaixo, o vídeo da leitura de Tomaž Šalamun no importante "Lunch Poems", série de leituras na Universidade da Califórnia em Berkeley.


(Tomaž Šalamun, série de leituras "Lunch Poems", Universidade da Califórnia em Berkeley, 5 de fevereiro de 2009)

Na primeira noite eslovena, fui levado para a pequena cidade de Ptuj, onde li 5 poemas, ao lado do cíprio (de língua turca) Mehmet Yashin (n. 1958), da francesa (nascida na Tunísia) Nicole Gdalia (n. 1956) e do esloveno Gorazd Kocijančič (n. 1964). As leituras foram muito boas.

Mehmet Yashin é um ótimo oralizador dos próprios textos e nossas conversas foram muito estimulantes. Yashin é professor de Literatura Comparada e Tradução em universidades da Inglaterra, Turquia e Chipre. Durante o jantar, iniciou-se uma discussão sobre os gregos Odisseus Elytis e Giórgos Seferis, ganhadores do Nobel, dois gregos modernos por quem jamais consegui me interessar muito. Quando me perguntaram, disse apenas que confessava não me interessar muito por Seferis e Elytis, ainda que gostasse de muitos poemas de Seferis, mas que os gregos modernos que eu amava sempre foram Konstantinus Kavafis, Nikos Gatsos e Yannis Ritsos. A face de Mehmet Yashin se iluminou e passamos a conversar sobre Cavafy, sobre quem ele escreveu muito e a quem ele considera uma de suas maiores influências. Como Cipriota, Yashin tem o privilégio de pertencer tanto à cultura poética grega como à turca.

Ainda durante o jantar, Nicole Gdalia perguntou-me se eu gostava de Hilda Hilst. Foi a minha vez de iluminar o rosto inteiro e falar sobre a influência de Hilst sobre o meu trabalho. Gdalia dirige a editora Editions Caractères, e publicou em 2005 dois livros de Hilda Hilst na França, as coletâneas de poemas De l’amour e Poèmes maudits, jouissifs et dévots num único volume, e a novela Rutilant Néant. Como não gostar de uma mulher que encerra uma conversa com a declaração: "Tenho orgulho de ter perdido dinheiro editando Hilda Hilst!". Com Gdalia conversei ainda muito sobre Pierre Albert-Birot (ela se supreendeu que um brasileiro o conhecesse e o houvesse traduzido) e o maravilhoso Edmond Jabès.

Gorazd Kocijančič é um cavalheiro, uma das criaturas mais interessantes que conheci no festival. O homem é poeta e filósofo, além de nada menos que o tradutor das obras completas de Platão para o esloveno. Meus três companheiros de leitura inspiravam, cada um à sua maneira, muito respeito.

Partimos na manhã seguinte para a vila de Medana, onde ocorreria nos próximos quatro dias o festival. Escrevo sobre estes dias nos vinhedos de Medana e sobre os outros poetas nas próximas postagens. Abaixo, a tradução para o inglês de um poema muito bonito do cíprio Mehmet Yashin.

Piero I want to die at your hands
Mehmet Yashin

Piero I want to die at your hands
my self is a load too heavy to bear to Venice
I´m looking for the fast lane to suicide
I parked my motor-cycle Piero with you
they don´t care about traffic at this hour, My Lord
Kill me before the red light changes
I started this song in Athens Piero
you silver-bodied other-world of the icons
I a burning prayer-candle Piero
Oh Lord Most High extinguish my flame
Piero my little death angel
aiming his bow at me in naked stone
this world is full of evil Piero
please take me to paradise
for Piero I cannot surrender to life
I can neither hold my tongue nor run away
probably I can no longer live in this world
So Piero may I be buried in you tonight
Piero my little death angel
I want to die at your hands
Piero let´s go.


Atenas, 1988. tradução para o inglês de Taner Baybars e Linda Stark.

.
.
.

Arquivo do blog