domingo, 25 de agosto de 2019

Witzel e os pangarés do apocalipse




Houve
Joaquim Pedro de Andrade?
Houve.

Houve
Alfredo da Rocha Vianna?
Houve.

Houve
Antônio Carlos Jobim?
Houve.

Houve
Angenor de Oliveira?
Houve.

Houve
Vinicius de Moraes?
Houve.

Houve
Machado de Assis?
Houve.

Houve
Heitor Villa-Lobos?
Houve.

Houve
Antônio Candeia?
Houve.

Houve
Cecília Meireles?
Houve.

Houve
Dolores Duran?
Houve.

Houve
Zózimo Bulbul?
Houve.

Houve
Lima Barreto?
Houve.

Houve
Clara Nunes?
Houve.

Houve
Lygia Pape?
Houve.

Houve
Márcia X?
Houve.

Etcétera.
Contudo,

há esse,
o esse

Witzel,

o ovo
choco

do frio
da Candelária,

do calor
do ônibus 174.

Desse pasmo
falso,

desse fracasso,
nasça algo.

*



A república refém, num ônibus sobre ponte de concreto, sob ameaça de ser carbonizada. Do norte, chove cinza. A república - também - executada ao vivo. A república - a mesma - que aperta o gatilho. Uma tragédia só. Não há vitória. Há uma derrota mitigada. Nós somos um fracasso com atenuantes.

Matamos. Morremos. Nos salvamos. A legítima defesa. O alívio e o velório. O bom horror. Não, “enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos”, como escreveu Clarice Lispector sobre Mineirinho.

A gasolina real. A arma de brinquedo. O governador descendo de helicóptero como num pangaré do apocalipse. Fomos salvos. Fomos mortos.

“Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça.” (CL)

*



‪Senhora entre os reféns:

___ “Precisamos acolher a mãe desse menino.”

acerca de Willian Augusto da Silva, que sequestrou o ônibus, e foi morto.

‪Parente do rapaz:

___ “Ainda bem que só a nossa família está chorando hoje.”‬

‪Como no poema de Borges: ‬essas duas pessoas, sem saber, estão salvando a República. Estão salvando o mundo.

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terça-feira, 6 de agosto de 2019

Carta a André Capilé no fuzuê de um toró




Nessa cambada,
que parentesco fora do sangue
nos une, songos

que somos nessa terra grande
das mil zangas?
Zune ao redor o grão-muxoxo

de marimbondos,
enquanto nos emperiquitamos
nessa vida-a-jiló,

nossa pobreza nas quitandas,
nós, uns moleques.
Curingas em preto-e-branco.

E algum antepassado
meu terá ferido ancestral teu,
pele, couro e pelouro?

Bagunça o cochilo essa ideia,
me sinto qual titica
a pensar em crimes que herdei.

Ou jamais hemos nós
de saber em que parte da carne
carregamos o algoz?

O algoz-pai que agua
a nossa tinta, o dendê na ginga?
Dóem pés-na-bunda,

chafurdar qual minhoca na farofa
da dor nacional.
Doar nosso fubá, nossa canjica,

as babas do quiabo nas bibocas.
Nenhum cafuné
exigimos de cidadãos, só aluguel

para o cafofo pago, paz na roça.
O abuso da cachaça,
já sabemos, é culpa toda nossa.

Seguimos. Ninamos
traumas como a filhos que um dia
enfim se emancipem.

Examinamos sem dedo e aliança
o campo comum
da batalha, maxixe do cangaço.

Por ti às vezes me candomblo,
macotas no toró
de línguas-fantasma sem plural.

Nesse nosso dengue anti-capanga,
capenga, o samba nosso.
Parentes, até o beleléu, sem igual.

*

Berlim, 02 de agosto de 2019. Retrato de André Capilé por Vinicius Vargas.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

“Carta à mais caçula [para ser lida por Maria Eduarda Domeneck Ramos quando chegar a hora]”




Chegada nessa gravidez tardia
da irmã caçula a esse rodízio de caçulas,
na casa onde já tombaram
a goiabeira, o coqueiro e o pé-de-acerola,
donde não mais se ouve
nem o bem-te-vi nem o fogo-apagou
e mesmo alguns humanos
jazem já no Cemitério São João Batista
da Paróquia de São João Batista
para a qual teu avô leiloou tantas leitoas,
bem-vinda a esse planeta delicioso e terrível,
bebezinha qual matriosca às avessas,
na qual a versão menor esconde a maior,
tendo já em si a mulher fortíssima que serás
pois assim foram tua bisavó, tua avó e tua mãe.

Não conhecerás alguns de nós,
a Dona Rosária das cidreiras e pirões,
a Dona Concheta da romãzeira e hortelã,
tampouco Seu João, o Garganta de Ouro.
Mesmo assim, bem-vinda à família penhorada.
Há muitos de nós ainda
para tentar te defender dos tropeços
que nós mesmos demos,
conselhos que por certo ignorarás
como ignoramos os que nos foram dados.

Aqui aprenderás entre as milhares de línguas
do planeta uma única língua específica
com as intonações particulares
desse país, região, comarca e casa
das terras da Vila de São Sebastião do Bebedor
cuja gleba foi paga a prestações de porcos
e a última com um cavalo de sela arriada,
onde temos dificuldade com plurais e pronomes
pois em nós mesmos jaz uma língua-fantasma.
Dou-te o primeiro conselho,
que só um Domeneck entenderá:
Não adianta ser uma boca-de-Leandro
nessa viagem Rua Campos Salles abaixo.
Há que se lutar e amar com o miocárdio
que nos foi dado. Este que te bate.

Nesse fim-de-mundo-grande sem porteiras
começarás a aprender certas coisas
importantes para a universalidade nacional
como a maneira com que cai a renda
das famílias conforme se distancia a rua
de suas casas do Lago de Bebedouro,
e como, apesar de bonita como um parque,
te será proibido entrar na Chácara Furquim
porque é propriedade privada
assim como não poderás colher laranja alguma
dos laranjais imensos que circundarão tua infância.
Ao Horto Florestal, serás avisada
nunca ir sozinha por ser menina, por ser mulher.
Desses perigos saberás a tempo.

Mas há prazeres de graça. Verás.
Tem o bumba-meu-boi e o circuladô-de-fulô,
o carnaval e a procissão e a eleição,
a chuva e o toró, tem as canções de fossa
para as paixonites agudas.
As dores de amor gostoso virão com o exército
de cigarras-do-cafeeiro que já nem sei
se ainda infernizam as primaveras.
Muita coisa já sumiu, escafedeu-se.

Tem os doces açucaradíssimos
pois se moveu por séculos o açúcar a colônia
por que não abusarmos dele hoje?
Muito sangue derramado por café e açúcar
corre agora em teu sangue adocicado
e verás em casa como o açúcar do café
ferve-se junto já de sua água.
Tem a Nossa Senhora negra e a Iemanjá branca
e mesmo teu avô, católico apostólico romano,
não deixava de fazer suas oferendas ao mar
depois de rezar seu terço.
Mas é possível que parte da família te alerte
sobre a interdição de imagens de barro.
E o mar é longe, mas tem dezembro. Tem janeiro.
Janeira-se muito por aqui,
como janeiraste em pleno julho.

Teu avô nasceu sob Getúlio Vargas.
Tua mãe e eu, teu tio, sob Ernesto Geisel.
Um dia aprenderás estes nomes.
Eles agora não te importam
como o leite e o colo.
Estes nomes são apenas as cólicas do futuro.
Por ora deixe conosco as dores de agora.
Cuide cicatrizar na barriga o cordão-umbilical
que secará e será enterrado no quintal.
Esta será tua primeira cicatriz.
Te desejo que teu tempo te seja mais leve
do que nos foi o nosso, e em meio
a alegria muita e alergia nenhuma
cresças para descobrir
as delícias-desgraças de tua terra,
as desgraças-delícias de sermos o que somos.

*

Berlim, 25 a 28 de julho de 2019

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segunda-feira, 8 de julho de 2019

HOMENAGEM JOANINA


João Cabral de Melo Neto & João Gilberto


um dia dirão:‬
‪houve joões
‪nesse inferno
‪de tabeliães,
‪cabral e gilberto,
‪a cantar chãs
‪com a elegância ‬
dos pães.

anti-supérfluos
deram a lição:
‪antes ser cães ‬
‪ágeis a leões
de dó e dengo.
‪eis o alerta‬
‪contra o joio
e os rojões.

menos pedras
do que tijolos,
disseram:
amem o silêncio
mas não em excesso,
pois nos corpos
nua é a voz,
o barro de joões.

pau seco, bossa.
brio de candeia.
garbo de cartola.
do aleijado destro,
um útero-igreja
em ouro preto.
a pedra-pomes
à pele morta.

dos cadivéus,
a redoma de ocas.
chega! abaixo
os panteões.
filhos somos
de corujas-diabos,
urubus-reis,
caboclos gaviões.

nada fomos
além ou aquém
do que somos:
micos de ouro
e não leões,
mas nos quais mora
a força de onças.
bicos de falcões.

*

7 de julho de 2019

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quarta-feira, 3 de julho de 2019

Francisco Bley & Ricardo Domeneck - "Os afazeres" (vídeo de Frederico Klumb)

Com Francisco Bley no estúdio Mylo em Curitiba, janeiro de 2019

‘Os afazeres’ é uma colaboração que nasceu em 2018 quando conheci o compositor curitibano Francisco Bley em minha passagem pela capital paranaense. Bley, que já trabalhou em peças sonoras de poesia falada com poetas como Elisa Lucinda, compôs e propôs essa bela peça eletroacústica ao piano com sons processados, à qual decidi unir com minha voz o poema “Os afazeres domésticos”. Retornei a Curitiba em janeiro de 2019 e gravamos o texto no estúdio Mylo. Com a peça pronta, convidamos o carioca Frederico Klumb para a composição visual que acompanharia a colaboração, e estamos muito felizes de poder mostrar agora essa tríade entre música, texto e imagens. No entanto, trata-se de uma colaboração ainda maior: montada a partir de imagens de arquivos familiares, precisamos agradecer a todos os amigos e colegas que atenderam ao chamado e nos enviaram fotografias de suas infâncias em vários cantos do país. A estas imagens, Frederico uniu outras do arquivo histórico do país. E assim, aqui estão os afazeres. 


 –– Ricardo Domeneck, junho de 2019





Os afazeres domésticos
Ricardo Domeneck


           “Há-de nascer de novo o micondó —
            belo, imperfeito, no centro do quintal.”
                         –– Conceição Lima


É o nosso trabalho dizer agora que hão-de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninar.

E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há-de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã.

E que o vô morto voltará em sonho para ralhar
até a bandeira nacional mudar de cor
com estes desnaturados que não se cansam
de dar desgosto a seus antepassados
que cruzaram oceano não só para a desgraça
trocar de passaporte e vegetação ao fundo.

E é nosso trabalho dizer que os avós sequestrados
d’além mar hão-de alforriar-se em nossos corpos
e que os antepassados deste lado do Atlântico
hão-de reaver seus quinhões de terra preta,
e juntos, entre a hortelã, o boldo e o capim-cidreira,
de mão em mão as xícaras da saúde que nos elide.

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sexta-feira, 14 de junho de 2019

A meditation on the dimensions of our corporeality through David Schiesser's work



German artist David Schiesser and one of his murals
(photo by Yannic Poepperling)

One could possibly tell the history of our species and its relationship to the world, their reality, our reality, through a narrative accounting for the expansion of dimensions. Eyes on the horizon, three-dimensional preys and predators running, the hunt. The birth of symbolic thought on bidimensional drawings on charcoal and ochre, composed within that elusive dimension, time. But there, in the dark of caves, our most basic notions of art and reality were set in stone. Our vocabulary may have expanded, but we are still on those walls, running among aurochs and other animals, some already extinct. 

Yes, since then, string theory has postulated the existence of at least 7 more dimensions, most of them beyond our perception. Because they were not needed for our survival, our evolution? Or are they perceived in some other way, mysterious, yet palpable? Three dimensions for five senses. Length, width, and height. And time, time, the elusive fourth which causes so much transformation in the length, width and height of our own bodies. Sight, vision. Hearing, audition. Taste, gustation. Smell, olfaction. And touch, somatosensation. Does time not wear these senses out? Do you see what I mean? Our vocabulary expands. Or should I say, do you hear me, as you touch this page? These are our sensory modalities. And are these not senses then, our perceptions of temperature (thermoception), movement (proprioception), pain (nociception), balance (equilibrioception) and vibration (mechanoreception)? Some go as far as to include internal sensations, such as our senses of hunger and thirst, in our list of tools towards conceiving the world.



But we are still on those cave walls, eyes scanning the horizon for meat. Scanning the street for the arrival of the body of the beloved. There must be an integral pleasure in being a human and drawing. We keep on counting. 1, 2, 3. This dimensional game comes into play in our bodies themselves, on which the largest organ strikes us as bidimensional: our skin. And yet it covers our length, width, and height. In some cultures, it can be stretched into bidimensionality, as in Japan's black market for tattooed human skin. It is this dimensionality that seems to be in constant operation in David Schiesser’s work, from our oldest practices with charcoal to the latest programs in photography. This operation of length, width, and height translating themselves into lines drawn on a canvas, or on the skin of humans who offer their four-dimensionality for David Schiesser's drawings, his work as a tattoo artist on bodies that will be ravaged by time.



In Peter Greenaway's film 'The Pillow Book' (1996), the writer Nagiko, played by Vivian Wu, says: “The smell of white paper is like the scent of skin of a new lover who has just paid a surprise visit out of a rainy garden. And the black ink is like lacquered hair. And the quill? Well, the quill is like that instrument of pleasure whose purpose is never in doubt but whose surprising efficiency one always, always forgets.” The film references Sei Shonagon's classic diary 'The Pillow Book' [ 枕草子 Makura no Sōshi ], completed in the year 1002, in which she lists among unsuitable things, “Ugly handwriting on red paper”, because there is an erotica of lines on planes, an erotica of drawing. It is our engagement with the world.

In his treatise on the Vampyroteuthis infernalis, comparing the evolution of vampire squids and humans, Vilém Flusser writers: “We have been exiled to the surfaces of the continents. There we have managed to walk upright – to erect ourselves – and now we loom into the third dimension, into space (heavenward, if you will). It [the vampire squid] has been exiled into the depths. There it has managed to erect itself and now it touches the seabed like an open palm. In so doing, its palm is analogous to ours, but it is not concerned simply with feeling the third dimension, as we are, but rather with feeling multidimensionality.”




As humans, arrested in our three dimensions (plus time, time the elusive), we may all be as in the tale of the blind men describing an elephant through just one sense. It could that art is this attempt: to reach the unperceived realities of string theory through our lacking senses. But even in our industrial design, objects try to shape themselves to serve our bodies, as I seem to infer from David Schiesser's collection of chairs in which his practices attempt to morph into one: the drawing, the tattooing, the skin and the canvas. Our relationship to the world of lines and planes is here, in a body that calculates the heights, lengths and widths so as to climb a staircase safely. The folding of lines and planes of a body that sits down. And if we have brought evolution into this, it is clear why the various species of flatfish seem to obsess Mr. Schiesser. The flatfish that has cheated the cage of three dimensions for safety and survival.




Let me close this attempt at a meditation. Writers are often summoned to make sense of the work of visual artists, though we do not share in the proceeds of this sense-making process. I could have saved your time by simply stating: the pleasure I derive from David Schiesser's work is first of all immediate, direct, and wholly available to my primitive senses already ravaged by time. If I were to attempt a list of pleasurable things, in the style of Sei Shonagon, I would included David Schiesser's lines on planes, yes, that abstract two-dimensional surface with indeterminate width and length, zero thickness and zero curvature, on the curvature of my thick eyes.



Ricardo Domeneck
Berlin, March 15th –– 21st, 2019

(Written originally for David Schiesser's solo exhibition
Die 3 Achsen unserer Leiblichkeit
at Blake and Vargas in Berlin)




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quinta-feira, 13 de junho de 2019

NOSSO DESNATURADO HABITAT


Somos assim, bichos
na primavera dos polos
opostos da Terra,
nos climas inclementes
cortejamos o desastre,
convidamos extremos,
amadores em toda arte,
qual urso polar no Saara
ou no Pantanal, camelo.
Pobres, mendicantes,
excedemo-nos na pechincha
com cupidos, bichos-preguiça
a implorar misericórdia
entre os dentes da onça.
É esse constante desequilíbrio,
desencaixe entre o parafuso
e a arruela e a porca,
porque na sede tamanha
levamos à boca a concha
pelante de quente da sopa.
Somos uns glutões, glutões.
É esse o desconforto de velhos
que insistem na roupa
dos tempos de adolescência,
é uma convalescença longa.
Só torcemos pelo empate,
querido co-bobo da corte,
mas herdamos encalhe,
descarrilamento, disparate,
somos assim, uns pinguins
apaixonados por porcos.
Eu te olho, reolho, desolho
e peço apenas que pingues
tuas proteínas nos meus poros,
faças uma poça no meu umbigo
para que dela me alimente
como no gelo extremo focas
cavam buracos para a fuga
de sua gordura inocente,
e para oxigênio, as belugas.


§

Berlim, 13 de junho de 2019

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quarta-feira, 12 de junho de 2019

"Frangalhos de um discurso, amoreco" ou "A paixonite segundo R.D."


Nan Goldin - "Empty Beds, Boston," 1979

Neste Dia dos Namorados no Ano de Nossa Senhora da Escuridão 2019, para os que os têm e os que não os têm, seguem abaixo poemas de minha lírica amorosa, extraídos de nove livros, da minha estreia – Carta aos anfíbios (2005) – ao mais recente – Odes a Maximin (2018). É a atualização de uma postagem de 2010. Incluí também dois poemas de um livro inédito, intitulado O sol ao meio-dia e meia.


O pão partido

Houvesse um telefonema,
haveria uma voz; eu
emagreço, que prazer
ajustar-se melhor
aos ossos. Levitar
até o teto; basta mover-se
na direção certa
para viver de inverno
em inverno. Meu corpo
seu estrado, o colchão
a falta, em concha
peito e costas
aconchegam-se
em útero: e a falta
redobrada.
O cordão umbilical uma
ausência explícita, que
digestão suporta
uma hóstia?
A boca abre-se à
expectativa,
saliva
produzida nas glândulas
da anunciação.
Pão partido, corpo prurido
every single time.
Mas separam-nos
o jejum e as
orações de minha mãe,
a possibilidade
de um oceano
e seu condiloma
imaginado.
É 1654 e cavalos
(oito) tentam separar
as duas metades de
uma esfera unidas
pelo vácuo; em apenas
dois por cento das caças
um urso polar
tem sucesso mas
seu pêlo é branco! e oco
para conduzir melhor o sol;
brilhar e desaparecer:
camuflagem perfeita e o único
predador a fome.
A hóstia sempre
um prelúdio,
não uma rememoração.


[de Carta aos anfíbios, 2005]

§

A pele medrosa cicatriza-se: e recomeça

1.

esta perturbação inicial, garfo
que não encaixa na boca
e a comida cai, num prato
assustado; o copo
d’água vai de encontro
ao dente. A garganta
estende as palmas
de vontade.

2.

O algodão úmido
na testa eriça-me
o quebranto; o soluço
acelera o ritmo.

Visto o casaco alheio
e me perco no cheiro,
um instante,
um instante.

O flagrante
do dono
perturba-me
o sono.

3.

Timidez
de pés

em casa
estranha,

que ao
ensaio

da distribuição nova
do peso descobrem

a levitação.

4.

O chão é um convite
recorrente, constante; algo em nós espera
o reencontro. Até que o vento.


[de Carta aos anfíbios, 2005]

§

digo ao telefone
meu nome querendo
dizer sou eu
no tom
de voz de quem
diz estou chegando
na escala de dentição
da intimidade
e ele interroga
quem querendo
dizer apenas você
como quem
questiona qual
o seu direito
em ter um
nome ambos
comércio e
sexo sua
ofegância repetitiva
prometem a mecânica
a cruzar o divisor
que separa o conhecimento
dos objetos
prováveis antes
do sono
prega etiquetas nas
coisas cama
na cama criado
-mudo no criado-mudo
amante no amante
ausente


[de a cadela sem Logos, 2007]

§

em minha boca ele
alcança o meio-dia
mas a intermitência o
apreende como em
qualquer música
cúmplice do acaso a
pessoa começa a
afastar-se desde que
se aproxima a distância
existe entre pele e
pele cada imagem
dobrando a esquina
não configura
sua chegada
ele
só chega quando seu
corpo chega carregado
pelas próprias pernas
e jamais falha que
eu o reconheça
de imediato
como dono de
certos lábios voz
nome e um modo
de apresentar-se
ele
chega o mundo
assume uma nova
forma: a do
equilíbrio precário do
mundo


[de a cadela sem Logos, 2007]

§

Autorretrato para agência de acasalamento

a-
pós
a noite
em claro com
Antonioni / Plath / Radiohead
você pergunta-me
pela vida humorosa?
(cf. O. de A.)
autodevastar-se
a única
art we master,
só nos entendendo
via subtração,
nossos encontros
fantásticos!, cavalheiros,
como anseio
por ele
que piora tudo;
horas
para arrumar-se
e no fim
estes trapos?
ornam,
combinam,
caem
tão bem;
aguardo o dia
em que tudo
o que disser-me
o ventríloquo
seja a citação
de alguém algures,
como desaparecer
completamente;
nosso amor durou
quinze hematomas
e a incubação
da escabiose,
minha herança!;
quando acordei,
cada coisa em seu
lugar onde
eu, eu, eu
deixara;
ah! amar é
inter-
ferir,
salvar
se de si


[de Sons: Arranjo: Garganta, 2009]

§

Comecei a fumar porque você fuma
e eu certamente não queria viver
mais do que você. Agora já sem
o seu hálito, suas bitucas e cinzas
na mesma cama, começo o dia
com um cigarro, exatamente
e ainda pelo mesmo motivo.


[de Cigarros na cama, 2011]

§

Os amigos sugerem passatempos
e festas, acquaintance com anatomias
inéditas, corpos novos. Como? Quem
se compara aos seus côncavos
e convexos?
Por ora, moço,
você ainda defeca
ouro.


[de Cigarros na cama, 2011]

§

Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos

a Jannis Birsner

Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Pinguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.


[de Ciclo do amante substituível, 2012]

§

As canções como álibis

A culpa não
é minha, querido. O mau
exemplo foi de Maysa,
quase lançando-se, Brasília
azul e tudo, da Rio
-Niterói abaixo.
Por tanto,
esta minha falta
de pose,
esta minha recusa
a respeitar mãos
únicas, a gravidade.

Tenho meus álibis, moço.
Que esperava, se Ângela
Rô Rô
tampouco me ensinou
a aceitar o horror
do copo só, testa
contra o balcão, prática
da primeira pessoa
do singular?

Que você atire
a primeira
pedra, Dolores
Duran. Curta
é sempre a vida
quando se habita
a letra
da fossa, ou se fala
com a língua no oco
a língua do sim.

Carpe diem,
diziam os árcades,
hoje nem reconhecíveis
por suas arcadas
dentárias.
Prefiro carpir ou cuspir
meus dentes
a deixar de chocá-los
com os seus.

Moço, quisera fôssemos
como dois corpos
de água,
a que basta
um toque
para que se tornem
o único e o mesmo.
Você gargalha
enquanto pesquiso
em sua glote
o dicionário
do riso
e eu aguardo sua voz
para guardá-la num cofre
forte como uma noz.


[de Ciclo do amante substituível, 2012]

§

Receita de estropício ao molho caipira

Eu me encolho, enfolho feito alcachofra
se a tua boca não lambe o abracadabra.
De novo manhãs de toró que açucaravas,
abrir tão-só minha braguilha é monótono,
vem, já me cansei das mil e uma moitas.
Ando de banda, todo aguado, borocoxô
nesse meu baião-de-um, essa gororoba
sem sal, a minha vidinha tão mequetrefe
quando me esculhambas, negas cafuné.
Eu sou uma bugiganga jogada às traças,
um zé-ninguém nesse angu de caroço,
chulo, sem o teu dendê, bobó de bobo.
Prometo, querido, tirar baba do quiabo,
proteger as osgas, aguar samambaias.
Volta logo, bate à porta, já gora o ovo.


[de Medir com a próprias mãos a febre, 2015]

§

Texto em que o poeta dispara sua última torrente de elogios, neste que oxalá seja o último poema para O Moço

Cavalinho de desequilíbrio, geringonça desastrada,
espargidor no meu carpete dos cafés sucessivos,
peixe de lago constante, camundongo do mato,
coisa alta, ninfo palidíssimo para novos poetas
decadentes, filhote albino de tigre, loa de sertã,
guia da trilha ao descampado de meu bosque,
enguia-de-muco, alface-de-cão, dente-de-leão,
insistência heróica na busca dos sobreviventes
de mim, aquele que transporta o meu cale-se,
arquivista de minhas enumerações caóticas,
com esta minha cachoeirinha de atributos
ao teu tórax e cóccix, eu juro que juro
que esta é a última vez que te canto.


[de Medir com a próprias mãos a febre, 2015]

§

Maximin, o servo e a princesa abássida

"Eu contive o nome do meu amor       e o repetia sozinha, calada.
Como anseio por espaços abertos     onde o possa ouvir gritado."
--- ‘Ulayya bint al-Mahdī (777-825), poeta e princesa do Califado Abássida.


Escondo de todos teu nome, Maximin,
tal qual ‘Ulayya bint al-Mahdī, proibida
de sequer dizer o nome de Ṭall, o khādim
que amava, silenciou do al-Baqarah
numa leitura o versículo que continha
a palavra. Ṭall, que é também orvalho.
Onde estará agora o generoso califa
que ao ouvir sobre tal zelo de beata
profana, comoveu-se de seu embargo
e a ‘Ulayya doou seu amado khādim?
Quem há-de me conceder meu Maximin
por esta minha concupiscência calada,
mas, em permuta, fazendo de mim
servo, de Maximin príncipe abássida?


[de Odes a Maximin, 2018]

§

Maximin nosso que estás na terra

Quantas vezes pedi a orixás e santos,
Maximin, fazer de mim todo ânus
quando de pé te vejo, ou em decúbito
seja ventral ou dorsal, ventríloquo
que és do teu pau. O teu corpo todo
é só chão sob obelisco, do chuço
madeira que apoia a ponta-de-lança,
em oito quinas tu me fazes cubo.
Quisera em teu tanquinho ralar a pança.
Que o guindaste erga-se! Eu flutuo.
Não sou eu só invólucro de um cu
e boca? Entra. Que jamais descanses.
Não espano, porca do teu parafuso.
Maximin, cruza enfim o Arco do Triunfo!


[de Odes a Maximin, 2018]

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quarta-feira, 15 de maio de 2019

A morte em parcelas

             a Francisco Bley

A primeira vez que eu morri,
gaguejei ao amigo se se sobrevive
a essa morte em parcelas
e o amigo, já escolado
em mortandade, respondeu: sim,
se sobrevive, se atravessa o quarto
em chamas e se emerge no jardim,
chamuscado, a musselina pegada
à pele, a própria pele qual musselina,
mas vivo, ainda, ainda mais para cá
do que para o além, quando hemos
de estar não só alfabetizados
mas psiomeguizados nesse vocabulário
das perdas crescentes como as dívidas.

Isso, isto deveria servir de consolo,
como volta a primavera de Perséfone
em férias no submundo, e voltam peixes
a rios devastados, e as baleias a mares
de plástico, e até o sol volta ao Ártico
após uma noite que dura meses.
Ainda que se sinta isso como castigo.

As alegorias mais esdrúxulas
já foram usadas para essa teimosia.
As alegrias mais estapafúrdias.
Almodóvar e o coma em meio a touros,
Duras e os brotos no solo de Hiroxima.
Notem a audácia. Se se sobrevive?
Sobrevive-se.

Rá monta de novo sua carruagem,
o Cristo ressuscita, Dom Sebastião
volta. A holotúria, o rabo da lagartixa,
o braço da estrela-do-mar, etc, etc.

E Hiroxima reconstruiu-se deveras.
Taparam-se as crateras em Berlim.
Vidas individuais, vidas coletivas
que se erguem de escombros
tanto do amor quanto da guerra.

Mesmo que maremotos salguem a terra.
Notem, notem a nossa audácia.
A teimosia dos pulmões. Do coração.

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sábado, 13 de abril de 2019

Em transe com a poesia de João Vário


João Vário (Cabo Verde, 1937–2007)


Foi totalmente por acaso que descobri a existência do cabo-verdiano João Vário (1937–2007) e sua poesia sem paralelos. Estou totalmente absorto por seu trabalho. Faz-se urgente a edição de sua poesia no Brasil.

Nascido em Mindelo, na ilha de São Vicente, a 7 de Junho de 1937, João Vário foi o principal pseudônimo de João Manuel Varela, que também assinava certos textos como Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial. Ele foi poeta, escritor, neurocientista, cientista e professor. Estudou medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorou-se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde foi pesquisador e professor de neuropatologia e neurobiologia. Retornou à Mindelo natal após aposentar-se, e aí morreu a 7 de Agosto de 2007.

Descobri seu trabalho ao topar com a capa da reedição de seus Exemplos pela editora portuguesa Tinta-da-China, que vem fazendo um ótimo trabalho de recuperação de poetas da língua, como há pouco tempo na edição dos Poemas quotidianos de António Reis.

O volume Exemplos de João Vário reúne os volumes Exemplo Geral (1966), Exemplo Relativo (1968), Exemplo Dúbio (1975), Exemplo Próprio (1980), Exemplo Precário (1981), Exemplo Maior (1985), Exemplo Restreint (1989), Exemplo Irréversible (1989), e Exemplo Coevo (1998). Tente conseguir um exemplar. Eu estou caçando o meu. Abaixo, alguns excertos vários de Vário. Poeta gigante da língua.




EXCERTOS DOS EXEMPLOS DE JOÃO VÁRIO

Mas hemos de acrescentar o hino ao hino,
o signo ao signo, a mó à mó
como o pão se gasta para atenuar
a vetustez do mundo. Ah dizemos bem.
Não há expectativa que invente
a medida para esta bebida
entre foice e erva, entre a multidão e o desdém,
e, contudo, a vocação
bebe onde o mundo não quer
nem predissera, porque bebe deus
e parte de seu caos, essa parte
que escapa à causalidade e à profecia.

*

E todas as coisas jazendo sobre o pavor da boca,
hoje finitas ou nossas, amanhã paralelas ao cordeiro
de deus, magníficas,
como sabemos soprar sobre estas achas enquanto velhas,
todas estas coisas que chegam e não sabem como partir,
como sabemos nós evitar o azedar do leite,
ah todas estas fábulas mesmo com o galo molhado
este pão ou este galho com o seu esperma,
tal como não sabemos como a cabeça tocará o pó,
se de leste, de oeste, se lentamente ou
despedaçando-se, rápida, sobre o passado de Édipo,
e vimos os mesmos dias mas sem os mesmos óbolos,
fugindo de tectos malignos ou de areias vis,
e, porque vamos perdendo este dom da terra,
não há melhor fidelidade em toda esta prova
qua a que vem com a simples veemência,
a desdita de ficar com a boca de outrem,
impassível entre duas chegadas,
mudando a pele dos joelhos
ou deixando o sexo abrir
essa angústia divina, esse sarcófago bento.
Somos, por certo, o que esperam as coisas todas:
nem isto nem aquilo, apenas as melhores trevas.

*

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?

Vamos pela vida arrastando essas noções
de nação, de cultura, de civilizações
- coisas estranhas, sem dúvida, à índole do mundo,
da fraternidade ou da natureza,
porém coisas talvez da ordem das coisas,
das fábulas ordinárias,
mas será que somos disto ou daquilo, que a verdade é essa,
que não escutamos senão de dois ouvidos
e há um país para a leitura
dos nossos mitos próprios
e que a alma não acende além do madeiro recebido
as parábolas que o auxílio sugere
e as volvem, quando deus morre, melhor árbitro do mundo?

*

Sabe-se que os homens são fracos, volúveis,
que esta terra é pequena e molesta,
e o bem e o mal apenas são esse tédio das euménides,
porque, em verdade, os justos não se revoltam,
as musas são imperturbáveis
e não pode haver Sodomas e Gomorras indefinidamente,
porque o homem olha e é Deus que se faz estátua.
Tal, se nos interrogamos sobre o sentido do desvelo
ou da violência, como ele as duas metades
do nosso corpo separa, dando metade
às nossas camas e a outra metade distribuindo
por estranhos como moeda pobre ou erva de Constantinopla,
o fundo tocamos de tal imprevidência e a abundância
que a vida reduz a essa conta divina: o âmago irreconhecível,
a casa, a mulher e tal dom da imaterialidade, da decifração.

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?

*

Da morte nos ficou esse dom de a pensarmos
como coisa sua, coisa por que a pensamos
e acaso não a exprime, porque a
designamos.
Bizarro não é, pois, estar morto, mas lograr
que o tempo em si consigo não aja,
e erga a mão como quem sabe que a mão é
nossa
e não exprime
o que ambos exprimem,
uma, por mão, outro, por tempo que
aprende,
exprimem e juram em redor da mesa.
Para o que há sido o modo, a qualidade
de uma infinita aparição
ou o que há de exílio no exemplo que a
dissemina,
decidem a tradição e a carência
a espécie de facilidade que rememoraremos.
Sobretudo, decidem quando devemos
morrer
para pagar
a legitimidade ou o que há sido anomalia.

Porque de tudo nos ficou esse donde não o sentir, de ficar com ele
só quanto seja a coisa que não tivemos.
A maturidade ou a alegoria que a tem
de outra coisa, oh a maturidade
não nega o que tememos.
O que queríamos dizer está já morto;
que poderíamos, pois, agora
acrescentar a essa alegria?
Da condição da morte, o que morre
é nosso, e, além dele, dos bens nossos.

*


E então subimos aquele grande rio
e as portas do Ródão, chamadas. Era em abril
dois dias depois da neve
e da cidade dos nevões, na serra.
E olhamos para os penhascos da beira-rio,
as oliveiras, o xisto, a cevada
as ervas de termo, e as colinas.
E, junto da via férrea, os homens do pais
miravam-nos como se fossemos nós
e não eles os mortos desta terra,
homens do medo e do tempo da discórdia
que trazem para o cimo das estradas
a malícia que vai apodrecendo
seus pés neste mundo e em terras de outrém.
Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, os homens,
perdidos que estais, hoje como ontem,
entre a casa e o limiar?
E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.
E, na verdade, porque regressaremos,
após tantos anos, a este tema?
Será que a morte nos ensinou
a olhar para o homem com pavoroso êxtase?

*


Há muito passado no estar aqui com o tempo,
Fim e reconhecimento, e não sofrendo nada mais do que o tempo concede,

Fim de novo e reconhecimento de novo
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosissimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento e festa, ou cilício, e tempo de cair e tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da vida
São os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por elas, e ganhando constância.

Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemíssimo comentário,
E então consta que amámos.

§

Leia um artigo de Rui Guilherme Silva sobre o trabalho de João Vário e também do escritor Armênio Vieira, primeiro cabo-verdiano a ganhar o Prêmio Camões, em 2009, além de Germano Almeida no ano passado: 

de Rui Guilherme Silva.

Leia o obituário escrito por Alexandra Lucas Coelho
n'O Público quando morreu o cabo-verdiano:
"João Vário, o poeta quase secreto"

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sexta-feira, 12 de abril de 2019

Sobre o Parque da Redenção em Porto Alegre e uma tela de Iberê Camargo


Iberê Camargo - ‘Ciclistas’ (1989)


Não conheço Porto Alegre. As imagens que sempre tive de lá estão ligadas a três artistas brasileiros do século XX: o romancista Erico Verissimo (1905–1975), o poeta Mario Quintana (1906–1994) e o pintor Iberê Camargo (1914–1994). Dialogo e acompanho o trabalho de alguns gaúchos contemporâneos, muito diferentes entre si, como Veronica Stigger, Angélica Freitas, Fabiana Faleiros, Melissa Dullius, Eduardo Sterzi, Marcus Fabiano Gonçalves, Gustavo Jahn... mas deixaram todos eles os pampas e os capitães-rodrigos pelos frangalhos da Mata Atlântica e os sargentos-de-milícias. Eu os imagino agora, bebericando aquele horror de amargura intolerável que é o chimarrão. Uma parte de mim nunca conseguirá confiar completamente neles por realmente GOSTAR daquilo.

Enfim, isso tudo apenas para dizer o seguinte. Em 1999 houve uma retrospectiva de Iberê Camargo na Pinacoteca de São Paulo. Aquele ano foi muito marcante para minha formação em termos de arte visual: além desta, fui muito impactado então pela retrospectiva de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de São Paulo, de Samson Flexor na FIESP, além de grandes exposições de Arthur Bispo do Rosário e José Leonilson já não me lembro onde.

Eu caminhei pelas salas com quadros de Iberê Camargo em transe. E uma série de telas me trouxe lágrimas aos olhos, nunca me esqueci. Eram os seus “Ciclistas”. Uma delas tinha um título que era um poema em si, ‘Ciclistas no Parque da Redenção’. Aquilo era uma metáfora maravilhosa da vida, da existência de tudo! Éramos todos isso: Ciclistas no Parque da Redenção. Eu jurava que era uma metáfora. A metáfora que eu jurava ser metáfora (e é) acabou entrando num poema que dediquei a meu velho amigo e concidadão de república estudantil, Pablo Gonçalo, no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).

Pois esta manhã eu quase caio da cadeira em conversa com Melissa Dullius quando ela menciona o Parque da Redenção... que existe. Os ciclistas no Parque da Redenção eram ciclistas mesmo, no mui físico e localizável Parque da Redenção. Mas fazer o quê? No Brasil pode-se até pegar um ônibus da Consolação ao Paraíso.

A pêndulo, a represa

      “onde o sino triparte o maior desespero
                     ao som tríplice do teu nome.”
                                 — Christine Lavant

                        a Pablo Gonçalo

Entre o
anúncio do dilúvio e o
deserto vermelho,
nosso tempo e nosso peito;

entre o
temor e o terror,
o corredor estreito,
mas nossos pés são pequenos

“once human always an acrobat”

o fardo leve
e o jugo suave
dos ciclistas no parque da redenção:

a oeste do meio-dia
existir segue denotando
e pressupondo movimento

e o descanso é eterno
e condicional.

— Ricardo Domeneck, in Carta aos anfíbios (2005).


Vista aérea do Parque da Redenção em Porto Alegre, oficialmente Parque Farroupilha.

§

Notas:

1- “once human always an acrobat” é uma citação de Rosmarie Waldrop.
2- Leia o poema completo da austríaca Christine Lavant, do qual extraí a epígrafe,
na Modo de Usar & Co.

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quinta-feira, 11 de abril de 2019

Alguns poemas contemporâneos que eu gostaria que vocês conhecessem

Postagem com poemas escritos nas últimas décadas que aprecio muito, dentre os vivos. A publicação é atualizada de tempos em tempos com textos mais recentes.

POEMAS CONTEMPORÂNEOS

Sabugo
André Capilé

1. um possesso

nunca nasci e assim me lembro.
tudo que tenho é o que carrego

no corpo: planisfério pele
e pelo — o que chamar de meu.

2. no teste dos dentes

imprescindível — para estar

íntimo — o silêncio.
tudo que sei desse pão
— que fazer desconheço —
é o mastigo.

do coração — pânico — não digo.

3. o afeto

só posso dar o que é meu.
e não me violento. naturalizo
algo frouxo de gesto e viço.

4. quando sou

não eu. raso me conheço e duro.
o resto é enquanto muro

a manutenção dos meus dias

(o que me faz sólida alvenaria
na reza medida dos tijolos do pórtico).

5. repentino

aguardo a constante surpresa,
embora nenhuma constante
surpreenda.

agarro a boca convicta
de não estar mímica.

a bolsa, mínima, desova
boas novas caídas por desuso.

6. no espólio

optar por mim
nunca foi boa aposta.

continua silêncio.

será que me chamam?
tudo que sei é agora.

7. das fruteiras

o alguidar e as frutas.
e as moscas nas frutas.

continua silêncio aqui.
e continua silêncio comigo.

obceco a fruta em tato cego.
bruto, sopro as moscas e sigo.

8. na mímica

não eu. algo que me falta é sem mímica.
meu escólio: forçar a escolha do toque.

fiar por fiar: já respirei sem janelas.

e o coração ainda pânico.
e nada do corpo se cabe.

9. de caber

e não me caibo, caibro pouco
e nada. ao conhecer a nudez,
diferi: vesti as estrias da noz.

10. avarandado

não haverá tradução de imagem
um salto? faz dia. a manhã já é.

lúcido

o sol arrasa as pernas
cortadas à sombra das persianas.

11. se sedento

estou, não movo passagens.
resumo tudo em estadia. se

sedento, bebo como quem percebe,
na colha, a bulha de folhas secas.

12. no fim

a areia silencia
a coreografia
de pequenos saltos.

cumpre o silêncio formigar domingos.

*

O cutelo
Dirceu Villa

São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos;
e às vezes, o sangue vermelho nas unhas.
São porcos, ou são as cabeças dos porcos,
penduram num gancho as cabeças,
ou a cara de estúpida morte dos porcos
no vidro embaçado do açougue.
Ou o branco, mas branco embebido de rosa,
o sangue no sonho de tripas,
sonha o açougueiro: que empunha um cutelo.
E o branco avental que se banha
ou que bebe, o sangue que salta dos nervos
num abraço com ossos, onde vibra o cutelo,
e como brilha o cutelo que corta:
é essa a virtude do aço no punho, que sobe,
ou a ameaça na roda vazia que o prende
no espaço do açougue, visível aos olhos,
anúncio de corte. Ou espeta seu fio numa pedra,
e o único olho vazio se concentra, à espera da carne.
São cortes na pedra lanhada de sangue,
ou fendas, de onde a morte o espreita,
açougueiro no sonho vermelho, acariciando
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo,
que corta. E então o cutelo é outra coisa:
nem porcos, nem nervos, nem ossos,
nem mesmo o açougueiro que o sonha,
mas parte extensiva do braço que o vibra,
e parte indelével do que ele mutila,
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.

*

Arame falado 
Marcus Fabiano Gonçalves


A

pela cabaça larga do berimbau, soa a garganta árabe do arame:
alambre que lembra o barbante em fio de ferro, lata ou estanho
a fina corda vocálica dos bantos, no varal ao vento, sem grampos

E

atenção a essa civil barricada bélica em sua ameaça nunca discreta:
CUIDADO: CERCA ELÉTRICA – no fio do mourão, o limite da gleba
torcido a torquês, a prego e martelo, ou urdido em arame na rede da tela

I

o artífice molda a gargantilha, o equilibrista sobre seu chão mínimo
um fio encapado que percorre condutível a bipolaridade alternativa
e de cujo enrolar nasce a bobina, essa mãe magnética do eletroímã

O

hoje a cobra vítrea da fibra ótica, ainda ontem os dois polos de cobre
o arame aéreo do telégrafo no poste, esse bisavô de wireless e modens
passando ao telefone seus trotes a bits e torrents, bisnetos do Morse

U

um arame que só sirva no mundo ao metalescente fio do discurso
flexível e dúctil, livre de acúleos, arame que jamais cerque redutos
como guetos de surdos, um arame falado: fio de luz no crepúsculo.


*

Lúcida rendição
Maria Lúcia Alvim

Sei que é amor, embora dura
seja a perfeição de sua face. Sei do
frio sândalo que exala a palma reluzente
do timbre de seu riso
da madura
solidão que o aperta entre os braços.

Sei que é amor. Nenhum disfarce
diante do claro labirinto —
a voz, o gesto escasso
a velatura cúmplice dos cílios
e o secreto crivo
                                a capitular
dúctil e vivo.

Sei que é amor, conheço o passo
do gnomo solerte
o sopro exausto
a lenta
curvatura do corpo, quando espreita a própria fome,
e a língua presa
pelas palavras pálidas e tristes.
Sei que é amor. Sei e consinto
em sua lícita usura

na severa parábola ds múltiplos equívocos
— enquanto a fluida escolta

desamor
deflagra minha sombra ao seu redor.

*

As quatro estrações
Érico Nogueira

1.

A noite, e tudo o que é escuro e cíclico
e liquefaz-se ao tempo do farol,
está predita em todos os testículos,
nas orquídeas que chegam com a estação,
embora não vejamos. Só o ouvido,
que pinça o inominado, pinça, então,
do rio a cuja beira estive, estou,
o ar da bolha, da que morre o grito.
Eu não ouvia bem naquele tempo
quando meu olho, então recém-aberto,
se iluminava, fixo no desenho
que as folhas têm olhadas mais de perto;
tanto pior, tanto mais fria a noite
de quem vai nu ao mar, vai nu ao monte.

2.

a João Ângelo

Durante o átimo em que se aniquilam
dos corpos toda sombra e traço dúbio,
quando o globo é mais túrgido e mais nítido,
tem mais saliva a língua, que mergulha,
é quando o espinho, antes imprevisto
em fruta incandescente assim, e úmida,
entala na garganta e não afunda
se não levar quem mergulhou consigo.
Eu cuidava que as águas eram rasas,
e que corais nem pérolas havia
senão os ossos que à maré mesquinha
apetecia abandonar na praia:
lambido o fogo, vi-me em água densa
abrindo a ostra ao fogo nada infensa.

3.

Amarelece o ar, a terra, a água;
o fogo amadurece e, doce, azula;
se incide sobre as pedras na penumbra,
ele descobre-lhes a face exata
e delas vai fazendo busto e estátua:
tendo subido aqui, a esta altura,
indiferente sob estio ou chuva,
vejo que pedras tenho só, talhadas,
mas pedras mesmo assim. Pergunto ao fogo
de que me vale a mim a galeria,
se em breve escorrerei ao negro poço
e passarei: “De nada valeria,
se a cerejeira não florisse agora
sob o vento que passa e a luz que doura.”

4.

E a nuvem torna, torna enfim o vidro
de que se enche aquele mar imóvel
onde o cardume acaba, e o rio que corre;
o louro seco, a taça já sem vinho
e a neve elementar no céu friíssimo
parecem proclamar que se dissolve
o quanto pelos lábios dança e escorre:
se o galho esplende, pesa sobre o abismo.
Neste penhasco, na aridez da pedra,
me apronto agora para ser levado,
para voltar enfim a ser areia,
e penso em tudo, e olho a todo lado;
não sei se é luz ou não o que há no gelo,
mas sei que é calmo, que não vou temê-lo.

*

sereia a sério
Angélica Freitas

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão

§

A bilha
Alberto da Costa e Silva

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um voo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água, 
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias 
de serras com que sonhas junto ao cacto, 
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

*

[ainda consigo escutar a máxima que cambaleia sobre a terra]
Érica Zíngano

ainda consigo escutar a máxima que cambaleia sobre a terra bêbada
insistindo nisso que relembra o erro de acertar a carta
e perder o jogo
todos já nascemos para trás
e continuamos evoluindo em busca
de um silêncio que conjugue
a vibração exata do período de resguardo
e o sono que regenere e nos faça amanhecer
sem rugas
eu faço experimentos eu misturo substâncias
eu não sou a primeira
eu não serei a última
nem todas as formas estão corretas
mas não existe uma regra
você pode confiar nas suas escolhas
apertar botões
selecionar estados de ânimo e alturas relevantes
nada será compreensível
até o ponto em que fulminante
o trem passa e lhe leva para outro lugar
antes de você nascer
nada pode consolar mais do que
o seu próprio vazio acolchoado
mas nem todos estão preparados para abrir a porta
vai ser necessariamente assim
existe um emissor e o receptor abre a carta
corta as bordas
rasga o tempo do envelope
aí começamos a descobrir de novo
quando o elevador está congestionado
e as paredes cheiram a esperma de um cinema pornô velho
os pênis nunca funcionaram como bons faróis
                         [para os navegadores
astutos a cachaça talvez
o problema são as vozes que começam a se acumular
no fígado e ao invés de regenerarem
não conseguem filtrar
mas é verdade que podem ser úteis para pendurar quadros
eu falo dos pregos dos pênis dos imãs de geladeira
necessariamente a ordem está invertida
eu falo de como você se nutre para depois explodir
e aí só depois os livros são vendidos limpos
passados a ferro
inúmeros exercícios de corte e feiras de eventos
mas os frágeis os sensíveis os indispostos os que têm
                         [vontade de vomitar
não conseguem acompanhar e ficaram presos
em algum ponto em que nem eles mesmos conseguem identificar
são os primeiros a morrer

*

Elites dirigentes
Sebastião Nunes


Q. de QUERMESSE. Ex.: «Nostalgias brasileiras/
São moscas na sopa de meus itinerários»

Quem somos? De onde viemos? Pra onde vamos?
(A elite dirigente do país se interroga.)

Somos decerto filhos da anterior elite.
Viemos é claro das escolas do poder.
Vamos é lógico construir um nova elite.

Quem semos? De onde vamos? Pra onde viemos?

(Na brasílica privada a elite penca e saga.
Merda fosse dinheiro pobre nascia sem Cu.)

*


[é uma lovestory e é sobre um acidente]
Márilia Garcia

é uma lovestory e é sobre um acidente
primeiro, a cena congelada
um dedo pousa no vidro,
a tela vibra.
                    você lembra o que
disse na hora? você gritou? doeu?
você lembra do que aconteceu?
a curva, a chuva, um clarão.
(depois ela acabou,
foi embora para belfast.)
você lembra o que disse na hora
em que o carro deslizou?
três horas na chuva esperando,
a curva, o estrondo, você lembra?
você entre as ferragens
perguntando o que houve.
(mas isso é um acidente
e é sobre uma lovestory.)
o amor, diz, é um efeito especial
pensa que viu tudo
mas quando acende a luz
os pontos
cegos se espalham:
          uma fossa abissal, uma nuvem
de distância e uma cidade chamada Vidro ou
Vértice
                    Volpi ou Verdi
o amor é alguém entrando
na geometria da sua mão
neste momento atravessa o corredor:
– não há mais isso entre nós,
de onde o timbre da sua voz
um efeito-estertor
(dentro do poema
pode sentir o efeito
e nessa hora todos os porquês
ficam guardados
em concha)
o amor é isso, diz,
não um corvo
mas um impermeável vermelho
pendurado na janela vindo de outro poema
para tocar na sua tela.
é você comendo o amarelo que sobrou
depois do estrondo.
o amor é este olhar que mancha
a retina na hora da emergência
um olho cinzento que treme
sempre que muda
de hemisfério.
“é difícil olhar as coisas
diretamente”
elas são muito luminosas
ou muito escuras.
2/3 deste país são feitos de água
e sempre que se vira, um
afogamento.
                    apenas um mergulho,
dizia a imagem. vamos ver o deserto,
andar pelo centro do mundo?
mas isso é um dicionário
e é sobre uma lovestory.

:

lovestory,
de a-z
a curva, a chuva, um clarão
a curva, o estrondo, você lembra
a retina na hora da emergência
a tela vibra
afogamento
apenas um mergulho
cegos se espalham
centro do mundo
de distância e uma cidade chamada vidro
de hemisfério
de onde o timbre da sua voz
dentro do poema
depois do estrondo
depois ela acabou
diretamente” elas são muito
disse na hora? você gritou? doeu
dizia a imagem, vamos para
dois terços desse país são feitos de água
e é sobre uma lovestory
e é sobre uma lovestory
e nessa hora todos os porques
e sempre que se vira
é difícil olhar as coisas
é você comendo o amarelo
em concha
em que o carro deslizou
ficam guardados
foi enviada para belfast
luminosas
mas isso é um acidente
mas isso é um dicionário
mas quando acende a luz
na geometria da sua mão
na janela vindo de outro poema
não há mais isso entre nós
não um corvo mas um impermeável
neste momento atravessa o corredor
o amor é um efeito especial
o amor é alguém entrando
o amor é este olhar que mancha
o amor é isso
os pontos
ou muito escuras
para tocar na sua tela
pensa que viu tudo
perguntando
pode sentir o efeito
primeiro a cena congelada
sempre que muda
três horas na chuva esperando
um dedo pousa no vidro
um efeito-estertor
um olho cinzento que treme
uma fossa abissal
uma nuvem
vermelho pendurado
vértice
você entre as ferragens
você lembra do que aconteceu
você lembra o que
você lembra o que disse na hora
volpi ou verdi

§

Museu da Polícia Militar
Fabiana Faleiros

BOLETIM DE OCORRÊNCIA N 548
MÊS/ANO: Junho de 2013
NATUREZ: Apreensão de cartaz
COMUNICANTE: E.S.
PROFISSÃO:prostituta

HISTÓRICO

A Prostituta E.S. segurava um cartaz com a frase “Sou feliz sendo prostituta” traduzido para a língua inglesa: I'm happy being a prostitute. Relata que pretendia somente exercitar o seu vocabulário para a Copa do Mundo. Ela não estava em nenhuma manifestação, estava sozinha. Não estava com nenhum cliente. Tampouco estava esperando um cliente. Relata que não estava fazendo programa e que não estava em uma manifestação. Era um exercício. A prostituta explicou que aprendeu a escrever em inglês no curso especial para a Copa chamado May I Have a Seat?, focado no vocabulário usado nos programas. Era uma tarefa do curso. A frase escrita foi identificada como plágio da campanha “Sem vergonha de usar camisinha”. A prostituta foi advertida que o Ministério da Saúde cancelou a campanha que combatia doenças sexualmente transmissíveis e valorizava a prostituição. Portanto o cartaz da prostituta foi apreendido, passando a integrar o Museu da Polícia Militar. A mulher foi encaminhada para uma delegacia da mulher, especializada neste tipo de ocorrência.


BOLETIM DE OCORRÊNCIA N 976    
NATUREZA: Invasão de domicílio
MÊS/ANO: Julho de 2013
COMUNICANTE M.F.
PROFISSÃO: artista visual

HISTÓRICO

Relata que se encontrava em sua residência artística quando começou a ouvir batidas na porta (na porta havia a placa “O artista está ocupado”) e logo após os acusados arrombaram a porta entrando na residência artística e partiram para a ocupação do local, que desde a remoção do Museu do Índio eles vivem lá, às vezes chegando a ser mais de 8 pessoas ao mesmo tempo. Que os acusados geraram transtornos que foram noticiados pelos veículos de comunicação. A vítima havia falado para o noticiário quem havia feito as ações de baderna logo depois a vítima teve que chamar a polícia. Desde então os acusados vivem na residência artística impedindo os artistas residentes de realizarem suas obras de arte sempre chamando a polícia quando os acusados retornam.


BOLETIM DE OCORRÊNCIA N 02
MÊS/ANO: novembro de 2013
NATUREZA: Apreensão de cartaz
COMUNICANTE: R.T.
PROFISSÃO: autônomo

HISTÓRICO

Homem negro de 25 anos foi abordado nos arredores do metrô Anhangabaú na cidade de São Paulo portanto um cartaz que promovia uma balada funk. O homem relata que não está promovendo “rolezinho” que muito pelo contrário ela está divulgando uma “balada” funk, o que é diferente de um baile funk ou rolezinho. A balada acontece no centro de São Paulo e que ele está ali por causa disso, procurando um promoter para divulgar o evento e que há tempos a música funk é ouvida fora da favela por pessoas de classe média e até mesmo classe A. O homem foi advertido de que não pode mais haver bailes funk na cidade de São Paulo que foram proibidos. Foi preso até que a “balada” seja averiguada.


BOLETIM DE OCORRÊNCIA N 909    
NATUREZA: Falsidade Ideológica
MÊS/ANO: Junho de 2013
PROFISSÃO: artista visual

HISTÓRICO
Homem de terno e gravata, sem expressão de desespero, utilizando máscara do rosto do empresário Eike Batista porta um cartaz em manifestação com os dizeres I'm desesperate (Eu estou desesperado). O homem de aproximadamente 21 anos de idade relata que ele não é autor do cartaz o qual na verdade é uma réplica de uma série de cartazes feitos pela artista inglesa Gillian Wearing que entregava folhas em branco para pessoas aleatórias nas ruas pedindo que elas escrevessem o que estavam pensando no momento. Disse ainda que a obra se chama What's on your mind? (O que você está pensando). O homem foi preso por falsidade ideológica por tentar se passar por outra pessoa e por plágio de obra artística. O acusado também foi enquadrado em desacato à autoridade por gritar repetidamente a frase “Eike desespero! Eike desespero!”


BOLETIM DE OCORRÊNCIA N 03
MÊS/ANO: novembro de 2013
NATUREZ: Flagrante
COMUNICANTE: Patrícia Alves
PROFISSÃO: desempregada

HISTÓRICO

Morena de 23 anos, conhecida como Maria UPP, foi flagrada praticando sexo grupal com policiais dentro de UPP's já em várias favelas do Rio de Janeiro. Os policiais que mantiveram as relações fizeram vídeos e fotos que foram divulgados na Internet onde a mulher aparece nua e fardada, segurando um fuzil. A mulher afirma que mantinha relações sexuais com vários PMs ao mesmo tempo que fez isso porque quis, porque gosta e faria de novo. Afirma já ter estado em todas as UPPs do Rio de Janeiro e que inclusive tatuou “UPP” próximo a sua vagina. Que pratica atos sexuais há 5 anos com policiais em horário de plantão durante a madrugada mas que também saiam juntos fora do trabalho. Ela não recebe para manter as relações, mas pede que pagem o taxi, e se possível, um lanche. Que se relacionou com aproximadamente 1000 policiais e que nunca imaginou que apareceria na mídia. Diz que não mantem mais contato porque trocou de número. Afirma que não faz parte de nenhuma facção criminosa que fez por conta própria. Não acredita ter cometido crime nenhum, consciência tranquila, sustentada pela família. A morena diz que sempre gostou muito da polícia, teve a oportunidade e fez por prazer.

*

Sinto teu ceticismo escorrendo por debaixo da porta
Tom Nóbrega







*

[Praça do Sol às 3 da tarde]
Reuben da Rocha

Praça do Sol às 3 da tarde
risca o fósforo do incendiário
Praça do Sol às 3 da tarde
abre as narinas p/ o fedor dos muros
Praça do Sol às 3 da tarde
esconde a senha dos holocaustos
Praça do Sol às 3 da tarde
enerva cada coração covarde
Praça do Sol às 3 da tarde
aponta os mísseis à glória
Praça do Sol às 3 da tarde
depila as tuas rameiras
Praça do Sol às 3 da tarde
apascenta teus ambulantes
Praça do Sol às 3 da tarde
despista o fumo dos policiais
Praça do Sol às 3 da tarde
oculta o raio do cego
Praça do Sol às 3 da tarde
acode o baque das ondas
Praça do Sol às 3 da tarde
distrai o tédio do pipoqueiro
Praça do Sol às 3 da tarde
loas ao biquíni túrgido
Praça do Sol às 3 da tarde
acorda a renca dos ventos
Praça do Sol às 3 da tarde
diz a gíria do guardador de carros
Praça do Sol às 3 da tarde
toma gosto c/ as empregadas
Praça do Sol às 3 da tarde
pendura a nuvem nos galhos
Praça do Sol às 3 da tarde
trocados ao vendedor de coco
Praça do Sol às 3 da tarde
ouvido ao reggae das bacantes
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
devora a muvuca das gentes
cede teus bancos às fodas
legisla a rixa dos traficantes
senhora injuriada das trapaças
abre tuas pernas p/ os pivetes
engole o mijo da criança

*

Limite
Juliana Krapp

Sebe é um acúmulo de varas entretecidas
cerceando
por vezes sim por vezes não

eu sei
do esforço para persuadir
naturezas terríveis

simultaneamente
à graça dos perímetros
que permanecem estanques

(a dor de coabitar
tanto as frinchas quanto os
confinamentos)

Quando rarefeitos, os movimentos
aguardam mais do que a conclusão, preferem
o desdém e o resguardo
ou mesmo esse estalido
(um arquejo)
embalado
pelo embaraço hipnótico
das pequenas sombras

Somente as ventanias são de fato enamoradas
e apenas nelas alijam-se
as imundícias mais profundas

como somente os ramos
estraçalham-se e engravidam-se
num único carretel de músculos em escombros

(um aparelho de tensões
alimentado pelo ritmo
dos sumidouros)

*

O cineasta do Leblon
Hilda Machado

“Aquele que escavar em sua consciência
até a camada do ritmo e flutuar nela
não perderá o juízo.”
Nina Gagen-Torn


O brilho de laranja ao sol
amendoeira rubra e pavão
oculta sobressaltos faustianos
encenam-se dramas na alma
suadas peripécias
lágrimas
mímesis
em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco
e a nudez do missionário espancado
folheia-se uma antologia de acidentes
títulos afundam
e no lodo
personagens sem nome
e escândalos de fancaria

O comércio incessante
distrai das caudalosas sociologias do fracasso
idades do ouro perdidas
terror espetacular
recorta o esforço de colosso trágico
alçar-se acima da imensa massa de vencidos
violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa
carnaval exterior que é dublagem

Nos domingos de lua cheia
um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados
miuçalhas
monopólio
asperezas
contrabando
e então
razias de corsário

na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca
transpor morros e encontrar a elevação
tropeça-se em pétalas de rosas
em trufas
visitas ao paraíso
as quartas-feiras são turvas
e trazem as penas do inferno
telefonemas seus
telefonemas meus
telefonemas da outra
e a ex
compomos o obrigatório conflito
repetir com honestidade a velha trama
até que ao fim do primeiro bimestre
erra-se no açúcar
escorrega-se na farsa
e mudam-se todos para a novela das 7

Homem da lua
fantasia de rudes hormônios
o bicho se coça
fervor marcial e bico de passarinho
cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo
atravessa pontes queimadas
alcançou o vale feroz
terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas
afrouxa parafusos
e do colchão abala a mola-mestra

ouviu, carro?
tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa

ouviu, montanha?
mudaram os livros que eu agora levo pra cama
antigas lendas fabulosas
uma grosseira rapsódia
cinco escritos libertinos
eu bebo como num banquete em Siracusa
e gozo como as prostitutas de Corinto
palmeira, ouviu?

*

[em noites mais quentes fazemos chás]
Carla Diacov

em noites mais quentes fazemos chás
da primeira mansidão da noite quente
chás
ou então sopas
das folhas imóveis das pedras agitadas
mentira
é que faz-me falta ter o homem do adubo
é que faz-me falta ter a mulher do adubo
nas noites mais frias faríamos sorvetes
ou então mentiras
é que eu estou só
estou só
conheço tudo pelo tato
em noites amenas estou só e toco a campainha dos vizinhos e corro
                          [pra debaixo do lençol só

uns fios de estar só
uns fios de cabelo na boca e só

o peso dessa espera me puxa pra cama
a gravidade dessa espera faz-me mais
longa me joga aos postes
me empurra ao largo das borrachas infláveis

estou só
conheço tudo pelo tato
a mentira dos olhos ouvidos
o truque nos joelhos dos poetas

faríamos chás sorvetes mentiras sopas

*

No bolso as moedas
Ederval Fernandes

perder o amor
não é perder o lápis
o relógio
de preguiça perder o poema
ou o comboio o elétrico 15E
sentido algés
por 6 minutos
a mais na cama
nas contas a serem
pagas nas culpas
nunca suturadas
perder o calor
do café
o amor perdê-lo não é
como precisar ir
mas ficar
andar e não correr
atrás disso
que fácil e lento passa
em frente à porta (ouvir
Dylan para entender
o uso deste sample)
perdê-lo o amor não é
como ir à praia sem querer
ir embora
e descobrir depois:
o melhor era ficar
perdê-lo o amor
é impossível
no bolso as moedas
se escondem
mas não
desaparecem

*

Metafísica e biscoito
Leonardo Fróes

no meio dos latidos da noite
quando o silêncio atinge a qualidade
dos latidos da morte e as folhas caem
impressionavelmente sangradas;
no meio frio de um colchão inquieto
com os olhos pensativos resvalando no teto
e as mãos descendo pelo corpo
como a buscar sua realidade longínqua
quando os morcegos da melancolia
atravessam sem bater entre as árvores
e alguma coisa enraizada confusa
parece brotar de novo entre as pernas;
nesse espaço fundamental reduzido
onde as idéias se sucedem largadas
numa associação intempestiva
que é impossível deter ou compreender;
no cerco sem limite de um quarto
que roda em vários mundos e alterna
com a sensação de não haver nada disso
que dá contorno e forma à própria insônia —
— o homem dá um salto e se puxa
para fora do pântano
e devora um biscoito
e bebe um copo d'água e acende
um cigarro e mais outro.

*

[os pés de prato o barro]
Eliane Marques


os pés de prato o barro
os calos os mais redondos
o azul dos cílios o cinza
a redonda bacia das batatas

tudo encefalotrapo
batom terracota retratos
barulham o mesmo tudo
o mesmo nome muro abaixo
o brinco dos quais as contas
o lenço no trirreme onde troncos
troços um sonho
pan tan pan sobre os ouvidos
as veias as mais finas –
os puros-sangue da rainha

esquecidos os braços
no mármore de salamina
que outra seja a remadora
a madrepérola da rotina

que outro seja o azedo
daquela maçã nas papilas


*

[O futuro? Tem orelhas]
Júlia de Carvalho Hansen

O futuro? Tem orelhas,
mas é surdo. E é manco.
Se arrasta, sem espanto
mais alheio do que lúcido
com o nosso despreparo.

Se fosse um deus amava o humano, mas como não existe
o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles,
as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército
de cronogramas, nem de antecipações.

Tem firmeza de flor. E é
invisível, reconhecido
por seus efeitos de brisa
furacão. Nunca adiado.
Não tem nada a ensinar
no entanto é um mestre
dizem os esgrimistas
os observadores de saltos
os gatos também
aprendem certos truques com ele.

E se ama os despreparados
lhe sabem tanto os que fazem
quanto os que esperam.
Os otimistas valem mais
valem quanto?
Cem bifurcações,
sucessivas gerações
de bem-aventurados
que topam em pedras
cicatrizam e correm
bem alimentados
com fome de mais
alimento.

São seus sinais
os imprevistos, os cavalos
os pontos cardeais
os cinco sentidos
e os sete buracos da cabeça.

*

Sobre o tempo
Lívia Natália

Se este vento persistir ainda alguns verões
e a flama acesa ainda banhar a mesa
e dançar nas paredes com suas sombras luminosas,
teremos pão. Teremos corpo,
e algo de um silêncio que não nos corte muito fundo.
Teremos a lâmina com seu fio imperfeito tangendo os tempos.

Em persistindo o vento sobrelevando as estações
Ainda serão seus cabelos que lamberão minha virilha
e terei seus olhos fechados me tateando no ar.

Em persistindo,
para além da chuva imensa e do acre que devora o verão
esta alegria descortinada e estes olhos de lágrima e brisa,
mais seremos um para o outro,
e estaremos mergulhados neste entreentranhas que,
quando venta,
somos nós.

*

filho de
Frederico Nercessian

filho de
yan
filho de
yan
em nome do
pai,
do filho
filho de
alguém

yan,
parte de pai,
maternidade X
filho de dois

meu yan
escrito com i
ian
também filho de
filho de um outro,
ian
fim de sentença
yan ou ian
natimorto,
filho de qualquer coisa
que alguém queira chamar
filho de um pai,
filho também de,
e de uma mãe
agora,
sem ian na
escritura.

língua paterna,
dos filhos de, confesso,
pouco aprendi.
sei que em alguns casos,
poucos, se escreve com i,
ian
e em poucos mais poucos,
com y
yan,
filho paterno da língua paterna que não
sei.

*

o que aconteceu conosco
Philippe Wollney

que neste inverno
o que nos tira o frio
são as fagulhas de nosso inferno

o que aconteceu conosco
o sarcasmo de nossos olhares
transmutado
na tragédia do zodíaco a dois

o que aconteceu conosco
a manhã sorridente de papel celofane
dasanuviado
a sobra apenas dos caninos

o que aconteceu conosco
abraços carregados nos dentes
afagos nas cáries
e um delicado carinho de barbárie

o que aconteceu conosco

brotoejas de anêmonas no pescoço
trocando colares
de dedos e dentes de crianças

o que aconteceu conosco

tórax essa caixa de muambas
coração do paraguai
um futuro made in china

o que aconteceu conosco

o reduto do vinho, o umbigo
parada obrigatória
da língua na chaga no ventre

o que aconteceu conosco

assovios de encantar serpente
da cobra
a pele morta do dia aparente

o que aconteceu conosco

o que se abria em lábios
do beijo
o sobejo de uma carne que não se digere

o que aconteceu conosco

pés que tilintam são ecos
em um salão vago
e uma sinfonia de calos e vida encravada

o que aconteceu conosco

que de morno os nossos nomes
o mofo
e a fome de pastores tangendo o rebanho

o que aconteceu conosco
o que aconteceu com nós
com os nós

*

Transmissão 
Tatiana Pequeno


Álibi que encosta a crosta da língua
no cerne do pavio,
na gordura espessa da várzea,
no efeito cáustico do globo em brasa
brisa noturna de vespertinas covas.

Olhei vestida de soldado
com quepes de molho,
pura sanitária
e com bastões e estandartes de ouro
reconheci no aspecto homogêneo da arnica
a benfeitoria dos apaches, meus irmãos.

Olhei vestida de álibi a crosta do pavio,
como se houvera sido pedra
não fosse o papel incendiário a que sempre sucumbi
o selo legítimo dos lipomas.

*

Conheço vocês pelo cheiro
Ricardo Aleixo

Conheço vocês
pelo cheiro,

pelas roupas,
pelos carros,

pelos aneis e,
é claro,

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

que algum
ancestral remoto

lhes deixou
como herança.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

e pelos cifrões
que adornam

esses olhos que
mal piscam

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

e a tudo que
nega a vida:

o hospício, a
cela, a fronteira.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

de peste e horror
que espalham

por onde andam
– conheço-os

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

deus é um
pai tão sacana

que cobra por
seus milagres.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

mal disfarçado
de enxofre

que gruda em
tudo que tocam

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

é com ódio
que replicam

ao riso, ao gozo,
à poesia.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro.

Cheiro um e
cheirei todos

vocês que só
sobrevivem

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

fazem até das
próprias filhas

moeda forte,
ouro puro.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

de cadáver
putrefato que,

no entanto,
ainda caminha

por seu amor
ao dinheiro.

*

invocações
Rodrigo Lobo Damasceno

do quintal
um corpo cheio de comida e memória
levado de um lado a outro pela rede
vislumbra
(no mato escuro próximo ao trópico de capricórnio)
dois ou três vaga-lumes
e volta de volta à vida em que ainda voavam
aos bandos de vinte e nove
e nas conchas de minhas mãos miúdas
lançavam suas luzes
verdes –

de longe, de óculos na cara
e cigarros hollywood no bico,
meu pai me espreita

do caruru
um corpo azedo de suor e cheio de azeite
no bucho baixa às outras noites
de caruru – um
dos sete meninos escreve,
e os outros, soltos
na noite aberta e vermelha do continente,
sentem
(ao mesmo tempo)
os cheiros
de dendê, vatapá, pipoca –

caruru não há mais,
mas os meninos
(os sete, por sorte)
ainda voltam

*

Diante da lei Ismar Tirelli Neto
Não, Senhor Não fiz minha parte em erradicar a Beleza do mundo Cuidei no entanto de deixar em cada palavra Ao menos uma luz acesa Uma fresta que em certa medida era também Eu a passar como uma rede por estas cidades As cidades Pegando-se a mim pelos furos Eis-me aqui para a prestação de contas No restaurante Onde ontem almoçamos uma moça Ensinava a filha pequena a jogar dominó Percorrendo uma galeria cruzei-me Com um rapaz bastante moço que dizia Para a jovem chorosa que o acompanhava “Juro pelo que há de mais sagrado”

*

Três cantos da mulheres do povo Kuikuro



1.

tuãka kete    vamos banhar
uhisü kilü uheke    disse-me o meu amor
utalitsügü  kutsonkgitomi    lave-me e tire um pouco do meu cheiro de copaíba
umüngitsügü kutsonkgitomi   lave-me e tire um pouco do meu urucum
uhisü kilü uheke hegei   disse-me o meu amor


2.


osiha kukihini    vamos fugir
Atahukula    Atahukula
ige ngahaponga kukihi  kukihini  para as cabeceiras do mundo vamos fugir
Atahukula    Atahukula
tuã hepüati kukihi kukihini   onde começaram as águas vamos fugir
Atahukula     Atahukula    
ige ngahaponga kukihini   para as cabeceiras do mundo vamos fugir
Atahukula    Atahukula

3.

kukahetekege    que nasçam asas em nós
einhakagagü unkguati utetomi  na palma da tua mão vou aportar
tukuti utetomi    feito beija-flor



(Traduções de Bruna Franchetto, Kanu Kuikuro, Magia Kuikuro e Jamalui Mehinaku)


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